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quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Eu sei o que fizeste no Natal passado

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de José Ribeiro e Castro, hoje saído no jornal i.
Os partidos chegaram a um tal estado em Portugal que os deputados, individualmente e como corpo, não mandam nada.
Eu sei o que fizeste no Natal passado

O Presidente da República fez bem em vetar a polémica lei de financiamento dos partidos. Foi pontual e preciso. Fez bem na substância, ao travar a lei. E fez bem na forma, poupando os partidos e a Assembleia ao açoitamento público a que se sujeitaram.

Se o Presidente tivesse ido mais longe, teria errado duas vezes: uma, teria feito o que já não era preciso; outra, teria aberto um conflito institucional severo que deixaria na sombra o único tema verdadeiro – o gritante erro parlamentar. O laconismo do Presidente não foi, portanto, clemência, nem, muito menos, complacência. Foi economia e pontaria.

Agora, nada será como dantes. Os temas mais controversos da lei – a isenção total de IVA e a angariação de fundos sem limites – ficaram certamente pelo caminho. E tudo o que se quis negociar em segredo será impossível de regressar a esse recato. Mal reabrir o processo, haverá mil olhos e outros tantos ouvidos, à espreita e à escuta. Costuma ser assim: aquilo que se esconde acaba sempre por revelar-se com estrondo; e nunca mais recupera a discrição que, nalgumas fases, poderia adequar-se.

O estranho é como a Assembleia da República pôde cometer colectivamente um erro desta magnitude. E estranho é como pôde imaginar-se que uma lei sobre uma matéria destas poderia ser tramitada e aprovada a pé ligeiro e à queima-roupa, assobiando o Jingle Bells, Jingle Bells pela Rua de São Bento acima, sem que ninguém se desse conta.

No ramerrame das muitas coisas e coisinhas do dia-a-dia, perdeu-se já extensamente a noção do que é a representação parlamentar e o devido processo legislativo. E o sistema, na forma como vem decaindo, já escangalhou a colegialidade plena, que é timbre do trabalho parlamentar (nos grupos políticos, nas comissões, no plenário), e destruiu até ao grau zero a responsabilidade individual dos deputados e a possibilidade do seu exercício.

Indo às fontes oficiais, o que mostra este processo?

O Tribunal Constitucional escreveu uma carta à Assembleia, comentando imperfeições do regime em vigor. O assunto caiu na esfera da 1ª Comissão, que constituiu um grupo de trabalho. Este grupo iniciou actividade em 22 de Março de 2017. O coordenador era do PSD, juntando representantes de todos os partidos, com excepção do BE e do PAN (não se percebe por que omitem os registos a presença do BE, quando é público que participou e viria até a ser co-autor do projecto de lei fatídico). O grupo realizou nove reuniões: oito, entre 26 de Abril e 29 de Junho; e mais uma, a última, a 11 de Outubro. De todas sabe-se apenas a agenda, lacónica. De nenhuma se conhece uma única acta. Veio a público, já no meio do caldo entornado, uma acta da 1ª Comissão sobre a tramitação final da matéria, mas em termos que não correspondiam de todo, segundo se demonstrou, ao que na reunião se teria passado. No fim, todos os partidos, menos o CDS e o PAN (este, pela sua dimensão, nunca participara), decidem apresentar um projecto de lei colectivo. Foi a 19 de Dezembro. É logo agendado para 21, onde, a trouxe-mouxe e de carrinho, são feitos: o debate na generalidade, em modo de monólogos cruzados, a despachar; a votação na generalidade (abstenção do CDS e PAN, aprovação por PSD, PS, BE, PCP e PEV); a votação na especialidade (preparada em apenas três votos: em separado, os dois pontos onde não havia consenso e CDS e PAN votaram contra; e uma terceira votação para todo o resto do extenso articulado, com unanimidade); e a votação global final, com aprovação pelos cinco co-autores (PSD, PS, BE, PCP e PEV) e votos contra de CDS e PAN. Segundo o “Sol”, estas votações, como é hábito neste tipo de sessões, foram despachadas em série, caindo, na tômbola do dia, entre uma recomendação para o fim “de concessões de hidrocarbonetos remanescentes no território” e cinco projectos de lei sobre “animais nos circos”. Foi assim.

O conteúdo da lei era alterar quatro leis das mais relevantes do sistema político (Tribunal Constitucional, partidos políticos, financiamento e Entidade das Contas) – duas são leis de valor reforçado, com estatuto constitucional de Leis Orgânicas. Por isso, além do desastre político, entendo que tudo decorreu em clara inconstitucionalidade formal: não só as fases de generalidade, especialidade e final global não podem ser amalgamadas daquele modo, sem o tempo próprio de respiração e abertura que caracteriza a formação legislativa parlamentar, mas também, tratando-se de Leis Orgânicas, a votação na especialidade não poderia ter sido despachada por atacado daquela forma, sem que todos os deputados e o público tivessem noção do que estava a ser votado, assim como da sua sensibilidade e importância.

O projecto deveria ter sido anunciado com solenidade, traduzindo um “consenso tão amplo”. Ecoaria publicamente. Seria objecto de debate na generalidade, autónomo. Aprovado, baixaria de novo à comissão para acertos na especialidade. E regressaria a plenário para as votações finais, na especialidade e global. Assim é que era.

Quando rebentou a polémica, não surpreendeu que, além do desconcerto no PSD e no PS e das tentativas de bater em retirada do BE e de recarga do PCP, os títulos soassem: “Deputados não sabiam o que estavam a votar”. Infelizmente, é frequente. O sistema está feito para isso.

Nos grupos parlamentares, as coisas variam, no modo e na moda de cada um, desde o dirigismo seco e absoluto ao espírito colectivo enraizado, consoante a cultura interna que se foi formando ou impondo. O quadro é, em geral, muito mau em termos de colegialidade democrática: efectiva, participada, institucionalizada. E, na Assembleia, a interpretação do Regimento e a sua prática são quase sempre feitas com prejuízo para a qualidade democrática do debate e da decisão. A aparência domina a forma, a forma prevalece sobre a substância, a quantidade vale mais que a qualidade, a velocidade importa mais que a profundidade, o espectáculo engole o debate, a zaragata prepondera sobre o confronto de ideias, a interacção pública com o país fica aquém do que necessitamos.

O veto presidencial acentua a necessidade de séria reflexão sobre a constitucionalidade destas metodologias, que degradam o Parlamento e os próprios partidos. E confirma o imperativo por que temos lutado na esteira do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade: a indispensabilidade da reforma do sistema eleitoral que restitua a democracia à cidadania.

Quem tem dúvidas de que, com deputados senhores do mandado representativo e titulares plenos da responsabilidade política individual, nada disto poderá passar-se? Um processo só pode ser participado se os participantes mandam alguma coisa. Ora, o problema é que os partidos chegaram a um tal estado em Portugal que os deputados, individualmente e como corpo, não mandam nada. Só mudando o sistema recuperaremos a democracia e o seu crédito público.
José RIBEIRO E CASTRO
Advogado
Subscritor do Manifesto "Por uma Democracia de Qualidade"

NOTA: artigo publicado no jornal i

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Reforma do sistema eleitoral – a génese indispensável para a melhoria da nossa democracia

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de Fernando Teixeira Mendes, saído hoje no jornal i.

Uma reforma destas só não é feita porque a classe política portuguesa se protege, dentro do seu castelo, para não ser atacada e não ter concorrência.


Reforma do sistema eleitoral – a génese indispensável para a melhoria da nossa democracia

A preocupante degradação da democracia em Portugal está a afetar gravemente a vida dos cidadãos.

O sistema eleitoral em vigor permite que os sete líderes das bancadas parlamentares decidam os assuntos que os deputados vão comunicar no hemiciclo. Esta situação não pode continuar, porque assuntos de grande interesse para a sociedade civil não são aí debatidos.

Porque é que para a nossa Assembleia da República não se podem apresentar, por sua iniciativa e em círculos uninominais, candidatos independentes das estruturas partidárias?

