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segunda-feira, 20 de março de 2017

O meu melhor amigo


No burro da Cascalhosa

Foi em 28 de Fevereiro de 1969. O meu irmão tinha 16 anos, eu acabado de fazer 15. No Verão desse ano, ele acabaria o Liceu e entraria para a Escola Naval, onde seria um aluno brilhante: sempre o “penico”, isto é, o primeiro do curso, no calão da Marinha - mais tarde, seria também o “penico” do seu curso de Naval Architecture and Ocean Engineering no M.I.T., o Massachusetts Institute of Technology, em Boston.

Voltemos a esse dia de Fevereiro, 1969. Foi o dia do último grande sismo em Portugal. Foi forte. Morreram algumas pessoas, uma dezena. Atingiu sobretudo o sul do país. E abanou muito Lisboa. Foi de grau elevado e sobretudo foi muito comprido. O tremor-de-terra principal durou quase um minuto – um minuto de terra a tremer é muito minuto, muito tempo. Se medirem uns 50 segundos pelo relógio e imaginarem que a terra está a tremer durante esse tempo todo vão ver a eternidade que é.

Foi de madrugada, bem depois das três, já perto das quatro da manhã. Acordei com a casa a abanar. Vi logo o meu pai a sair do quarto, cuja porta era em frente do nosso. Foi até ao quadro de electricidade e desligou-o por completo – disse que era para evitar curtos-circuitos e incêndios. E mandou-nos pôr debaixo dos umbrais das portas – disse que, se o prédio ruísse, era o sítio mais seguro. Tudo sem berros, nem pânico; muito calmo e organizado. Pura precaução, que o prédio estava a abanar muito.

Damos conta de que o Fernando não estava e o pai manda-me ver o que se passava. Quando volto ao quarto, ainda a casa abanava, só o ouvi resmungar, na cama: “Que chatice! Não me chateiem! Deixem-me dormir.” No seu sono, sempre tranquilo e profundo, devia imaginar que alguém o abanava, para que acordasse e se levantasse. Como era cedíssimo, queria dormir – e estava no seu direito. O tremor-de-terra acabou logo a seguir. Não houve já necessidade de se levantar, nem de acordar. Em todo o sul de Portugal, deve ter sido dos poucos portugueses que não deram pelo sismo. O Fernando foi sempre uma alma descansada.

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*   *

Hoje, passam três anos que morreu. Também foi cedo – como naquela noite bem dormida. E, nestes dias de memória mais forte, em que o luto pinga às pinguinhas, é de histórias destas que me lembro do meu irmão.

Como o naufrágio perigoso num “Vouga” do CNOCA (Clube Náutico dos Oficiais e Cadetes da Armada), ao largo defronte de Paço de Arcos, num fim de tarde muito ventoso e de carneirada traiçoeira, com a Leonor e o Salvador – uma aventura náutica que podia ter acabado muito mal. Era Julho de 1970, um ano depois do sismo, com o Fernando tendo já acabado o 1º ano da Escola Naval e eu a caminho de entrar na Faculdade de Direito.

Ou das nossas brincadeiras cúmplices. As experiências e as prodigiosas descobertas químicas com um kit do Chemical Engineer, que saíra na altura, e por outras improvisações da nossa imaginação, que tinham o condão de deixar a nossa mãe entre a admiração pelo engenho dos seus rebentos e um ataque de nervos. Volta e meia, houve umas pequenas explosões, embora nada demais. E uns estalidos. A partir de um certo dia, a banheira lá de casa passou a ostentar, no esmalte, uma pequena mancha queimada por um ácido que ali entornámos. A mancha na banheira durou tantos anos quantos os anos que da banheira me lembro, assinalando aos usuários domésticos e a outros vindouros, que por ali havia passado um espírito científico inquieto – e o ataque de nervos da minha mãe também.

Os complementos desse kit para jovens iniciados Chemical Engineer comprávamo-los com o que as semanadas nos permitiam, na “Titarene”, uma pequena loja que havia, a meio da Avenida da Roma, ao lado da “Romeira” e que vendia um pouco de tudo. Espantava como tantas e tão variadas coisas cabiam numa loja tão pequena. Ao fundo da loja, havia uma salinha, onde tinham brinquedos diferentes do habitual. Tinha sido o Fernando a descobrir essa arca do tesouro, nas nossas viagens a pé entre casa e o liceu: primeiro, a secção de Alvalade do Liceu Camões; depois, o Liceu Padre António Vieira, de que ambos fomos fundadores – eu a partir do 3º ano do liceu, ele a partir do 4º.

Foi nas profundezas da “Titarene” que descobriu o fascinante Chemical Engineer, que tanto confundia a nossa mãe. E descobriu também – oh, prodígio da inventiva! – os comboios eléctricos da Märklin. Coleccionámos anos a fio, peça a peça, estes comboios, mobilizando também generosas ofertas da família em aniversários e Natais consecutivos. Não conseguimos uma frota milionária, mas, ainda assim, um conjunto apreciável. E, porque eram das peças mais baratas, investimos sobretudo em linhas, com que, no nosso quarto ou, às vezes, na sala, construímos os percursos e trajectos mais ousados e inverosímeis, que nem nos Alpes ou nas cordilheiras e abismos dos Andes. Volta e meia, o comboio, com sua locomotiva e carruagens, dava grandes estoiros a partir das alturas a que o sujeitávamos – felizmente, não havia vítimas. Depois, corrigíamos ligeiramente o percurso e o comboio fazia a travessia sem mais incidentes. No fundo, no fundo, éramos uns experimentalistas.

Lembro-me, claro!, muito crianças, talvez 1956, das viagens camponesas no burro da Cascalhosa, sob a apertada vigilância do avô Jaime e do Zé Gonçalinho, que não iam deixar que nos acontecesse o que, anos depois, fizemos aos comboios da Märklin. E, muitos anos depois, em 1977, de viagens inapagáveis na Costa Leste dos Estados Unidos da América, entre Boston e Nova Iorque. Foi nos tempos em que frequentou ao M.I.T., tinha ele já os primeiros três filhos (um nascido em Angola, outra no Alfeite e a última já em Boston) e a minha filha mais velha foi aí fazer um ano. O nosso pai também lá estava.

