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quarta-feira, 10 de outubro de 2018

As instituições da República

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de João Luís Mota de Campos, saído hoje no jornal i
A crise exacerbou todas as piores tendências do capitalismo global, acrescendo à desigualdade social, à erosão do Estado social, à proteção dos mais desfavorecidos, ao aumento da influência das redes clientelares, alienando progressivamente as classes médias e lançando-as num ambiente cada vez menos seguro e com um futuro cada vez mais incerto. 
As instituições da República
A confiança na estabilidade do mundo em que vivemos é tudo. É um facto histórico que a crise de 2008 começou em 9 de agosto de 2007, de manhã, quando o banco francês BNP Paribas anunciou que congelava três fundos devido à “completa evaporação de liquidez em certos segmentos do mercado americano de securities que tornou impossível a atribuição de valor a determinados ativos independentemente da sua qualidade ou avaliação de crédito”.

Este “evento” de mercado destruiu em horas a confiança no sistema e lançou uma sequência catastrófica de acontecimentos cujo ponto culminante e mais notório foi a falência do Lehman Brothers em 15 de setembro de 2008 e a paralisação quase completa dos mercados financeiros ocidentais e transatlânticos.

Adam Tooze, no seu recente livro “Crashed – how a decade of financial crises changed the world”, explica bem que a crise do subprime não foi uma crise americana, mas uma crise dos mercados financeiros transatlânticos, europeus e norte-americanos.

Esta crise, como todas as crises, foi a causa de profundas transformações económicas, sociais e políticas no mundo, mas também foi a consequência de uma permanente perda de influência e poder por parte do mundo ocidental, cujo poder económico era e continua a ser enorme, mas num mundo cada vez mais multipolar em que a segunda e, em breve, talvez primeira potência económica é a China.

Enquanto a China e o Sudoeste asiático crescem a velocidades estonteantes, a Europa e os Estados Unidos vão-se transformando naquilo a que Nial Ferguson chamou um “Estado estacionário”, citando Adam Smith em “A Riqueza das Nações”: trata-se da condição em que se encontra um país que já foi próspero quando pára de crescer.

As suas características são o caráter social regressivo e a capacidade de elites corruptas e monopolistas de explorarem o sistema legal e a administração pública em seu favor.

Esta alteração do eixo de poder no mundo em desfavor do Ocidente, no termo de meio século de globalização da economia mundial e de desregulamentação dos mercados financeiros, colocou as sociedades ocidentais numa posição de fraqueza e insegurança sobre si próprias, os seus valores e os seus princípios.

Por outro lado, a crise exacerbou todas as piores tendências do capitalismo global, acrescendo à desigualdade social, à erosão do Estado social, à proteção dos mais desfavorecidos, ao aumento da influência das redes clientelares, alienando progressivamente as classes médias e lançando-as num ambiente cada vez menos seguro e com um futuro cada vez mais incerto.

As consequências venenosas da crise de 2008, tal como as da Grande Depressão de 1929, têm vindo a fazer o seu caminho, desde logo numa profunda mudança de paradigmas, começando pelo retrocesso da globalização, substituída junto de muitos novos decisores políticos pela ideia do nacionalismo económico, quer à esquerda quer à direita, tão bem explicada há dias pelo presidente Donald Trump no seu discurso na Assembleia-Geral das Nações Unidas.

Com o novel (e muito antigo) nacionalismo económico surgiu toda uma série de novos protagonistas políticos de um “novo tempo” que paulatinamente vão ascendendo ao poder, seja nos EUA ou na Hungria, Rússia, Turquia e tantos outros, e que lentamente vão definindo um novo paradigma político do séc. XXI: a democracia iliberal, assente em caudilhismos e nacionalismos, e não em instituições estáveis. Pelo contrário, as instituições existentes, a começar pelos tribunais, são os primeiros alvos desses novos regimes políticos.

Muita gente em Portugal imagina que, porque as coisas demoram a chegar cá, não vão chegar nunca, e que estamos imunes a esses fenómenos políticos.

Portugal é um país profundamente conservador que manteve durante 41 anos a Constituição e o regime de 1933 e que há 42 anos mantém quase intactos a Constituição e o regime saídos do 25 de Abril.