Porque é que a revisão da Constituição de 1998 (há aproximadamente 20 anos!), permitindo círculos uninominais, não foi implementada seguidamente pelos partidos políticos? Foi um teatro o que andaram a fazer durante a revisão da Constituição?

Seria de grande interesse para o país que a Assembleia da República tivesse um grupo de deputados que debatesse e tomasse posição sobre, por exemplo, as perigosíssimas fragilidades atuais da nossa administração pública.

O que em 2017 se passou com os incêndios no interior do país foi vergonhoso, absolutamente inaceitável e só possível pelo facto de a frágil administração pública não permitir que as florestas e os incêndios sejam tratados e assumidos de forma correta e eficaz. Estamos muito pior do que há 50 anos.

Volto também a escrever sobre uma fragilidade que está a ser criada numa área que conheço bem: a da inspeção e certificação das instalações elétricas, em que o decreto-lei 96/2017, publicado em 10 de agosto passado, isenta de inspeções as instalações mais pequenas e passa as atribuições da CERTIEL – Associação Certificadora de Instalações Elétricas para a Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) – isto depois de serem publicadas três portarias ao longo de dois anos anunciando um concurso público para escolha de uma entidade certificadora, o que nunca veio a verificar-se!

Reconheço as enormes capacidades técnicas e humanas dos poucos recursos da DGEG, mas sei que esta está sem capacidade para absorver a carga de trabalho que pretendem que assuma já a partir do início de janeiro de 2018.

As consequências da aplicação do decreto-lei 96/2017 vão ser graves para as populações.

Pergunto: porque é que, em termos de segurança de instalações elétricas, aqueles que têm casas pequenas não são tratados da mesma maneira que aqueles que têm casas grandes? Não se trata de uma discriminação inaceitável para os de menos posses? Todos lidam com a eletricidade, que pode produzir incêndios, e usam a mesma tensão mortal de 230 V, com potências de curto-circuito também de igual valor para todos.

Será mesmo lançado um concurso para auditorias técnicas por amostragem a serem efetuadas a instalações elétricas já em uso, tal como define o despacho 7394/2017? E se houver lugar a alterações obrigando a obras em casas habitadas ou em estabelecimentos comerciais em funcionamento?

Que se cuidem os partidos que têm ambições governativas porque, se continuarmos a ter alternância democrática em Portugal, o governo afeto ao PS faz a lei e, depois, os outros que estiverem no governo à época sofrerão as consequências!

Se os deputados da Assembleia da República sentissem a sua eleição verdadeiramente ligada aos cidadãos que os elegem, debateriam estes e outros assuntos com uma outra profundidade.

Para a melhoria da qualidade da nossa democracia e do nível da classe política, defendemos na APDQ – Associação Por Uma Democracia de Qualidade que cada eleitor possa exercer o duplo voto no seu boletim, assinalando: a força política (partido ou coligação) que prefere no respetivo círculo territorial intermédio e o deputado que escolhe no respetivo círculo uninominal de base.

Tal como em importantes países, como a Alemanha, o sistema é constituído por forma a que se ajuste no seu todo o peso das várias forças partidárias.

Uma reforma destas só não é feita porque a classe política portuguesa se protege, dentro do seu castelo, para não ser atacada e não ter concorrência. Conclusão simples: terá de ser a sociedade civil a iniciar o processo, dando indicações claras de que só apoiará partidos que defendam este tipo de reforma. É a sociedade civil que tem as ferramentas para a atuação na sua posse.

Não posso deixar de fazer aqui um grande elogio ao texto bem pragmático de José Ribeiro e Castro, recentemente escrito ao abrigo destes artigos:
“(...) Basta um só deputado com voz livre para a diferença logo se sentir. E, se todos forem de voz livre, não presos e vergados a tribos, não dependentes do chefe, mas pertencentes aos eleitores, o caso muda por completo de figura. A democracia vive porque a cidadania se afirma. Se a reforma eleitoral de 1998 tivesse acontecido, a corrupção teria chegado onde chegou? Não. Os bancos ter-se-iam degradado como aconteceu? Não. As negociatas teriam o terreno livre de escândalo que vimos? Não. A má gestão teria campeado? Não. A desertificação do país teria progredido como está? Não. Após os incêndios de 2003 e 2005, o país teria crescido na extrema vulnerabilidade ao inferno de 2017? É claro que não. Então estamos à espera de quê? Reforma política urgente, pois claro!”
Esta é uma reflexão cheia de propriedade e de enorme atualidade.

Na próxima segunda-feira 27 de novembro, às 18h30, na Livraria Buchholz, Rua Duque de Palmela, 4, em Lisboa, vamos lançar o livro “Reforma Política – Urgente”. Não deixe de comparecer!


Fernando TEIXEIRA MENDES
Empresário e gestor de empresas, Engenheiro
Subscritor do Manifesto Por Uma Democracia de Qualidade

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Reforma política: já vão perdidos 20 anos

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de José Ribeiro e Castro, hoje saído no jornal i.
É por isto que a reforma política é urgente: ao fim de 20 anos, a revisão da Constituição continua por cumprir. Os problemas mantêm-se; e, a cada ciclo, agravam-se.


Reforma política: já vão perdidos 20 anos
No final deste mês de novembro é apresentado, em Lisboa, o livro “Reforma Política Urgente”, uma edição da Sopa de Letras, por iniciativa da APDQ – Associação Por uma Democracia de Qualidade, de que sou presidente. O livro compila quase todos os artigos publicados semanalmente, há três anos, neste jornal, à quarta-feira, por um punhado dos 50 subscritores do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade (2014): António Pinho Cardão, Clemente Pedro Nunes, Fernando Teixeira Mendes, Henrique Neto, João Luís Mota Campos, José António Girão, Luís Campos e Cunha, Luís Mira Amaral e eu próprio. O manifesto foca-se na reforma política, reclamando medidas de mais verdade, representatividade e transparência no sistema eleitoral e no financiamento partidário. A associação constituiu-se para dar continuidade à expressão pública das ideias do manifesto e para as aprofundar em diálogo com a sociedade civil. O livro recolhe textos que abordam o tema sob ângulos diversos, corporizando o essencial da nossa luta cívica destes últimos três anos.

Em título, o livro toma logo posição pela urgência da reforma política. Mas esta urgência não decorre de nada de novo que tenha acontecido agora e a provocasse. Não, a urgência resulta de a reforma ser esperada há muito e, preguiçosamente, continuar por fazer.

É espantoso como a teia e os enredos montados pelos diretórios partidários e pelo núcleo duro das classes dirigentes têm conseguido fintar e bloquear, 20 anos a fio, as reformas que se impõem quanto ao modelo das eleições para a Assembleia da República, mantendo tudo na mesma e privando os eleitores da palavra decisiva.

Há 20 anos saiu a Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de setembro, com a quarta revisão constitucional. A Constituição passou a apontar para um sistema eleitoral de representação proporcional personalizada, que reforça substancialmente o peso dos eleitores na escolha dos deputados. O texto do artigo 149.º da Constituição, embora não o imponha, aponta claramente para um sistema misto, em coexistência de círculos uninominais e plurinominais, em moldes complementares e protegendo sempre a proporcionalidade da representação parlamentar global. A Alemanha tem um sistema deste tipo, que tem prestado excelentes provas.

O que significa isto? Significa que os problemas e vícios de que mais nos queixamos – falta de representatividade dos deputados em geral, poder centralizado nos chefes e diretórios, fraca colegialidade, baixa institucionalidade, escasso poder de escolha pelos eleitores, fácil captura dos centros de decisão, descrédito dos partidos, descrença na democracia – eram problemas que pesavam já fortemente no debate político dos anos 1990. Por isso se fez a revisão constitucional neste domínio, com a profundidade do artigo 149.º. Seria impossível conseguir maioria de 2/3 para desenhar o novo caminho se a questão não estivesse já bastante madura.