Lembro-me como ontem. Vivia-se ainda o “Spirit of 76”, o bicentenário da Revolução Americana, muito intensa na Nova Inglaterra. Fomos a Plymouth, onde estava a réplica da Mayflower, dos primeiros colonos. A qualidade de vida em Sommerville, o subúrbio onde viviam, era magnífica, com suas ruas ordenadas, abastecimento impecável, parques magníficos. Encantou-me a beleza clássica e moderna de Boston, a Prudence Tower, o Logan Airport, o Haymarket – na altura, uma coisa parecida ao que, agora, quarenta anos depois, fizemos no Mercado de Campo de Ourique e no Mercado da Ribeira – o Museu da Ciência, o Aquário, a Quincy Bay, e o Charles River com seus parques; Harvard e os espaços amplos das suas escolas e campus, que tinham sido o cenário de um filme de grande sucesso de anos antes, o Love Story; Rockport, Gloucester e Lynn, a norte de Boston; Cape Cod, Falmouth e Martha’s Vineyard, para sul. E, depois, os dias passados em família, nessa sempre espantosa Nova Iorque e na viagem de ida-e-volta pelos Estados de Rhode Island, Connecticut, Nova Iorque e Massachusetts, tudo em animada alegria na station wagon, muito americana, que eles tinham – no carro, éramos nove ao todo, cinco adultos e quatro crianças. Inesquecíveis essas semanas de estadia na Craigie Street 50, onde era o bloco de apartamentos em que viviam nos arredores de Boston.

Ele podia ter ficado por lá. Era muito qualificado e teve convites para isso. Mas preferiu vir. Escolheu sempre Portugal.

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A alma descansada que o Fernando sempre foi era também fermento de ânimo e de optimismo. Contagiava. Não contrastava com ninguém, nem nunca o ouvi ou senti interrogar-se por que era assim e outros não. Era assim. E usava essa força como uma força da sua própria natureza, sem grandes interrogações e nenhuma metafísica. Era essencialmente um espírito prático. Uma alavanca.

O seu encontro com Deus foi bastante natural. E era estreito – claramente próximo e íntimo. Sentia-se isso. Talvez fosse daí que lhe vinha aquela alma tão descansada e aquele transbordo constante de ânimo e optimismo. Era um espírito confiante – um espírito prático e confiante.

Digo “talvez fosse daí”, porque honestamente não sei – faço apenas uma conjectura. A nossa proximidade era tão grande que podíamos estar longos tempos sem nos vermos, mas sabíamos sempre tudo o essencial dum e doutro. Tínhamos aquilo que chamo de T.S.F., telefonia sem fios, uma espécie de telepatia, que nos permite comunicar, até ao nível emocional, e rir e chorar, sem qualquer necessidade de nos estarmos a ver.

Mas disso, da fonte da sua alma descansada e do seu ânimo transbordante, nunca falámos. E, de facto, não sei. Era um segredo próprio dele – e nunca lhe perguntei. Sinal de que, mesmo entre os mais próximos dos próximos, nunca ninguém sabe tudo do outro.

Obrigado, Fernando. T.S.F., meu irmão!

José RIBEIRO E CASTRO


O Fernando, meu irmão

terça-feira, 22 de março de 2016

Fernando, o meu irmão

Nós os dois, numa evocação do nosso pai, em 18 de Maio de 2013.
A doença, que vitimou o meu irmão, tinha-lhe sido detectada três meses antes.
Faleceu em 20 de Março de 2014.

No domingo passado, passaram dois anos sobre a morte do meu irmão. O Fernando morreu novo. Tinha 61 anos. Cá em casa, temos o hábito de contribuir para o equilíbrio da Segurança Social. O meu irmão nunca chegou a reformar-se – creio que não gostaria de o fazer. O nosso pai também: morreu igualmente aos 61 anos. A nossa mãe também não foi encargo público: morreu com 49 anos. Para já, sou o único que vou destoando: fiz 62 no último Natal.

Nestes dois anos, tenho-o lembrado muitas vezes. Custa-me obviamente que a doença o tenha levado de forma traiçoeira e algo acelerada. Eu não estava a contar - nem ele. Mas lembro-me dele sem dor. Lembro-o como uma memória viva que me acompanha. Às vezes parece uma segunda pele, interior. Lembrá-lo é tê-lo comigo.

Em causas cívicas que prossigo, de que algumas também eram dele, essa é uma forma de continuarmos lado a lado, com uma grande cumplicidade. Fazíamos 1 ano e meio de diferença, ele mais velho. Aqueles que sejam dois irmãos com esta diferença de idades, entendem certamente bem o que quero dizer quando falo de "cumplicidade". Crescemos assim. Há dias, vi um vídeo de brincadeiras dos meus dois netos mais novos, ainda bebés, um com 2 anos e meio, o outro com 1 ano e 3 meses – dei comigo a sorrir muito, ao ver como a relação entre eles é a mesma que o Fernando e eu tínhamos.

Essa cumplicidade não acabou. Ficou coxa, desasada, mas não acabou.

Faz-me falta a gargalhada do Fernando. Essa, sim, faz-me falta, porque não a consigo ouvir, nem articular-me com ela. Imaginar não é a mesma coisa.

Faz-me falta esse vulcão de optimismo e de confiança que ele era. Os aborrecimentos, que os teve, não duravam muito no seu espírito, nem conseguiam poluir a sua maneira de ser. Era quase sempre alavanca de ânimo, espírito positivo. Às vezes, irritava de tão positivo que era.

Brincávamos muito um com outro, quando estávamos juntos. Nos dias bons, o non sense, a ironia e o disparate pelo prazer do disparate eram grandes desopiladores, preciosos instrumentos de reconstrução interior. Era frequente contagiarmo-nos um ao outro – a gargalhada era o abre-latas do mau humor. Sumia.

Foi um excelente aluno, grande oficial de Marinha, sólido engenheiro, dedicado professor. Entregou-se de alma e coração, nos últimos anos da sua vida, a uma paixão: a economia do Mar. Uma paixão, que é uma necessidade de Portugal. Oxalá não desfaleça. Para navegar, os barcos e os navios precisam sempre de remos, ou de vento, ou de motor com combustível. Ele era essa energia. E conhecia o rumo.


domingo, 22 de março de 2015

O meu irmão


Fez na passada sexta-feira, 20 de Março, um ano que o meu irmão morreu. Tinha 61 anos, a idade que eu tenho agora. Um cancro levou-o. De repente, assim no espaço de um ano. Já falei disso, há um ano.