Da mesma forma que antes de 1974 parecia impossível evoluir nas nossas posições em relação à existência das chamadas províncias ultramarinas, onde residiam mais de meio milhão de portugueses metropolitanos, e que esse nó górdio foi cortado numa manhã de abril de 1974, também agora parecemos enterrados sem solução num regime que se mostra incapaz de evoluir e adaptar aos tempos modernos.

Se as classes médias portuguesas se virem confrontadas com um renovar da crise (que, ao contrário do que é dito, está longe de ter acabado: precisamos de 30 anos de superávites orçamentais só para voltar a uma percentagem de dívida de 60% do PIB…) e se aparecer um caudilho que saiba capitalizar esse sentimento de profundo descontentamento latente e alienação social, quantas manhãs julgam que serão necessárias para desatar o nó górdio do nosso atual regime político representativo?

Como Daron Acemoglu demonstrou (“Porque Falham as Nações”), a qualidade institucional de um país é essencial para a sua prosperidade a longo prazo. A verdade é que as melhores instituições são aquelas que atraem o consenso e a legitimidade da sociedade como um todo.

Para isso é essencial que possam evoluir guardando o essencial do seu espírito democrático. Instituições que não evoluem e se mantêm rigidamente, apesar de, à sua volta, um turbilhão de mudanças e de riscos exigirem respostas novas, são instituições que a prazo deixam de merecer a aprovação dos cidadãos.

Uma dessas instituições, essencial da democracia representativa em que vivemos, é a eleição em regime proporcional do nosso parlamento, uma instituição central à nossa democracia e ao sentimento de representação, sem o qual o regime político perde legitimidade.

Temos pugnado há anos para propiciar uma evolução desse regime eleitoral que, em suma, aproxime eleitores de eleitos e dê aos cidadãos algum módico poder de escolha, de que hoje estão privados.

Verificamos que a nossa classe política é imune e avessa a estas ideias de mudança, que implicariam da sua parte uma forte capacidade de adaptação. Como cidadãos empenhados, temos tentado furar esta barreira e levar estas ideias à deliberação do parlamento. Não tem sido fácil.

No entanto, não podemos desistir de salvar de si próprias as instituições da nossa República, esperando que o instinto de sobrevivência aguce o engenho dos nossos representantes antes que o tempo deles termine e a mudança os condene aos caixotes do lixo da História.

João Luís MOTA CAMPOS
Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade

NOTA: artigo publicado no jornal i.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Esquerda, direita e em frente… A agonia do Capitalismo tal como o conhecemos

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de João Luís Mota Campos, saído hoje no jornal i

Os próximos anos vão ser os anos do combate à desigualdade, não tenham dúvidas. Enquanto o mundo cresce de forma desigual e caótica, o Ocidente vai dilacerar-se à volta das questões da igualdade social, económica, racial, de género. Tenho poucas dúvidas de que quem vai pagar a conta desse combate contra «quem mais acumula» é mais uma vez, e como sempre, a cada vez mais restrita classe média.

Thomas Piketty e o seu "O Capital no Século XXI"
Esquerda, direita e em frente… A agonia do capitalismo tal como o conhecemos

Há dias uma jovem mestranda de ciência política discutia comigo as diferenças entre esquerda e direita que não entendia bem quais pudessem ser nos dias que correm.

Quem cresceu politicamente nos anos setenta, o apogeu do mundo soviético, em que o Ocidente parecia estar sob ameaça imediata e grave e o mundo à nossa volta parecia cair como peças de um dominó, não terá dificuldade em se lembrar e em entender a imensa diferença que fez a eleição de Margaret Thatcher no Reino Unido e de Ronald Reagan nos Estados Unidos.

Descobrimos que a alternativa ao comunismo e ao socialismo triunfantes não eram os regimes autoritários de direita, mas bem pelo contrário os regimes liberais e democráticos em que ansiávamos viver. Foi isso que descobrimos avidamente em Friedrich Hayek e Ludwig von Mises, entre tantos outros.

Numa época de preços tabelados, controlo de câmbios e circulação de capitais restrita e sujeita a autorização prévia, de domínio da economia por grandes empresas públicas monopolistas, os anglo-saxónicos mostraram-nos o caminho da desregulamentação, da privatização dos monopólios públicos, da sensatez do alívio fiscal a particulares e empresas.

Numa década, entre 80 e 90, caíram os dogmas da economia dominada pelo Estado e caiu o muro de Berlim, ou seja, desagregou-se o império soviético. Com a banalização dos computadores, a criação da internet, descobrimos a globalização, a circulação irrestrita de capitais, mas também descobrimos que a globalização era uma estrada de dois sentidos que abria o mundo a todos e não só ao Ocidente.