A revisão da Constituição foi aprovada a 3 de setembro de 1997. Logo a seguir, o governo da altura aprovou, a 11 de setembro, uma resolução do conselho de ministros a definir o calendário e a metodologia de elaboração de uma proposta de nova Lei Eleitoral para a Assembleia da República, anunciada para março de 1998. A preparação dessa proposta foi muito participada e aberta: houve intervenção dos organismos técnico- -eleitorais do Estado; houve estudos científicos de reputadas entidades universitárias e prestigiados especialistas; houve um primeiro anteprojeto submetido a debate e escrutínio público; houve exame por parte dos partidos políticos.

Em 26 de março, deu entrada no parlamento a proposta de lei n.º 169/vii, estruturando o novo sistema de representação proporcional personalizada, compreendendo 103 círculos uninominais num total de 230 deputados. Seria uma revolução democrática no poder de escolha dos eleitores. Antes, a 16 de março, já dera entrada o projeto de lei n.º 509/vii do PSD, propondo outro quadro de sistema misto, contendo 85 círculos uninominais num total de referência de 184 deputados. E, a 14 de abril, numa linha conservadora, entrou o projeto de lei n.º 516/vii do PCP, propondo apenas ajustes no sistema vigente, que é ainda o atual.

O processo legislativo prometia mais do que deu. Prometia alguma coisa – deu em nada. Prometia concretizar a revisão constitucional – apunhalou-a e enterrou-a. No dia 23 de abril de 1998, naquela que é talvez a mais funesta sessão plenária parlamentar das últimas décadas, a Assembleia da República abortou a reforma política. Os deputados tiveram nos pés uma reforma estratégica fundamental para a democracia e para Portugal – chutaram-na para as bancadas. O CDS assobiou para o lado. O PCP fincou-se na sua. O PSD empunhou o florete da redução, à cabeça, do número de deputados de 230 para 184, esgrimindo uma linha que tem sido, sempre, o veneno tóxico de qualquer reforma eleitoral. O PSD e o PS travaram-se de razões a favor e contra o veneno. PCP e CDS também discordavam do PSD mas, interiormente, regozijavam-se pelo seu efeito sabotador. E, apesar de o governo haver apelado a que passassem na generalidade todos os textos, guardando a fase da especialidade para afinar pormenores e aplanar diferenças, a intoxicação crescente infetou de tal modo o debate que, no fim da sessão, os votos cruzados acabaram a chumbar todos os textos. Morreu. Até hoje…

Na legislatura de 2002/05 criou-se na Assembleia da República uma Comissão Eventual para a Reforma do Sistema Político. Não passou de bailarico. Pomposo, mas só bailarico. Houve contributos relevantes, audições valiosas e qualificadas, abusou-se da boa-fé das pessoas, apresentaram-se boas ideias e propostas. Mas concretizações? Nem uma só para amostra. Foi a forma de os diretórios nos entreterem e arrastarem o tema: faz que anda, mas não anda.

É por isto que a reforma política é urgente: ao fim de 20 anos, a revisão da Constituição continua por cumprir. Os problemas mantêm-se; e, a cada ciclo, agravam-se. O descrédito da política é enorme, gigantesca a descrença no sistema. O sistema sofre de osteoporose em grau avançado.

Basta um só deputado com voz livre para a diferença logo se sentir. E, se todos forem de voz livre, não presos e vergados a tribos, não dependentes do chefe, mas pertencentes aos eleitores, o caso muda por completo de figura. A democracia vive porque a cidadania se afirma. Se a reforma eleitoral de 1998 tivesse acontecido, a corrupção teria chegado onde chegou? Não. Os bancos ter-se-iam degradado como aconteceu? Não. As negociatas teriam o terreno livre de escândalo que vimos? Não. A má gestão teria campeado? Não. A crise do défice e da dívida teria rebentado como foi? Não. A troika teria sido necessária? Não. A desertificação do país teria progredido como está? Não. Após os incêndios de 2003 e 2005, o país teria crescido na extrema vulnerabilidade ao inferno de 2017? É claro que não.

Então estamos à espera de quê? Reforma política urgente, pois claro!

José RIBEIRO E CASTRO
Advogado
Subscritor do Manifesto "Por uma Democracia de Qualidade"
NOTA: artigo publicado no jornal i

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Medidas avulsas e oportunidades perdidas

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de Henrique Neto, hoje saído no jornal i.
O mais grave problema político do nosso tempo em Portugal, nos fogos como em tudo o resto, é não haver uma estratégia coerente de médio e de longo prazo.


Medidas avulsas e oportunidades perdidas
A tragédia dos fogos deste ano em Portugal, que conduziram à morte de 106 pessoas e destruíram a vida de famílias e a economia de muitos concelhos do país, teve, e vai ter no futuro, consequências políticas, já que existe um consenso nacional de que o governo não esteve à altura das circunstâncias, tendo mesmo, depois de Pedrógão Grande, procurado iludir as causas dos incêndios e as fragilidades havidas no seu combate, em vez de se empenhar de imediato numa ação corajosa para enfrentar as graves lacunas existentes, nomeadamente humanas.

Em vez disso, o governo e a Assembleia da República preferiram recorrer a mais um relatório, cujo objetivo inicial seria apurar responsabilidades, mas que se transformou rapidamente, por opção do governo, numa forma de adiar o que haveria a fazer no curto prazo, com o trágico resultado que conhecemos. Foi um erro político óbvio, com a agravante de que, agora, o mesmo relatório foi adotado como modelo para o futuro que envolve não apenas decisões imediatas e urgentes que devem ser tomadas, mas também outras que deveriam ser mais bem pensadas e debatidas, a fim de ultrapassarem a mera questão dos fogos, para se enquadrarem numa estratégia nacional sustentável sobre o modelo económico e qual a participação nesse modelo da agricultura e da floresta – avaliando em paralelo o modelo de floresta e de agricultura que desejamos – e os seus efeitos no território, nomeadamente no desejável desenvolvimento económico e social do interior do país.

Recordo, como exemplo, que após o terramoto de Lisboa, depois de enterrar os mortos e de cuidar dos vivos, o marquês de Pombal chamou a si os melhores especialistas à época para reconstruir Lisboa, fazendo dela uma nova cidade com vista às necessidades futuras, e não uma cidade igual à que existia antes. Ou seja, o ministro de D. José tinha, como sabemos, uma estratégia de longo prazo para Portugal na qual a reconstrução de Lisboa era apenas uma parte, ainda que relevante. Ora, o mais grave problema político do nosso tempo em Portugal, nos fogos como em tudo o resto, é não haver uma estratégia coerente de médio e de longo prazo, ou não se saber qual o papel de Portugal no mundo global, de forma a potenciar o nosso de-senvolvimento. A questão com que nos confrontamos é, pois, definir qual o modelo económico, social e político que desejamos, e que esteja ao nosso alcance, para melhorar a vida dos portugueses. 
Questão cuja resposta, nas atuais circunstâncias, governados por uma maioria parlamentar baseada em projetos políticos inconciliáveis, não parece, obviamente, possível. Ou seja, tudo o que fazemos tem como destino o curto prazo e mesmo esse vai mudando de acordo com um sistema de forças contraditório, imprevisível e incontrolável. Sem estadistas e sem um consenso político de longo prazo, o país tornou-se um vazio estratégico que vive de iniciativas avulsas, mal pensadas e, frequentemente, contraditórias.