Na missa de anteontem, em São Domingos de Rana – a sua Rua Sésamo –, falei do luto, de como as palavras vão lavando a tristeza e o vazio e deixando apenas o rasto que inspira e a presença. Sempre a presença - vaga, mas real. É uma coisa pascal, quadra que vivemos nesta altura: damo-nos conta de que é quando vemos que não é, sentimos que está quando reparamos que já não está. Foi assim com as mulheres cristãs que primeiro viram o túmulo vazio; e é assim com todos nós, quanto aos nossos que lembramos partidos.

Falei também dos seus filhos, treze irmãos: o Miguel, a Catarina, a Filipa, o Rodrigo, o João, a Madalena, a Carmo, o Marcos, o David, o Bernardo, o Samuel, o Lourenço e a Teresa. Foi este currículo que fez dele o fundador, o grande animador e o primeiro presidente da APFN – Associação Portuguesa das Famílias Numerosas, uma obra e um legado extraordinários. E também o líder europeu da ELFAC – European Large Families Confederation.

Diversamente dos meus sobrinhos, eu não tenho mais nenhum irmão. Éramos só o Fernando e eu. Não tinha escolha, nem ele. Não tínhamos “irmãos p’rá troca”, mas apenas a nós os dois. Talvez isso fizesse crescer entre nós uma cumplicidade fortíssima. Mesmo nos tempos de silêncio e de distância.

Em criança, zangámo-nos muitas vezes e bulhámos outras tantas. A espécie humana não é imune à luta animal pelo território; também isso temos de aprender a ocupar e a partilhar, a descobrir o que é reservado e o que é comum. Mas tínhamos, e desenvolvemos, uma cumplicidade fortíssima. E, talvez porque, nos conflitos, não tínhamos mais nenhum outro a quem recorrer, nem para pedir consolo, ou apoio, ou abrigo, nem para buscar uma qualquer arbitragem, soubemos – e aprendemos – que era entre nós os dois, mesmo, que tínhamos de reencontrar a paz e os seus termos. Só nós dois podíamos resolver os problemas que nós dois havíamos gerado ou entre nós dois haviam surgido. Nunca ficou nenhum por resolver.

Éramos diferentes. Por isso, complementares – nunca me lembro de rivais, nem eu dele, nem ele meu. Éramos uma parelha bem-disposta. É esse espírito e essa memória que tenho presente quando me empenho na instituição do Dia dos Irmãos, um projecto APFN e ELFAC. (Já agora, assine também a petição nacional e as internacionais.)

Ele era o mais velho e, desde muito miúdo, manifestamente engenheiro. Muitas engenharias fizemos lá em casa!

Uma vez, teríamos entre 11 e 13 anos – estaríamos, portanto, em 1965 ou por aí – resolvemos modernizar a casa e o conforto do nosso quarto. O meu pai, que era melómano, havia comprado, uns anos antes, um pick-up (assim se dizia) Blaupunkt, que era o seu orgulho: um móvel rádio e gira-discos, estereofónico, o último grito das maravilhas da técnica alemã. Tinha um pequeno inconveniente o aparelho: só dava para ouvir música na sala-de-estar. 

Lembrámo-nos, por isso, de instalar uma extensão para o nosso quarto. Comprámos longos metros de fio eléctrico, duas pequenas colunas de som em segunda mão e pregos e braçadeiras em abundância. E com mestre engenheiro à frente e eu de operário aprendiz, esventrámos a parte traseira do pick-up Blaupunkt do meu pai e ligámos as suas colunas estereofónicas ao fio eléctrico, que meticulosamente estendemos, em duplicado, até ao nosso quarto, bordejando os rodapés e os alizares (i.e., as ombreiras) das portas de passagem. Chegada a ligação ao nosso quarto, foi ligar as extremidades dos dois fios às novas colunas adquiridas – e aí estava a estereofonia a soar em pleno no nosso quarto. Uma revolução tecnológica nos anos ’60!

Como eram os pick up Blaupunkt do final dos anos '50
O que mais nos surpreendeu, ao fim do dia, é que o nosso pai não se zangou muito, ao chegar a casa e a minha mãe, que tinha estado fora o dia todo enquanto os dois operários trabalhavam, lhe mostrar a novidade. Ralhou um pouco, mas não demasiado. Sobretudo não mandou desmontar o inovador engenho – ganhámos! E até nos pareceu ouvir risota entre a mãe e o pai, fechados no quarto deles. Sempre nos ficou a ideia de que o meu pai ficou dividido entre a lesão traseira infligida ao seu prodigioso pick-up Blaupunkt e a admiração pelo engenho inventivo das suas adoráveis criancinhas. 

A qualidade do trabalho era, aliás, magnífica: o som funcionava quer na sala (o que o meu pai logo quis verificar), quer no quarto; e o fio estendido pela casa fora estava cuidadosamente pregado a rodapés e alisares, sem que a coisa chocasse minimamente. Um trabalho de categoria!

Uns dias depois, face à tolerância paterna, resolvemos introduzir mais um melhoramento – isto é, decidiu o meu irmão e eu fui atrás de aprendiz. Acrescentámos mais um circuito de fio, por aquela extensão toda, que interrompia o circuito de alimentação eléctrica do rádio. Assim, manejando no nosso quarto um pequeno interruptor de candeeiro, que adquirimos para o efeito, podíamos ligar e desligar o rádio à distância, sem termos que nos levantar. É certo que não dava para manejar o gira-discos, nem para mudar de estação de rádio; mas tínhamos música em directo a partir da nossa estação preferida, sempre que queríamos. Um telecomando da década de ’60, novo prodígio tecnológico!

Tudo o que sei de bricolage – e muita coisa aprendi e faço – devo-o a essa relação com o meu irmão. Imaginação e inventiva, em que éramos ambos bons, conjugadas com engenharia, que era o seu ofício inato. Fizemos grandes exercícios de química (para grandes sustos da nossa mãe), fizemos fotografia, muitas e variadas construções, tornámo-nos reparadores domésticos para os mais diversos usos (o que reforçava as amnistias paternas), fizemos filmes, que montámos e sonorizámos.

Depois, ele foi para engenheiro – e oficial de Marinha. E eu para outra vida.

Foi o primeiro do seu curso na Escola Naval. E, em Boston, no M.I.T. - Massachusetts Institute of Technology, de novo o primeiro do seu curso como engenheiro construtor naval. Deve-se unicamente à crise do país e ao declínio prolongado em que mergulharam as questões do mar, que não pudesse ter dado mais contributo à sua área de especialidade e excepcional vocação. Foi um grande oficial de Marinha, um estimado professor da Escola Naval, um quadro reputado do Alfeite e um engenheiro de altíssimas competências e aptidões.