A globalização foi o milagre económico da China que, com crescimentos piramidais de 10% ou mais ao ano, duplicava o PIB todos os sete anos… A globalização foi o milagre que tirou da miséria mais sórdida biliões de seres humanos, que transformou em países emergentes regiões do globo que estavam enterradas na mais profunda miséria e atraso económico e social.

Quando essa década fabulosa terminou, o mundo era outro de todos os pontos de vista, económico, cultural, tecnológico, com avanços totalmente inesperados e extraordinários em matéria de comunicações, acesso ao conhecimento e informação, facilidade de circulação por esse vasto mundo. Foi esse mundo que herdaram os filhos da minha geração, os chamados millenials, que nasceram no século passado e cresceram neste.

A primeira década deste século foi também a do euro, da subida em potência da China e do recuo da hegemonia americana, por um lado e, por outro, do capitalismo global, financeiro e desenfreado, cheio de “animal spirits”.  
Cada novo equilíbrio suscita novos desequilíbrios: depois da explosão da crise de 2008, uma capa da revista “The Economist” dizia tudo ao mostrar um leão ferido de morte sob o título “A agonia do capitalismo”.

Num curto espaço de tempo, passámos do triunfo dos neo-conservadores que proclamavam o fim da História num equilíbrio definitivo do capitalismo global, para a dúvida instilada por Stiglitz com o seu célebre “Globalization and its discontents”, em que o sistema ocidental a que a esquerda chama o “consenso de Washington”, que repousa na livre circulação de capitais, na protecção da propriedade privada, no Estado de direito, na legítima actuação de actores privados no palco internacional, na economia de mercado em suma, começou a ser posto em causa.

Durante anos, ouvimos a esquerda ocidental duvidar e condenar as reformas neo-liberais dos anos 80 e 90 do século passado, mas a aceitar que a globalização podia ser uma coisa boa. Com a crise de 2008, esse estado de espírito desapareceu: a linha divisória passou a ser entre os que procuraram controlar a despesa pública (os “austeritários” no dizer da esquerda) e repor as condições básicas de equilíbrio de funcionamento do mercado (os horríveis neo-liberais), e os que se definiam por ser “anti-austeridade” e fortemente redistributivos.

Na síntese brilhante de Miguel Angel Belloso, a diferença passou a ser entre os que que queriam redistribuir para crescer e os que queriam produzir e crescer para poder redistribuir. Essa batalha está em curso.

Neste meio-termo, dois novos ingredientes vieram complicar a discussão: por um lado, os apóstolos do regresso ao proteccionismo, dos “nós primeiro”, os populistas que apelam aos mais baixos sentimentos da população, aos egoísmos nacionais; por outro lado, uma já vasta literatura com Stiglitz, Krugman, Mark Blithe, James Galbraith, entre muitos outros, abriu caminho ao novo apóstolo do século XXI: Thomas Piketty, o autor do seminal “O Capital no Século XXI”.  
A tese de Piketty é simples: sem restrições, o sistema capitalista tende a concentrar nas mãos de um número cada vez menor de uma elite global um volume cada vez maior de dinheiro e de privilégios. A solução? Restringir essa acumulação progressiva, eliminar os privilégios de classe e casta. Uma causa seguramente popular, para não dizer populista. 
A desigualdade entrou no léxico político em força. Democracia é igualdade, logo desigualdade é… fascismo! Este é o novo silogismo político da esquerda.

Os próximos anos vão ser os anos do combate à desigualdade, não tenham dúvidas. Enquanto o mundo cresce de forma desigual e caótica, sem liderança e sentido, o Ocidente vai dilacerar-se à volta das questões da igualdade social, económica, racial, de género e do que vier.

Tenho poucas dúvidas de que quem vai pagar a conta desse combate contra “quem mais acumula” é mais uma vez, e como sempre, a cada vez mais restrita classe média. Também não tenho dúvidas de que a nível global é mais fácil destruir o esforço de décadas do que construir alguma coisa de novo.

É nestas confluências que vai decorrer o combate político dos próximos anos. O que pensam destas questões os nossos líderes políticos? Sem opções claras, não há escolhas claras.

João Luís MOTA CAMPOS
Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade

NOTA: artigo publicado no jornal i.