Um exemplo: o governo assumiu agora a participação das Forças Armadas no combate aos fogos, medida que defendi numa comunicação apresentada a um congresso realizado há já alguns anos sobre defesa e segurança, a que chamei “Forças Armadas de um Novo Modelo”. Não se tratava de uma medida avulsa, mas de uma estratégia global que tentava prever o que poderiam ser as futuras Forças Armadas da União Europeia e qual o modelo mais favorável a Portugal, no contexto dos nossos interesses nacionais, nesse futuro: diluição da importância das nossas Forças Armadas nas Forças Armadas europeias, ou especialização, e qual o tipo de autonomia que poderíamos conquistar com essa opção, particularmente em defesa dos nossos valores históricos e económicos contidos no nosso mar e espaço aéreo. Defendi então o objetivo de umas Forças Armadas altamente especializadas, de forma a poderem ter alguma autonomia no contexto europeu, como um corpo militar profissional e detentor dos mais modernos meios, destinado a missões de salvamento de vidas humanas em acidentes no mar, na terra e no ar, acidentes que incluíam, naturalmente, os fogos. Mas não como um remendo feito à pressa para apagar incêndios, como agora se pretende, nomeadamente sem uma visão integrada, sem a certeza dos meios necessários e sem a dimensão estratégica que permita aos nossos militares atingirem os resultados, o prestigio e o reconhecimento público, nacional e internacional, que merecem, ao serviço do prestígio de Portugal e da defesa da vida de portugueses e europeus.

Poderia utilizar outros exemplos em que a ausência de estratégia compromete o futuro dos portugueses, como é o caso do crescimento da economia, que tem desaproveitado a enorme oportunidade que resulta de Portugal se situar no centro do Ocidente, entre as duas maiores economias mundiais, num tempo em que se antevê um crescimento acentuado do comércio no Atlântico e quando a logística se tornou um importante fator da competitividade das empresas e das nações. Para mais quando temos todas as condições – de localização, de competências e de competitividade dos custos – para atrair o investimento estrangeiro de empresas integradoras que recebam aqui os componentes e os sistemas de que precisam, de Portugal e de todo o mundo, e os transformem em produtos no território nacional, com o objetivo de os exportar para todo o mundo.

Num tempo em que a China prepara o seu futuro para os próximos 50 anos e alguns pequenos países como a Irlanda há muito escolheram quais são as suas oportunidades nesse futuro, Portugal não sabe para onde vai e esgota-se em decisões avulsas de curto prazo, revelando a incompetência política e estratégica da maioria dos dirigentes. A causa próxima desta situação reside no controlo não democrático exercido pelos partidos políticos sobre a sociedade, com a nota absurda de os setores mais dinâmicos da economia, as empresas privadas, nomeadamente do setor exportador, serem vigiadas e escrutinadas com desconfiança, cobertas de impostos, de burocracia e de custos improdutivos, modelo sem qualquer sentido no mundo global de concorrência, de competição e de inovação em que vivemos.

Como sabemos, em democracia existem sempre alternativas, e neste estado de degradação do pensamento estratégico e de má governação, a alternativa passa pela democratização do nosso regime político e pela alteração das leis eleitorais, a fim de permitir o acesso de todos os portugueses à participação política, feita com maior competição e mais competência na ocupação dos cargos políticos, de forma a colocar um travão na existência de governos de amigos e de familiares, como agora acontece, e de que os fogos são a consequência. É o que defendemos no “Manifesto Por Uma Democracia de Qualidade”.
Henrique NETO
Gestor
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade

NOTA: 
artigo publicado no jornal i.

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Agenda para a IV República

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de José Ribeiro e Castro, hoje saído no jornal i.
A agenda da IV República são três reformas capitais: reforma eleitoral, reforma territorial, reforma do Estado. Quanto a falar delas, não são ideias novas. Ideia nova é querer fazê-las. E é ideia nova articulá-las e resolver nós estruturais do país.


Agenda para a IV República
Depois do meu último artigo nesta série, perguntaram-me qual era “a agenda da IV República”, ideia final do texto. É fácil. Basta olhar às questões fundamentais de que todos falam e ninguém trata. Três pilares – ou três alavancas, conforme o olhar – que se vão adiando sistematicamente. Somos um país encalhado.

A agenda da IV República são três reformas capitais: reforma eleitoral, reforma territorial, reforma do Estado. Quanto a falar delas, não são ideias novas. Ideia nova é querer fazê-las. E é ideia nova articulá-las e resolver nós estruturais do país.

Reforma eleitoral é devolver a democracia à cidadania. O propósito é reconstruir a confiança dos cidadãos, restaurar a credibilidade do sistema político, dotar de responsabilidade o sistema e seus atores. Como se faz? Fácil: pôr a escolha dos deputados nas mãos dos eleitores, em vez de no arbítrio dos bastidores. As direções dos partidos continuarão a escolher, mas indicarão quem os eleitores deem sinal de preferir, e não apenas favoritos e serventuários.

Temos um exemplo magnífico na Alemanha, cujas eleições foram no domingo passado. Eis um sistema – o melhor sistema da Europa – que é rigorosamente de representação proporcional, mas em que metade dos deputados são eleitos individualmente em círculos uninominais. Esta representação proporcional personalizada tem peculiaridades que não cabe pormenorizar. Essencialmente, cada alemão tem um voto duplo, em que pode escolher o seu deputado e o seu partido. O parlamento é constituído de acordo com a proporção obtida na votação das listas partidárias – exatamente como cá. Mas metade dos deputados são eleitos diretamente pela escolha individual dos eleitores. Os candidatos nas listas são eleitos para completar a quota proporcional de lugares de cada partido além dos uninominais obtidos.

Este simples fator de escolha muda todo o espírito de indicação dos candidatos. E isso influencia também a formação das listas. A arbitrariedade e o capricho deixam de reinar. Há democracia, porque há cidadania também.

Ora, o facto de todos os deputados terem poder próprio – porque têm voz, rosto, prestígio, capital – reforça a colegialidade e devolve institucionalidade não só ao funcionamento político do Estado, mas aos partidos também. O sistema salva os partidos, porque lhes devolve razão de ser e funcionamento digno. Assim como, nas eleições, o cidadão volta a ser rei, nos partidos voltam as bases a ser senhor. A participação com decisão informada pode voltar a ser regra.

O avanço para este sistema é possível desde a revisão constitucional de 1997. Além disso, para maior garantia dos pequenos e médios partidos, defendo um círculo nacional com função de compensação. O sistema já realiza esse equilíbrio, mas o círculo nacional concluiria essa tarefa de justiça representativa. Este círculo é possível desde a revisão constitucional de 1989. Dizendo de outra forma: a III República anda encalhada há 20 e há 28 anos, respetivamente.

Reforma territorial é dotar o país da administração territorial que nos faz falta. Tradicionalmente tivemos sempre um patamar intermédio entre o local e o central: era o distrito; antes, a província; e antes, a comarca. Agora, não temos nada. Anunciaram as regiões, mas nunca saíram do papel – foram diretamente para o cesto dos papéis.

Não há políticas territorialmente ajustadas se não houver administração territorial. Este patamar intermédio, que destruímos, é simultaneamente o quadro para as unidades desconcentradas da administração central e o espaço descentralizado de instâncias autárquicas. O facto de o termos destruído, gerando um caos administrativo que contamina o próprio desenvolvimento das áreas metropolitanas, fragilizou boa parte do território do país. Em minha opinião – digo-o há muito –, o imbróglio em que a “regionalização” degenerou e a desordem criada são grandes responsáveis pela desertificação, o agravamento de desigualdades, a perda de oportunidades. E o fracasso continuado das políticas de forte componente territorial resulta deste vazio. O exemplo mais recente é de escândalo: a arrastada incapacidade face à praga dos incêndios.

O Estado está demasiado longe, o município não tem escala. Falta o patamar intermédio que esteja, ao mesmo tempo, suficientemente perto, suficientemente distante. Aqui, uma vez que a Constituição não foi cumprida nem revista, a III República está encalhada há 41 anos.

Enfim, a coqueluche: a mais badalada e a mais frustrada. Somos um país falido, vivendo à beira do abismo. Estamos pendurados de ratings, com endividamento muito elevado. Batalhamos com o défice, não pelos tratados, mas por nossa saúde. Reforma do Estado é, para simplificar, conceber um modelo de Estado mais barato ou, dizendo melhor, ajustado à capacidade da economia e aos recursos financeiros e respondendo às responsabilidades sociais e de soberania. Só isso assegurará o sucesso duradouro do país e a sustentabilidade das políticas públicas.