Nunca desistiu do mar, que era bem mais de metade dele próprio. E os baldões da vida acabaram por o levar de volta a esse seu domínio, destacando-se como o grande motor do Fórum Empresarial para a Economia do Mar, uma convicção profunda, mais do que um emprego, já nesta última década em que Portugal parece querer voltar a reencontrar o mar que nos bordeja e nos preenche.

Mas foi na família que se tornou socialmente mais conhecido. A partir da sua família numerosa fez um promontório de luta pela família e pelos valores familiares, tornando-os mais vivos e mais sonoros, num tempo e num espaço em que precisamos tanto deles. E de porta-vozes. Foi um soldado incansável dessa causa. Uma causa que fundou e que continua. Foi aí que o Presidente da República escolheu, agora, distingui-lo a título póstumo. Obrigado.

O meu irmão foi sempre um apaixonado, irradiando optimismo, vontade e confiança.

Em tudo o que fez, o Fernando pôs a sua alma. Por isso, nos é tão fácil reencontrá-la em tanto que deixou feito. E, assim, seguir.


José Ribeiro e Castro
22 de Março de 2015

quarta-feira, 26 de março de 2014

O meu irmão Fernando. E a Leonor.


Não há muitas semanas, alguém me observou isto. Penso que foi a Margarida. Não tenho a certeza, mas acho que foi a Margarida Neto que me notou que não há um Dia do Irmão; e que tínhamos de fazer qualquer coisa para preencher esta lacuna.

É verdade: não há. Há tantos dias de tanta coisa e não existe um Dia dos Irmãos. Andei a ver na Internet – hoje, vê-se tudo na Internet. É exacto: não há mesmo, estabelecido, um Dia dos Irmãos e Irmãs. Depois de ter feito este comentário público, há dias, a seguir à morte do meu irmão, já recebi indicações de movimentos nesse sentido. Mas são notícias escassas e incertas, que já pus na Internet. Temos caminho para fazer.

O meu Dia do Irmão é 31 de Maio, o dia em que o Fernando nasceu.  Já não resistiu para chegar ao 31 de Maio deste ano. Já não chegou aos 62 anos. Partiu com a mesma idade do nosso pai, aos 61 anos. Parece-nos cedo; parece-nos mesmo muito cedo.

Quando eu nasci, o Fernando já cá estava. Sempre conheci a vida com o meu irmão. Foi o meu primeiro companheiro: um grande companheiro, um verdadeiro camarada.

Das frases que mais gostava de ouvir ao Fernando, no seu labor pelas famílias e pelas famílias numerosas em especial, aquela de que eu mais gosto e mais cito é esta: “Se queres ver uma criança feliz, dá-lhe um irmão. Se queres ver uma criança muito feliz, dá-lhe muitos irmãos.” Repito: “Se queres ver uma criança feliz, dá-lhe um irmão. Se queres ver uma criança muito feliz, dá-lhe muitos irmãos.”

É verdade. É exactamente assim. Eu só posso falar – e falo – da felicidade que é ter um irmão: uma felicidade indescritível, um tesouro de cumplicidade. Os meus filhos e, sobretudo, os meus sobrinhos, que são desse departamento, podem confirmar, e confirmam, a muita felicidade que é ter muitos irmãos, muitos irmãos.

Quando éramos crianças, tinha eu 10, ele já 12 anos de idade, Setembro de 1964, demos uma volta pela Europa com os nossos pais. De carro: um velho Taunus 17M, matrícula CI-79-16. Ao chegarmos a Saló, em Itália, nas margens do Lago Di Garda, entrando no hotel, o Touring Hotel, a recepcionista exclamou para os pais, apontando para nós: “Belli bambini! Uno como mamma, altro como papa!” A coisa deu risota, claro. E ficou como anedota repetida de brincadeiras familiares: “Uno como mamma, altro como papa!” Um seria mais parecido com a minha mãe, o Fernando; outro com o meu pai, eu próprio.

À medida que os anos foram passando, e sobretudo os quilos pesando e a convergência grisalha fazendo a maquilhagem a partir dos nossos 40 anos, fomo-nos achando cada vez mais parecidos. E eu sempre sorri muito ao ver os meus filhos ou os meus sobrinhos, diante de um gesto, de um à parte, de um comentário, de um riso, de uma piada, de um trejeito, de um repente qualquer, exclamarem, apontando para nós: “Iguais! São iguais! Iguaizinhos…”

Isso é uma grande responsabilidade para mim. Oxalá essa parecença e semelhança possa atenuar a dor e o vazio da partida do Fernando, no coração e no olhar daqueles que lhe são mais próximos. Deus queira.

*
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Nos sessenta anos que vivemos em comum este tempo, o último ano foi, para a família, carregado de novas experiências e ensinamentos. Densos, muito densos.

Fez agora um ano e um mês que foi detectada a doença que lhe foi fatal, um cancro nos pulmões da pior espécie. Foi uma terrível notícia – prognóstico ruim, mau, muito mau.

Este tempo teve dois tempos: um tempo de luta e muita esperança, sobretudo até ao Verão passado e depois ainda até Dezembro; e outro tempo de luta ainda, de esperança sempre, mas já marcado pela fatalidade, de Dezembro para cá, mais estreito desde Janeiro.

Lembro-me de ter acompanhado, não há muito, a última estrada  de uma grande amiga, a Maria José, que, nesses seus meses finais, me dizia: “Ó Zé, agora é que vamos ver se acreditamos mesmo naquilo em que andámos a dizer que acreditamos.” Ela mostrou não só acreditar, mas confiar: no Bom Pastor, de que nos deixou um testemunho formidável. O Fernando também.

Eu não sou de muitas palavras; e, nestas coisas, o Fernando também não. Entendíamo-nos sem palavras. Nestas coisas, que são difíceis e dolorosas, há como que uma “no talk rule” (uma regra de não falar) por que achamos fazer assim mais suaves estas travessias e viagens, afastando as más notícias.

De Dezembro para cá, desde antes do Natal, o caminho tornou-se mais duro e apertado. E, nas nossas conversas, com o Fernando e, às vezes, também com a Leonor, os véus foram caindo a pouco e pouco. Do que sabíamos e desconfiávamos; ou temíamos. Foi-se passando do “sei que tu sabes” ou “tu sabes que eu sei”, para “tu sabes que eu sei que tu sabes” e, mais à frente, para “tu sabes que eu sei que tu sabes que eu sei”.

A cada um destes véus que caía, era preciso, interiormente, fazer um luto – o outro, afinal, também sabia – e, ao mesmo tempo, recuperar o fôlego, manter e alimentar a esperança para seguir o caminho. Em frente. O Fernando foi exemplar nessa estrada de fé e testemunho. E a Leonor também. E os meus sobrinhos.

Na penúltima vez que almoçámos juntos, perto do seu trabalho, o Fernando contou-me como, aquando de uma das suas últimas crises, a meio de Fevereiro, morreu uma senhora na cama ao seu lado, no 6º andar do I.P.O., onde era assistido e socorrido nos sobressaltos que lhe aconteciam, cada vez mais frequentes. E pela forma como me contou, com pormenor, as conversas da Leonor e dele com a senhora, e com a sua filha, como a senhora voltara a rezar, a sua breve agitação final e o repentino momento sereno da partida, eu percebi que o Fernando, nesse almoço, desse dia, me estava a querer dizer que pedia a Deus que, na sua terrível doença,  lhe desse uma morte assim: que, chegada a hora, o chamasse de uma vez só.

Acredito que Deus lhe correspondeu. Ainda na terça-feira da semana passada, ao fim do dia, em sua casa em S. Domingos, rimos e planeámos coisas como se não houvesse fronteira. Na quarta-feira, faz hoje uma semana, teve o seu último Dia do Pai – merecia-o: Pai foi sempre o seu posto principal – e foi trabalhar, fora de casa; foi também à missa por S. José na Igreja de S. José. Na quinta-feira, o seu último dia, todos contam que esteve muito bem e activo de manhã, a trabalhar em casa; e, depois, à tarde, passou mal, voltou de urgência ao I.P.O., onde nos juntámos todos – e Deus chamou-o. Não sofreu muito. Graças a Deus.

Por curiosidade, nesse mesmo último dia, quinta-feira, à noite, na Internet (hoje, vê-se tudo na Internet), fui ler o Salmo da missa do dia da partida do meu irmão. Diz assim, o Salmo do dia 20 de Março:
«Feliz o homem que não segue o conselho dos ímpios,
nem se detém no caminho dos pecadores,
antes põe o seu enlevo na lei do Senhor
 e nela medita dia e noite.»
Pelo Fernando, não tenho dúvida alguma: estava preparado. Assim Deus o receba na Sua graça – e o Fernando possa já estar na companhia da nossa mãe e do nosso pai, que também partiram cedo.

Imagino até que, neste reencontro, uma vez que o Fernando foi sepultado de novo fardado como Capitão-de-Fragata, o nosso pai tenha ido logo verificar se trazia as meias bem calçadas. Há uma história, na verdade, que ilustra bem uma das facetas do temperamento do meu irmão.

Um dia, aluno ainda da Escola Naval, já depois da Páscoa, foi a casa trajando a farda de Verão, a farda branca da Marinha. Ao sentar-se e cruzar a perna, o pai, que era bom observador, notou que o Fernando trazia calçadas meias diferentes: uma curta e outra de cano alto. E disse-lhe: «Ó Fernando, tens que ter cuidado. Estás com meias diferentes.» Resposta pronta do Fernando: «Ó Pai, o Regulamento diz que as meias têm que ser brancas, não diz que têm que ser iguais.»

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O Fernando foi um grande homem. O melhor irmão que eu tive – não houve igual. Foi bom marido e um grande pai e avô. Um tio querido dos meus filhos. Um óptimo companheiro de toda a gente, um camaradão. Um bom carácter, um homem simples. Um aluno brilhante e um profissional distinto. Um excelente professor da Escola Naval. Um militar dedicado e marinheiro de eleição, a sua grande vocação. Nas curvas, e contracurvas, e percalços da vida, agradeço que o Fernando  possa ter morrido de novo ao serviço do mar, embora agora em capacidade civil, regressando ao seu território, no Fórum que dirigia – o Fernando era verdadeiramente um homem do mar. Foi o “penico” do seu curso de Marinha (para quem não saiba, “penico” é o primeiro do Curso) e o primeiro também no exigente M.I.T., em Boston, Massachusetts. Foi um grande engenheiro – desde garoto que o conheci como um “engenhocas” de grande capacidade inventiva e de solução de problemas. Fizemos inesquecíveis brincadeiras de engenharia. E era ainda um mais competente e brilhante profissional.

Foi um lutador, um lutador incansável. Uma fonte inesgotável de alegria, de optimismo e de confiança. Um homem de grandes capacidades cívicas, que pôs ao serviço da sociedade e do país, com  grande generosidade e capacidade de entrega.

Na quinta-feira à noite também, na Internet (hoje, vê-se tudo na Internet), li este título: «Morreu o “pai” das Famílias Numerosas» – era o título da notícia da Rádio Renascença online. É verdade. Todos sabemos a obra ímpar que imaginou e concretizou, concebendo, lançando e fortalecendo a APFN em Portugal. E eu pude ver (e ter o privilégio de, às vezes, acompanhar) o trabalho extraordinário que desenvolveu e edificou por toda a Europa, na ELFAC – European Large Families Confederation, e a forma como era tão estimado e tão admirado em muitos países europeus.

Fosse na temática familiar, na causa da Vida, na militância católica – De Colores! –, na visão do Mar como grande desígnio do país, ou noutras causas calorosas que abraçou na sua vida, o Fernando povoou o terreno de sinais: fez muitos amigos, incontáveis amigos, e deixou muitas sementes, inumeráveis sementes. Deixou muito por fazer. São coisas que temos de continuar.

Ainda bem que é assim. Ainda bem que nos deixou muito para fazer. É sempre bom sabermos o que temos para fazer; e para onde.

Graças a Deus.

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Umas palavras finais com alguns agradecimentos.

Na missa de encomendação, exprimi os agradecimentos da família ao município de Cascais – que foi o município do meu irmão -, à Marinha – que foi sempre o seu povo – e à Igreja, que somos todos os cristãos – Igreja que sempre acolheu o Fernando e onde ele sempre se sentiu cada vez melhor.