É a reflexão coletiva mais importante que temos de fazer, pondo tudo em cima da mesa: aparelhos de segurança e defesa, justiça e diplomacia, administração local e territorial, sistemas sociais, administração central e entes autónomos, dimensão do pessoal político, desde autarquias e empresas municipais até gabinetes e assessorias, quadro e sistema de receitas. Sem essa reforma estruturada, continuaremos a resmungar: ora pelos cortes, ora por cativações. A qualquer desgraça que ocorra, gemeremos “falta de dinheiro”: na catástrofe dos fogos, no assalto de Tancos, num telhado em ruína… E, num outro dia qualquer, seja por novo desvario, seja por o BCE mudar de política, cairemos de novo ou no precipício, ou no colo doutra troika.

Extraordinário é o parlamento ter aprovado, em 18 de janeiro de 2013, a resolução da Assembleia da República n.º 4-A/2013, que constituiu a comissão eventual para a reforma do Estado. A oposição recusou integrá-la e boicotou; e a maioria renunciou ativá-la quando, em 2014, a troika partiu. A questão crucial ficou trancada na gaveta, mais uma vez adiada.

Aqui, costumo medir o calendário pelo “discurso da tanga” em abril de 2002 – desde então, ninguém pode dizer que ignora o problema. A III República encalhou-nos há 15 anos, pelo menos.

Reforma eleitoral, reforma territorial, reforma do Estado – eis a agenda para a IV República. As três reformas são fundamentais e coerentes entre si: democracia de cidadania; país coeso para todos; Estado forte, sustentado e sustentável. Todas se interligam. Por exemplo, a reforma do Estado, que é a mais substantiva, dificilmente se fará sem representação parlamentar genuína, com real presença da cidadania, isto é, sem a reforma política da democracia de qualidade.

Queremos continuar encalhados?
José RIBEIRO E CASTRO
Advogado
Subscritor do Manifesto "Por uma Democracia de Qualidade"
NOTA: artigo publicado no jornal i

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Ausência de reforma é crime político

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de Eduardo Baptista Correia, ontem saído no jornal i.
Na antecâmara das próximas eleições autárquicas de 1 de Outubro, temos assistido a uma série de comportamentos desviantes, vazios de conteúdo e de sentido de responsabilidade.


Ausência de reforma é crime político

Tenho um bom amigo apelidado por António Guterres o autarca modelo e considerado por muitos o melhor autarca português que insiste em repetir que a política existe para entender e servir as pessoas transformando o território de acordo com o tempo, a cultura e as ambições. Cada vez melhor o entendo.

É através do poder local que se define e implementa muito do que respeita à qualidade de vida das pessoas que vivem, trabalham, visitam ou simplesmente atravessam o território. É nesta matéria que a acção política ganha relevo prático e importância rumo ao desenvolvimento económico, inclusão e equilíbrio social. Há provas disso na história política contemporânea portuguesa nalguns excelentes exemplos de autarcas que contribuíram de forma evidente para o desenvolvimento do território.

Na antecâmara das próximas eleições autárquicas de 1 de Outubro, temos assistido a uma série de comportamentos desviantes, vazios de conteúdo e de sentido de responsabilidade, entre os quais:

• A fulanização do debate à volta de tricas em detrimento do debate das ideias e projectos;

• O desinteresse, salvo raras excepções, da generalidade dos actores políticos de peso e de personalidades com curriculum e história à presidência de Câmara – veja-se a título meramente ilustrativo o exemplo dos candidatos a Lisboa ou a invasão pelo país fora de boys & girls, sem qualquer experiência profissional, a candidatos a lugar tão influente na gestão de organizações extremamente importantes;

• Poucos partidos apresentam candidaturas à totalidade dos municípios;

• A abstenção nas eleições autárquicas, como consequência, evidencia a distância dos eleitores a tão importante decisão.

Tarda o diagnóstico sério e tarda a fundamental evolução e inovação no que à gestão autárquica diz respeito. Temos em Portugal 308 municípios dos quais 278 estão no continente, 19 nos Açores e 11 na Madeira. Desses 308 municípios apenas 58 têm mais de 50.000 habitantes, 238 têm menos de 40.000 habitantes, 184 têm menos de 20.000 habitantes, 118 têm menos de 10.000 habitantes, e 42 têm menos de 5.000 habitantes. A titulo de referência é importante mencionar com base no critério populacional que o maior município é Lisboa com cerca de 500.000 habitantes, o 10º é Oeiras com cerca 175.000 habitantes, o 20º é Vila Nova de Famalicão com cerca de 135.000, o 30º é Vila do Conde com 80.000, o 40º é Palmela com 65.000, o 100º é Albergaria a Velha com cerca de 25.000, o 200º é Mogadouro com cerca de 8.000, o 300º é Penedono com cerca de 2.700.

Esta estrutura tem por base uma divisão territorial, ao tempo (há cerca de 200 anos), altamente reformadora liderada em 1832 e 1836 respectivamente por Mouzinho da Silveira e Passos Manuel. Convém lembrar que, na altura, não havia nem telefone nem telex, nem rádio nem televisão, nem estradas nem autoestradas, e de Bragança a Lisboa eram vários dias de viagem...

É evidente que a estrutura de 308 municípios é inadequada e prejudicial à boa gestão territorial contemporânea. As tecnologias e a inovação a todos os níveis trouxeram novas exigências e novas possibilidades, tornando o modelo de há dois séculos bastante desadequado. São várias as inconveniências, sendo as mais evidentes as estruturas organizacionais pouco pensadas e excessivamente burocráticas, a deficiente gestão de custos fixos e economias de escala, a frágil capacidade negocial perante fornecedores, governo central e comunidade europeia.

Para chegar ao número de municípios adequado, haverá vários possíveis critérios e o tema deveria ser objecto de bons estudos (nomeadamente por parte dos adormecidos gabinetes de estudos dos partidos). Pessoalmente, considero, à luz do princípio com que abri este texto, que o melhor critério corresponde ao numero de habitantes, parecendo-me adequado uma fasquia mínima de 25.000. Sem grande estudo e numa análise simples uma regra dessas aponta para cerca de 180 câmaras municipais permitindo dimensões territoriais adequadas à adequada integração de populações.

Por que mantêm então os partidos de governo esta estrutura de 308 municípios a funcionar? Porque esta estrutura é vantajosa para assegurar mais jobs for the boys & girls que por sua vez sustentam as lideranças dos partidos. É por isso que nem se fala em alterar algo que foi estabelecido em 1832-1836 e que tão bem serve as reais necessidades da partidocracia em que vivemos.

Por fim e numa óptica reformadora, considero que o órgão governativo mais importante será certamente aquele que regularmente venha a juntar os presidentes de câmara com o primeiro-ministro e o governo. Essa integração permitirá ao país evoluir mais rapidamente. Também no contexto reformador e no sentido do desenvolvimento de competências, faz sentido a criação de uma escola de formação para dirigentes, candidatos e eleitos autárquicos. Também indispensável e aparentemente tabu é a revisão séria quanto ao salário dos eleitos.

Há tanto para pensar, debater e fazer na modernização da governação do país que assisto incrédulo à teimosa incapacidade do presidente do PSD em produzir uma ideia reformadora e inovadora. Considero estarmos perante um grave delito político quando vejo todos no partido olhando calma e silenciosamente para esta falta de criatividade política que persiste, perigosa e teimosamente, hipotecando a credibilidade do PSD.

Não é excessivo sublinhar a ideia de o desenvolvimento do país passar pela evolução qualitativa da democracia que apenas uma democracia de qualidade, real e sem disfarces, poderá resolver.

Eduardo BAPTISTA CORREIA
Activista político, Gestor e Professor da Escola de Gestão do ISCTE/IUL
Subscritor do Manifesto "Por uma Democracia de Qualidade"
NOTA: artigo publicado no jornal i

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Um país sem escrutínio público

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de José António Girão, anteontem saído no jornal i.

O compadrio e a dependência do Estado são ancestrais e notórias, e onde tanto a esquerda como a direita se comprazem em críticas recíprocas e se mostram incapazes de conseguir a resolução dos problemas que nos afetam, incluindo a necessária emergência de uma pujante classe média.


Um país sem escrutínio público
É sabido que a saúde de uma democracia assenta em larga medida na natureza, qualidade e estabilidade das instituições que a enquadram. De há muito que diversos autores e organizações internacionais vêm pondo em destaque o papel decisivo que as instituições desempenham no processo de progressiva melhoria e sustentabilidade do desenvolvimento económico-social (v.g. “Why Nations Fail” de D. Acemoglu e J.A. Robinson). Daqui decorre como corolário a importância de um rigoroso escrutínio da qualidade e vitalidade das instituições nacionais, incluindo a natureza das interligações que entre elas se estabelecem, como forma de assegurar a sua eficácia, enquanto suportes da democracia. Mas como levar a cabo esse escrutínio essencial?

Como seria de esperar, a própria essência da democracia levou a que esta se tenha dotado de instituições destinadas a garantir que o processo de decisão subjacente à governação é não só consentâneo com os interesses dos cidadãos, como também com a necessidade de as mesmas se vigiarem e controlarem mutuamente, num exercício de “checks & balances”, que assegurem não só a representatividade das opções feitas, mas também que nelas os cidadãos maioritariamente se revêm.

É neste contexto que surgem os designados órgãos de soberania (PR, AR, governo e Justiça) com poderes e atribuições distintos, mas também os diferentes órgãos reguladores (sectoriais), fiscalizadores (Tribunal de Contas, Conselho de Finanças Públicas, etc.) e de Concertação Social. É, pois, vital que cada um destes organismos formais da democracia exerça as suas funções de forma competente, independente e responsável, sem interferência nas competências dos demais, mas numa postura de vigilância recíproca, em prole do bem comum.

No entanto, uma sociedade democrática requer que para além das instituições formais que a integram existam outras, tais como as de cidadania e parceria social, os “think-tanks”, etc., cujo objetivo é o de contribuir igualmente para a vitalidade da democracia, através da discussão fundamentada da governação, enquanto escrutínio da prática política e do processo conducente à tomada de decisões, incluindo a sua transparência e o grau de satisfação a que conduz.

Ora, como todos podemos constatar diariamente, este desiderato está longe de corresponder ao ambiente vivido em Portugal. O que não é novo. De facto, de há muito que se vem sentindo, e se encontra documentado, o desfasamento entre a prática política e os resultados da governação, face às expectativas e anseios dos cidadãos. É ele que é responsável pelo progressivo desinteresse destes pela política e pela causa pública em geral. Individualismo e populismo são as consequências mais visíveis de um tal percurso.

Contudo, a dimensão do referido desfasamento e os factos que o acompanham são de molde a impor que todos nos interroguemos sobre se estaremos a viver no contexto de um Estado verdadeiramente democrático, ou apenas formalmente democrático, porque assente no resultado de eleições livres de base constitucional.

Com efeito, não são só os casos mediáticos no âmbito da justiça, associados a comportamentos que no mínimo terão de ser considerados de menos éticos, envolvendo figuras do Estado – que vão desde um ex-primeiro-ministro, a ex-membros do governo e outros governantes autárquicos e da alta administração pública –, mas também empresários e gestores de empresas relevantes e cotadas na Bolsa, que se arrastam perante a opinião pública sem julgamento oficial, mas acarretando desprestígio (e na prática, implícita condenação). Porém, mais recentemente assistimos a uma outra dimensão da implosão do Estado, resultante de, em face de crises, evidenciar que não tem capacidade para prever e assegurar o normal funcionamento do país, ou então fazê-lo de forma ineficiente, revelando inúmeras fraquezas. As tragédias recentemente registadas e relacionadas com os fogos e a queda de árvores, bem como o roubo de armas e destruição de empresas relevantes, em óbvios jogos de poder, são um claro testemunho da incapacidade e ineficácia do Estado em assegurar o bem comum e a defesa dos cidadãos. Acresce a tudo isto a imagem de descrédito dos governantes e demais responsáveis, ao não assumirem claramente os factos evidentes e de generalizado conhecimento público. Não admira, assim, que o desprestígio da governação e dos políticos tenha chegado ao ponto a que chegou!

É claro que o triste resultado que constatamos é também em larga medida resultante do excesso de confiança que todos nós depositamos no sistema político e na governação, quanto à sua capacidade para enfrentar e resolver problemas estruturais. Com efeito, ele resulta igualmente de um excesso de confiança nos talentos das elites, resultantes de acreditarmos que as melhorias são óbvias e só não ocorrem porque são incompetentes ou ideólogos facciosos os que nos governam. Ambas as visões ignoram os limites da governação, face à dimensão das ambições de todos nós, e em particular que os “trade-offs” excedem o número de problemas a resolver. Daí que o sistema não tenha uma solução única e óbvia, o que implica uma realidade bem mais complexa: impede o sonho … mas exige esperança.

De tudo o que precede decorre a importância de um escrutínio criterioso da governação por parte dos cidadãos, mas igualmente de reflexão e de diálogo. Só assim será viável alcançar maior compatibilidade entre o bem comum e os conflitos que decorrem dos interesses de grupo, e conseguir-se a resolução satisfatória dos problemas, assim se evitando a polarização. Tal não é sempre fácil, nomeadamente num país em que a cunha, o compadrio e a dependência do Estado são ancestrais e notórias, e onde tanto a esquerda como a direita se comprazem em críticas recíprocas e se mostram incapazes de conseguir a resolução dos problemas que nos afetam, incluindo a necessária emergência de uma pujante classe média. Esta basicamente anseia por emprego, segurança e melhores perspetivas de vida. É este o desafio que se coloca a um centro reformista e para o qual um escrutínio efetivo por parte de uma cidadania vigorosa e esclarecida muito poderá fazer. Atuemos, então, por forma a conseguirmos ultrapassar as nossas debilidades. Ação em vez de lamentos. É urgente…

José António GIRÃO
Professor da FE/UNL
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade
NOTA: artigo publicado no jornal i.

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Teatro político em modo de pantomima

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de António Pinho Cardão, saído hoje no jornal i.
De farsa a comédia, de comédia a drama, de drama a tragédia, de tragédia a palhaçada, eis a representação da geringonça. Esgotando-se no mau teatro e na retórica vã, deixou de lado a função primordial de assegurar a defesa e o bem-estar dos cidadãos.


Teatro político em modo de pantomima
Vivemos numa democracia sem qualidade. No teatro parlamentar, a representação ultrapassou a normal divergência partidária e o palco tornou-se o lugar da mais insuportável e deseducativa violência verbal. Bons de um lado, maus do outro, numa linguagem de ódio, como se a coexistência de diferentes vias políticas não fosse a essência da democracia.

Mas neste grande teatro de uma democracia sem qualidade, é a geringonça que monta as grandes encenações. Modernizou a picareta falante transmigrada de um seu ilustre avatar, aumentou-lhe potência e cobertura e colocou-a a funcionar em vários canais estereofónicos que propagam, alto e longe, a voz e o grito da nova e vasta sorte de artistas ilusionistas, contorcionistas e prestidigitadores que ocuparam o palco, tomaram--no como seu e dele querem fazer modo de vida.

Pedrógão foi tragédia bem real, mais de 60 pessoas queimadas vivas. Em vez de respeito e assunção de responsabilidades, repetem-se as encenações alternativas. A diretora de cena chorou publicamente no palco da tragédia, porventura como forma de melhor coordenação e comando do tablado. De onde, cercado de fogo, logo o encenador se afastou para férias, saindo de mansinho pela esquerda baixa e deixando à boca do palco os principais personagens em tumultuosos diálogos homicidas, atribuindo uns aos outros as culpas da tragédia. No fim, mutuamente inocentados, responsabilizaram as forças da natureza, a trovoada seca, o aquecimento global, o raio da árvore, o downburst e a própria estrada, os deuses, como na tragédia grega, contra quem até seria perigoso lutar. E assim apaziguados, fora das vistas do palco, no recato dos camarins, os farsantes maiores da geringonça resolveram fazer uma sondagem à popularidade das suas representações!...