Junto mais alguns agradecimentos. À freguesia de S. Domingos de Rana, que era a sua Sesame Street familiar (a sua Rua Sésamo, de à vontade, pertença e confiança), onde passámos férias da nossa juventude, onde conheceria a Leonor, onde sempre viveram com todos os filhos quando por cá – e ficou, em definitivo, a ser a sua terra. Um agradecimento também ao Sistema Nacional de Saúde, em especial aos médicos, enfermeiras e auxiliares que o trataram e socorreram, sobretudo neste último ano tão exigente, a todos os que puseram o sistema de pé, o desenvolvem e mantêm, apesar das dificuldades – sem o sistema de Saúde, nós não teríamos como.

Enfim, uma palavra para a Leonor. Os meus pais foram padrinhos de casamento da Leonor e do Fernando, em 2 de Junho de 1973. Em representação da mãe e do pai, que já não estão cá para o fazerem directamente, eu quero agradecer à Leonor a felicidade que deu e partilhou com o Fernando, o amor e a coragem incondicionais de vida inteira e total, desde aquele primeiro dia adolescente junto ao nicho de Santo António, nos Gafanhotos, até ao leito da morte propriamente dito, no cubículo discreto da urgência do I.P.O. Eu sou testemunha. Alguns de nós, amigos e familiares aqui presentes, estivemos em S. Domingos de Rana nas Bodas de Prata do Fernando e da Leonor, em 1998. No passado dia 20 de Março deste ano, 2014, a Leonor e o Fernando celebraram também as suas Bodas de Diamante: de diamante, porque são rijas, porque são eternas e porque brilham. Hoje, é também o 7º dia dessa festa.

Graças a Deus.

José Ribeiro e Castro
Lisboa, Santa Maria de Belém, quarta-feira, 26 de Março de 2014

terça-feira, 25 de março de 2014

Dia dos Irmãos e Irmãs


Depois das palavras que disse, aquando da morte do meu irmão Fernando, lembrando uma conversa com a Margarida Neto, a ideia do “Dia do Irmão” pegou por aí. Tenho recebido reacções e apoios. Uma sobrinha-neta minha, a Andreia, já começou mesmo uma página no Facebook: "Queremos o Dia do Irmão". Foi ela que me convidou para aderir - e já aderi. E a Margarida Neto também me diz querer não largar o assunto. Voltámos a falar, ontem.

Num comentário num post no meu mural do Facebook (hoje, de facto, vê-se tudo pela internet…), indicaram-me que já havia um Brothers and Sisters Day nos Estados Unidos, a que se somou, mais tarde, outro comentário, acrescentando que o mesmo se passaria no Brasil.

Fui, por isso, fazer uma busca mais demorada e usando também outras línguas, nomeadamente o inglês. Em espanhol, francês, alemão ou italiano, não encontrei nada de novo ou diferente.

Como disse no meu texto inicial, só tinha encontrado referências a um Dia do Irmão, na Índia, celebrado a 5 de Setembro - e com indicações muito escassas e incertas. Ver: aqui; ou aqui; ou aqui.

A indicação fornecida para a escolha desta data é a de que foi escolhida por ser o 10º aniversário da morte de Madre Teresa de Calcutá, que efectivamente faleceu a 5 de Setembro de 1997. Ora, salvo o devido respeito, isto não faz muito sentido, por duas razões: primeiro, o dia é sempre o mesmo, seja o primeiro, o segundo … o décimo ou o centésimo aniversário; e, segundo, não se intui facilmente, nem se percebe muito bem o que é que a morte de Madre Teresa de Calcutá tem a ver com a celebração dos irmãos no sentido familiar ou biológico do termo.

Vasculhando por aí, verifiquei que é esta data também que estará a chegar ao Brasil e é referida nalgumas fontes brasileiras. Uma fonte pergunta: «você viu na novela né?» E outra fonte comenta: «Na cultura da Índia é dia 5 de Setembro. Como o Brasil importa tudo, tem uns birutas tentando emplacar isso aqui.» Mas há quem não esteja sequer muito certo da coisa: aqui. Enquanto um outro procurou lançar um "Dia do Irmão", a fim de tentar localizar os seus irmãos que não conhecia - e acabou por desistir: aqui.

Penso que essa história do "10º aniversário" será provavelmente outra: terá correspondido à primeira vez em que se assinalou esse "Dia do Irmão" ou a fonte deu por isso, em 5 de Setembro de 2007. E, depois, o mal-entendido prosseguiu, como é habitual nestas coisas da internet, quando são mal verificadas e não estudadas. 

E, buscando melhor, nomeadamente numa fonte católica credível (o Zenit), sou levado a pensar que este 5 de Setembro – que, em qualquer caso, é muito recente e creio que não oficialmente assumido de forma significativa, nomeadamente a nível internacional – celebra o “irmão” no sentido cristão, evangélico e espiritual (todos somos irmãos em Cristo) e não no sentido de celebração da relação familiar propriamente dita a que me referi e que procuro. É o que, na verdade, se lê e verifica claramente por aqui - e, nesta perspectiva, a relação com a extraordinária figura de Teresa de Calcutá já faz todo o sentido.

Porém, entre fontes brasileiras, há quem situe esta mesma data como tendo origem no Nepal e a relacione com cerimoniais hindus - ver aqui. Teríamos que investigar melhor as singularidades da cultura nepalesa e o rigor dessa informação, para verificar se a data viajou do Nepal para a Índia (a que está ligada a vida e obra de Madre Teresa de Calcutá) ou se, ao contrário, foi da Índia que passou também ao vizinho Nepal. E apurar em definitivo, ao mesmo tempo, se esse 5 de Setembro tem a explicação acima relatada ou outra qualquer com origem na cultura nepalesa ou, mais amplamente, hindu.

Nos Estados Unidos é que, na verdade, encontrei outras notícias sobre o nosso dia no sentido de família: o Dia do Irmão, como dele falei, ou, para ser mais completo e exacto, um Dia dos Irmãos e Irmãs.

De facto, há um Brothers and Sisters Day, para que Irene Grais me alertou, no seu comentário no meu mural do Facebook. Há até uma página-portal na Internet. Será um dia que se celebra no último sábado do mês de Março, nalguns lugares norte-americanos – neste ano, portanto, festeja-se já no próximo sábado, 29 de Março de 2014. É uma iniciativa muito recente, que começou em 2007, e resulta do impulso particular de uma mulher em homenagem a um seu irmão falecido: «a woman who realized - too late - when her brother died, that she had never let him adequately know how much he meant to her.» Também tem página no Facebook, além do portal próprio. A sua oficialidade é duvidosa e a divulgação parece ainda fraca.

Para complicar as coisas, há outros datas para que se reclama a mesma celebração, também nos Estados Unidos.