E já em pós-cena, subidas e descidas as cortinas dos alegados responsáveis, o encenador-mor autoiliba-se e a toda a sua companhia, apresentando à plateia o operador de telecomunicações como o grande culpado.

Numa outra encenação em que, num primeiro ato, os comediantes penosamente filosofavam sobre as causas e consequências do assalto ao principal forte das munições do país, a trama foi radicalmente alterada pelo encenador, mal regressado de férias. E o episódio transformou-se num hino aos heróis que despejaram gratuitamente o forte do material sem serventia, poupando incómodos à tropa e despesas de abate ao país. O forte era mera concentração de lixo e, obviamente, não se assaltam caixotes de lixo. No apoteótico coro final, Tancos nunca existiu, nem sequer no mapa, fim da peça. E o encenador foi publicamente louvado pelo seu contrarregra parlamentar como um criativo que colocou o problema que havia acontecido em Tancos no seu devido lugar...

Na encenação educativa, os alunos representam e passam de ato para ato sem saber qualquer das suas falas, e a peça é apresentada como mais um êxito de real fantochada.

Entretanto, o coro anuncia, solene, a chegada definitiva à ribalta de todos os figurantes ocasionais e auxiliares dos bastidores, estagiários, bolseiros e investigadores de cena. Os espetadores pagarão os cachês.

No enredo da economia, com o inevitável fracasso do tão aclamado programa alternativo, encenador e coro fazem como o cuco, cantando alegremente êxitos nos ninhos alheios que usurparam e para os quais em nada contribuíram. Com o hino repetitivo a subir de tom a cada momento.

Quando a peça não corresponde ao cartaz, o encenador-mor faz entrar em cena a trupe malabarista a entreter os espetadores, que vão aplaudindo gato por lebre, mal pensando serem eles mais uma vez os bombos que dão vida à representação e sem os quais não haveria pantomina.

Se fosse honesta peça de teatro, a geringonça poderia ser uma comédia, mas a trama é tão medíocre que se vem tornando uma palhaçada. E quem se fica a rir são os comediantes, jovens boys e velhos farsantes semeadores de ilusões, e não os espetadores que, além de pagar, acabam por ser os bobos da festa.

De farsa a comédia, de comédia a drama, de drama a tragédia, de tragédia a palhaçada, eis a representação da geringonça. Esgotando-se no mau teatro e na retórica vã, deixou de lado a função primordial de assegurar a defesa e bem-estar dos cidadãos.

Caído o pano, nada fica para além da ribalta escurecida, buraco negro, símbolo de um Estado geringôncico que semeia ilusões para tudo absorver, mas que desaparece quando mais dele se necessita.

Sem uma reforma eleitoral, persistirá esta democracia da pior qualidade. Lamentavelmente, há quem a aplauda.
António PINHO CARDÃO
Economista e gestor - Subscritor do Manifesto por Uma Democracia de Qualidade


quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Hiper-mega-geringonça, uma ova!

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de José Ribeiro e Castro, hoje saído no jornal i.
O sistema eleitoral misto, também designado “representação proporcional personalizada”, é o que vigora na Alemanha desde o pós-guerra, com excelentes resultados. O modelo de reforma do nosso sistema eleitoral tem de ser por aí.

O Bundestag

Hiper-mega-geringonça, uma ova!
Nas jornadas parlamentares do PSD, em fim de Maio, a reforma do sistema político e eleitoral foi um tema em debate. Boa escolha, maus os ecos.

Um dos mais sonoros foi a afirmação do deputado Luís Montenegro, ainda líder parlamentar, a denegrir um sistema misto que, garantindo a proporcionalidade da representação parlamentar, contivesse círculos uninominais, em que os eleitores escolhessem directamente o seu deputado. Fustigou Montenegro: “É impossível governar Portugal com 100 deputados ‘limianos’. Isso parecerá não uma geringonça, mas uma ‘hiper-mega-geringonça’”.

O sistema eleitoral misto, designado também “representação proporcional personalizada”, é o que vigora na Alemanha desde o pós-guerra, com grande sucesso e excelentes resultados na óptica da qualidade da democracia. É o sistema que facilitou a integração política de toda a Alemanha após a queda do muro e a reunificação, garantindo, com grande plasticidade, a evolução do sistema partidário, sem sobressaltos. Com metade dos deputados eleitos de modo uninominal e a outra metade em listas plurinominais, existe sempre um Bundestag rigorosamente proporcional, com justa representação das correntes políticas, dos cidadãos e do território. Não há “limianos”, uma das mistificações mais tolas do nosso debate político, superficial e leviano. É o sistema que tem assegurado a tranquila governabilidade do país desde o final dos anos 1940; enquadrou a reconstrução da Alemanha e um invejável grau de desenvolvimento; fomenta o diálogo e a concertação política, tendo, ao longo de sete décadas de boas provas, gerado, democraticamente, ora maiorias de sentido diferente, ora coligações interpartidárias de diversos matizes. É um dos pilares da grande maturidade e solidez política da Alemanha. Vamos poder seguir de novo essa realidade a funcionar nas eleições alemãs de 24 de setembro próximo. Nada como ver.

A única crítica que o sistema alemão merece é a cláusula barreira de 5%: nenhum partido pode eleger deputados, se não tiver um mínimo de 5% – e algumas vezes, na verdade, partidos historicamente importantes, como os liberais do FDP, ficaram arredados do Bundestag por causa desse travão. Ainda assim, o sistema partidário alemão não é concentrado: tem cinco a sete partidos representados no Bundestag, como nós; e uma proporcionalidade de assentos parlamentares frequentemente mais próxima da proporcionalidade da votação do que na nossa Assembleia.

Essa regra dos 5%, porém, é inconstitucional e inaplicável em Portugal. Na Associação Por uma Democracia de Qualidade, chamamos mesmo a atenção para que, em Portugal, por via da matemática, é pior: em Portalegre, por exemplo, quem não tiver 30% não elege ninguém; e vários círculos há em que é preciso mais de 15%, ou 20%, ou 25%, para eleger 1 deputado. Por isso, na linha do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade, defendemos que, além de uma reformulação dos círculos territoriais, tenhamos, no topo do sistema, um círculo nacional de compensação, que corrija, de forma ainda mais justa, as distorções que possam ter sobejado do escrutínio uninominal/plurinominal no patamar territorial (distrital/regional). Ou seja, defendemos um sistema de tipo alemão, melhorado.

Tudo isto é possível no quadro constitucional. Podemos até dizer que a Constituição aponta para aí, pois a Constituição não abre portas para continuarem trancadas. Em 1989, a revisão constitucional permitiu a criação de um círculo nacional – ficou tudo na mesma. Há 28 anos! Em 1997, além do círculo nacional, a revisão constitucional permitiu “a existência de círculos plurinominais e uninominais, [em] complementaridade, por forma a assegurar o sistema de representação proporcional” – e tudo na mesma ficou. Há 20 anos!

Ou seja: o sistema que tanto choca o deputado Luís Montenegro é nada mais, nada menos do que o modelo constitucional por cumprir – basta ler o artigo 149º da Constituição. E o mais curioso é que o PSD já o defendeu, havendo apenas a lastimar que o metesse no lixo, em vez de aperfeiçoar ideias e convergir com outros para a reforma necessária. Luís Montenegro criticava a ideia de Rui Oliveira e Costa, convidado às jornadas parlamentares, o qual defende um círculo nacional com lista plurinominal de 100 deputados e, no Continente, 100 círculos uninominais. Ora, em 16 de Março de 1998, o PSD apresentou, na Assembleia da República, na esteira imediata da revisão constitucional de 1997, o Projecto de Lei n.º 509/VII, que propunha um círculo nacional com 85 deputados e, no Continente, 85 círculos uninominais. Exactamente a mesma coisa! A única diferença está no número, pois Oliveira e Costa aponta para uma Assembleia com 215 deputados e o PSD queria-a com 184.