Há fontes que situam um outro Brothers and Sisters Day a 2 de Maio, não tendo ainda conseguido descobrir nem o porquê deste dia, nem a extensão e efectividade que esta celebração já terá. As fontes não são muitas: ver aqui e aqui. Também parece ser uma coisa muito recente e ainda em movimento. Uma fonte italiana também aponta para este dia - Giorno dei Fratelli e delle Sorelle - embora esta fonte, isoladamente, não pareça muito fiável.

E aparece ainda um Siblings Day ou Dia dos Irmãos ("siblings” é o nome colectivo em Inglês para “irmãos” sem distinção de género), que se celebra, anualmente, a 10 de Abril.  Também resultou de uma iniciativa particular de uma mulher (Claudia Evart), em homenagem a um irmão e a uma irmã que faleceram tragicamente (ambos em acidentes). Este dia também é de invocação muito recente, desde 1997, e já terá alguma expressão nos Estados Unidos da América, embora ainda sem adopção oficial. Há uma fundação que o promove, a Siblings Day Foundation (com portal na internet e página no Facebook), e também é mais conhecido como National Siblings Day (Dia Nacional dos Irmãos). O dia 10 de Abril era o dia de anos da irmã Lesette Evart, como é explicado neste vídeo por Claudia Evart, a dinamizadora do movimento - ver também no YouTube.

Este é, portanto, como consegui recolher até este momento, o estado da arte.

Tirando o 5 de Setembro, que celebrará os “irmãos” noutro sentido (o sentido evangélico e cristão), temos já estas datas em circulação, tudo carecendo de melhor verificação e prova: o último sábado de Março (em dia móvel, portanto), o dia 10 de Abril e o dia 2 de Maio.

Temos já muito por onde escolher e a que nos associarmos, para instituirmos capazmente e passarmos a celebrar, como faz falta, o Dia dos Irmãos e das Irmãs. Ou, então, temos que fixar outra data, que faça mais sentido e tenha mais sólidos fundamentos na nossa avaliação. A meu ver, é muito importante que nos fixemos numa data que tenha condições para a respectiva internacionalização.

Até lá, como disse, o meu Dia do Irmão é 31 de Maio. É o dia em que nasceu o meu irmão Fernando. É também o último dia do mês de Maio (mês de Maria, que é, para os cristãos, a Mãe de todos). É a véspera do dia 1 de Junho, Dia Mundial da Criança – e como é mais feliz a criança se, desde a véspera, sabe que tem irmãos e/ou irmãs ou os vai ter. Como dizia o meu irmão Fernando, presidente e fundador da APFN e da ELFAC: «Se queres ver uma criança feliz, dá-lhe um irmão. Se queres ver uma criança muito feliz, dá-lhe muitos irmãos.»

Temos que nos organizar, auscultar e escolher. E, depois, instituir e fazer instituir o "Dia do Irmão" ou, mais exactamente, "Dia dos Irmãos e Irmãs".


sexta-feira, 21 de março de 2014

O meu irmão Fernando


Não há muitas semanas que alguém me observou isto. Penso que foi a Margarida. Não tenho a certeza, mas acho que foi a Margarida Neto que me notou que não há um Dia do Irmão; e que tínhamos de fazer qualquer coisa para preencher esta lacuna.

É verdade: não há um Dia do Irmão. Há tantos dias de tanta coisa e não há um Dia do Irmão. Andei a ver na Internet – hoje, vê-se tudo na Internet. É verdade: não há mesmo um Dia do Irmão. Parece que, na Índia ou no Nepal, se celebra um 5 de Setembro ou coisa assim. Mas, mesmo essas, são notícias escassas e incertas. 

O meu Dia do Irmão é 31 de Maio, o dia em que o Fernando nasceu.  Já não resistiu para chegar ao 31 de Maio deste ano. Já não chegou aos 62 anos. Partiu com a mesma idade do nosso pai, aos 61 anos. Parece-nos cedo; parece-nos muito cedo. 

Quando eu nasci, o Fernando já cá estava. Sempre conheci a vida com o meu irmão. Foi o meu primeiro companheiro: um grande companheiro, um verdadeiro camarada.

Das frases que mais gostava de ouvir ao Fernando, no seu labor pelas famílias e pelas famílias numerosas em especial, aquela de que eu mais gosto e mais cito é esta: “Se queres ver uma criança feliz, dá-lhe um irmão. Se queres ver uma criança muito feliz, dá-lhe muitos irmãos.” Repito: “Se queres ver uma criança feliz, dá-lhe um irmão. Se queres ver uma criança muito feliz, dá-lhe muitos irmãos.”

É verdade. É exactamente assim. Eu só posso falar – e falo – da felicidade que é ter um irmão: uma felicidade indescritível, um tesouro de cumplicidade. Os meus filhos e, sobretudo, os meus sobrinhos, que são desse departamento, podem confirmar, e confirmam, a muita felicidade que é ter muitos irmãos, muitos irmãos.

Quando éramos crianças, tinha eu 10, ele já 12 anos de idade, Setembro de 1964, demos uma volta pela Europa com os nossos pais. De carro: um velho Taunus 17M, matrícula CI-79-16. Ao chegar a Saló, em Itália, nas margens do Lago Di Garda, entrando no hotel, o Touring Hotel, a recepcionista exclamou para os pais, apontando para nós: “Belli bambini! Uno como mamma, altro como papa!” A coisa deu risota, claro. E ficou como anedota repetida de brincadeiras familiares: “Uno como mamma, altro como papa!” Um seria mais parecido com a minha mãe, o Fernando; outro com o meu pai, eu próprio.

À medida que os anos foram passando, e sobretudo os quilos pesando e a convergência grisalha fazendo a maquilhagem a partir dos nossos 40 anos, fomo-nos achando cada vez mais parecidos. E eu sempre sorri muito ao ver os meus filhos ou os meus sobrinhos, diante de um gesto, de um à parte, de um comentário, de um riso, de uma piada, de um trejeito, de um repente qualquer, exclamarem a rir, apontando para nós: “Iguais! São iguais! Iguaizinhos…”

Isso é uma grande responsabilidade para mim. Oxalá essa parecença e semelhança possa atenuar a dor e o vazio da partida do Fernando, no coração e no olhar daqueles que lhe são mais próximos. Deus queira.

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Nos sessenta anos que vivemos em comum, este tempo, o último ano, foi, para a família, carregado de novas experiências e ensinamentos. Densos, muito densos.

Faz agora um ano e um mês que foi detectada a doença que lhe foi fatal. Foi uma terrível notícia – prognóstico ruim, mau, muito mau.

Este tempo teve dois tempos: um tempo de luta e muita esperança, sobretudo até ao Verão passado e depois ainda até Dezembro; e outro tempo de luta ainda, de esperança sempre, mas já marcado pela fatalidade, de Dezembro para cá, mais estreito desde Janeiro.

Lembro-me de ter acompanhado, não há muito, a última estrada  de uma grande amiga, a Maria José, que, nesses seus meses finais, me dizia: “Ó Zé, agora é que vamos ver se acreditamos mesmo naquilo em que andámos a dizer que acreditamos.” Ela mostrou não só acreditar, mas confiar: no Bom Pastor, de que nos deixou um testemunho formidável. O Fernando também.

Eu não sou de muitas palavras; e, nestas coisas, o Fernando também não. Entendíamo-nos sem palavras. Nestas coisas, que são difíceis e dolorosas, há como que uma “no talk rule” (uma regra de não falar) por que achamos fazer assim mais suaves estas travessias e viagens, afastando as más notícias.

De Dezembro para cá, desde antes do Natal, o caminho tornou-se mais duro e apertado. E, nas nossas conversas, com o Fernando e, às vezes, também com a Leonor, os véus foram caindo a pouco e pouco: do que sabíamos e desconfiávamos; ou temíamos. Foi-se passando do “sei que tu sabes” ou “tu sabes que eu sei”, para “tu sabes que eu sei que tu sabes” e, mais à frente, para “tu sabes que eu sei que tu sabes que eu sei”

A cada um destes véus que caía, era preciso, interiormente, fazer um luto – o outro, afinal, também sabia – e, ao mesmo tempo, recuperar o fôlego, manter e alimentar a esperança para seguir o caminho. Em frente. O Fernando foi exemplar nessa estrada de fé e testemunho. E a Leonor também. E os meus sobrinhos.

Na penúltima vez que almoçámos juntos, perto do seu trabalho, o Fernando contou-me como, aquando de uma das suas últimas crises, a meio de Fevereiro, morreu uma senhora na cama ao seu lado, no 6º andar do I.P.O., onde era assistido e socorrido nos sobressaltos que lhe aconteciam, cada vez mais frequentes. E, pela forma como me contou, com pormenor, as conversas da Leonor e dele com a senhora, e com a sua filha, como a senhora voltara a rezar, a sua breve agitação final e o momento sereno da partida, eu percebi que o Fernando, nesse almoço, desse dia, me estava a querer dizer que pedia a Deus que, na sua terrível doença, lhe desse uma morte assim: que, chegada a hora, o chamasse de uma vez só.

Acredito que Deus lhe correspondeu. Ainda na passada terça-feira, ao fim do dia, aqui em S. Domingos, rimos e planeámos coisas como se não houvesse fronteira. Na quarta-feira, teve o seu último Dia do Pai – merecia-o: Pai foi sempre o seu posto principal – e foi trabalhar, fora de casa. Na quinta-feira, ontem, o seu último dia, todos contam que esteve muito bem e activo de manhã, a trabalhar em casa; e, depois, à tarde, passou mal, voltou ao I.P.O., onde nos juntámos, e Deus chamou-o. Não sofreu muito. Graças a Deus.

Por curiosidade, ontem mesmo, quinta-feira, à noite, na Internet (hoje, vê-se tudo na Internet), fui ler o Salmo da missa do dia da partida do meu irmão. Reza assim, o Salmo do dia 20 de Março: 
«Feliz o homem que não segue o conselho dos ímpios,
nem se detém no caminho dos pecadores,
antes põe o seu enlevo na lei do Senhor
e nela medita dia e noite.» 
Pelo Fernando, não tenho dúvida alguma. Estava preparado. Assim Deus o receba na Sua graça – e o Fernando possa já estar na companhia da nossa mãe e do nosso pai, que também partiram cedo.

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O Fernando foi um grande homem. O melhor irmão que eu tive – não houve igual. Foi bom marido e um grande pai e avô. Um tio querido dos meus filhos. Um óptimo companheiro de toda a gente, um camaradão. Um bom carácter, um homem simples. Um aluno brilhante e um profissional distinto. Um excelente professor da Escola Naval. Um militar dedicado e marinheiro de eleição, a sua grande vocação. Nas curvas, e contracurvas, e percalços da vida, agradeço que o Fernando  possa ter morrido de novo ao serviço do mar, embora agora em capacidade civil, regressando ao seu território, no Fórum que dirigia – o Fernando era verdadeiramente um homem do mar. Foi o “penico” do seu curso de Marinha (para quem não saiba, “penico” é o primeiro do curso) e o primeiro também no exigente M.I.T., em Boston, Massachusetts. Foi um grande engenheiro – desde garoto que o conheci como um “engenhocas” de grande capacidade inventiva e de solução de problemas. Fizemos inesquecíveis brincadeiras de engenharia. E era ainda um mais competente e brilhante profissional.

Foi um lutador, um lutador incansável. Uma fonte inesgotável de alegria, de optimismo e de confiança. Um homem de excepcionais capacidades cívicas, que pôs ao serviço da sociedade e do país, com  grande generosidade e capacidade de entrega.

Ontem à noite também, na Internet (hoje, vê-se tudo na Internet), li este título: «Morreu o “pai” das Famílias Numerosas» – era o título da notícia da Rádio Renascença online. É verdade. Todos sabemos a obra ímpar que imaginou e concretizou, concebendo, lançando e fortalecendo a APFN em Portugal. E eu pude ver (e ter o privilégio de, às vezes, acompanhar) o trabalho extraordinário que desenvolveu e edificou por toda a Europa, na ELFAC – European Large Families Confederation, e a forma como era tão estimado e tão admirado em muitos países europeus.

Fosse na temática familiar, na causa da vida, na militância católica – De Colores! –, na visão do Mar como grande desígnio do país, ou noutras causas calorosas que abraçou na sua vida, o Fernando povoou o terreno de sinais: fez muitos amigos, incontáveis amigos, e deixou muitas sementes, inumeráveis sementes. Deixou muito por fazer. São coisas que temos de continuar.

Ainda bem que é assim. Ainda bem que nos deixou muito para fazer. É sempre bom sabermos o que temos para fazer; e para onde. 

Graças a Deus.


José Ribeiro e Castro
S. Domingos de Rana, sexta-feira, 21 de Março de 2014