Não defendemos esta proposta concreta por outras razões. Mas o modelo de reforma é por aí. E um líder parlamentar não pode ignorar ou caricaturar a história do seu partido. Quem eram os hereges do PSD que, ao subscrever o Projecto n.º 509/VII, propunham um quadro perpétuo de “hiper-mega-geringonça”? Leiam com atenção por favor quem eram os “limianos”: Luís Marques Mendes, Luís Marques Guedes, Carlos Encarnação, Barbosa de Melo, Carlos Coelho e Manuela Ferreira Leite – tudo figuras de peso, incluindo dois ex-líderes. E Guilherme Silva chegou a defender, nos debates, círculos uninominais também nas Regiões Autónomas. E esta, hein?

Deplorável é que este projecto, assim como a proposta de lei do Governo, ficassem pelo caminho, numa das mais funestas sessões parlamentares da nossa história democrática: a sessão plenária de 23 de Abril de 1998. Aí morreu a ansiada reforma eleitoral. Morreu de morte macaca, como diz o povo. Morreu, por desconversa intencional. Morreu, pela obsessão da redução brutal do número de deputados. Morreu, por fingimento, sabotando. Foi um debate na generalidade que matou uma reforma fundamental. Uma discussão para envergonhar os desconversadores de serviço – fizeram Portugal perder 20 anos.

Nas mesmas jornadas, o deputado Carlos Abreu Amorim também manifestou reservas, na linha de Montenegro, dizendo “ter muitas dúvidas de que, com deputados eleitos por este sistema, o Governo PSD/CDS tivesse conseguido ultrapassar os ‘anos de chumbo’ da troika.” Está a ver mal. A realidade é diferente. Na Alemanha, está lá Schäuble; e, bem antes, Schroeder pôde fazer todas as reformas imperiosas, logo a seguir à reunificação. Se tivéssemos um sistema eleitoral assim, verdadeiramente representativo e com deputados personalizados, provavelmente nunca teríamos tido a troika – não seria precisa. Não teríamos chegado ao precipício da falência, nem teríamos caído no pântano de corrupção em que nos atolámos e nos rouba a dignidade, o ânimo e as poupanças. Problema real é o nosso decadente hiper-mega-pântano, onde tudo amocha e que engole tudo, nada representa, ninguém acredita.

Como o meu colega Fernando Teixeira Mendes já criticou nestas páginas há algumas semanas, não há “hiper-mega-geringonça” de espécie alguma. Pelo contrário, o que haveria seria uma alameda de refrescamento, amadurecimento, recuperação e revitalização da democracia, devolvida à vontade e à escolha dos cidadãos.  
Temos mesmo de começar a construir a agenda da IV República. Portugal não pode continuar adiado.
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José RIBEIRO E CASTRO
Advogado
Subscritor do Manifesto "Por uma Democracia de Qualidade"
NOTA: artigo publicado no jornal i


quarta-feira, 28 de junho de 2017

O desgoverno na oposição

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de Eduardo Baptista Correia, hoje saído no jornal i.
Um governo cheio de fragilidades e incompetências nos setores mais estruturantes da sociedade, dos quais destaco a economia, educação e administração interna, passa incólume, com invejáveis índices de popularidade.


O desgoverno na oposição
Pior que um mau governo é a ausência de oposição. Uma oposição em estado de coma reduz horizontes, tira a esperança e perpetua a incompetência governativa. A ausência de oposição é o primeiro passo para que um mau governo se converta quase automaticamente num aparente bom governo, promovendo e potenciando a sua reeleição. É precisamente o que se passa em Portugal. Um governo cheio de fragilidades e incompetências nos setores mais estruturantes da sociedade, dos quais destaco a economia, educação e administração interna, passa incólume, com invejáveis índices de popularidade. É a ausência de oposição credível que o permite.

Há muito que se fala nos “problemas estruturais” da economia portuguesa que, progressivamente, alargam o lastro e se enraízam em consequência de práticas governativas irresponsáveis e sem qualquer paradigma de responsabilização. Persiste e insiste a morosidade da justiça, a intensa burocracia, a ausência de desígnio económico e geoestratégico para Portugal, o endividamento a níveis estranguladores, o peso do Estado no emprego, a influência do poder político na proteção de cargos para pessoas, bem como nos contratos e rendas asseguradas para empresas e grupos de interesses.

A economia não aguenta e são esses os temas em atraso que o povo eleitor quer ver tratados.

Os partidos do arco governativo defendem e criticam enquanto oposição as práticas que os caracterizaram enquanto governo e às quais invariavelmente regressam, sem qualquer pudor, ao ali retornarem. Soma um modelo político de carreiristas em busca de lugares para as suas pessoas, ao invés de pessoas para os lugares. Um modelo político onde os dirigentes se sucedem num grupo fechado e impregnado de velhas más lógicas monárquicas transpostas para o sistema republicano. Ainda que a título meramente exemplificativo, basta lançar um olhar para os atuais primeiro-ministro e presidente da Câmara Municipal de Lisboa – ambos membros avalistas de um governo socialista que se revelou ter sido dos mais prejudiciais para o país – e, com simplicidade cristalina, se extrai o modo de funcionamento do sistema. Lembro aqui o simples facto de o atual primeiro ministro ter já sido ministro da Administração Interna. É bom lembrar factos relevantes... É um estranho caso de imunidade política imprópria ou atípica que se propaga no desgoverno e desorientação da oposição.

Em tese, sempre competiria à oposição desmembrar este não modelo de coisíssima alguma. Seria isto o que qualquer incauto e cumpridor cidadão reclamaria e esperaria de um partido com o peso histórico e com a responsabilidade que o PSD tem na e para com a sociedade portuguesa. Lamentavelmente, não se vislumbra uma alternativa arrumada e rumada. A visão destrutiva e a roupagem de comentador da sua atual direção são um claro reflexo da impreparação das pessoas que a compõem. O modus operandi também não os leva mais além. Os atuais PSD e PS tornaram-se decalques um do outro no modo como se sustentam e auxiliam no círculo vicioso em que o sistema político português se transformou. Ser a favor do contra é muito pouco para o PSD. Ao PSD exige-se criatividade, esperança, novos rumos e novos horizontes. Há muito mais no país para se estudar, debater e propor para lá do comentário brejeiro ao dia-a-dia da política e dos pequenos casos e tricas que o sistema, naturalmente, produz. Perdeu-se o sentido do Estado. Do PSD espera-se e é preciso mais, muito mais. Espera-se debate, trabalho e propostas que reformem o sistema político, a justiça, a economia, o emprego e a posição de Portugal no mundo.

O modo como a atual direção tem atuado, aparentemente cansada e descrente de si mesma, constitui um perigo para a democracia e para a economia. Transformar o PSD para que o PSD transforme Portugal num país de horizontes, moderno, justo, e numa referência de qualidade de vida é um dos principais imperativos da atualidade política. Para isso são necessárias novas pessoas, novos militantes, novo debate, novos horizontes. Portugal necessita de um PSD confiante, forte, moderno, social-democrata e reformista do sistema político na relação entre eleitos e eleitores e da estrutura de funcionamento do Estado e da administração pública. Portugal precisa e os portugueses merecem.

Eduardo BAPTISTA CORREIA
Professor da Escola de Gestão do ISCTE/IUL
Subscritor do Manifesto "Por uma Democracia de Qualidade"
NOTA: artigo publicado no jornal i

quarta-feira, 21 de junho de 2017

A captura pelo carteirista

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de José Ribeiro e Castro, hoje saído no jornal i.
Os CMEC asseguram para alguns uma arca do tesouro alimentada em contínuo por um moedeiro bem lubrificado. E onde liga o moedeiro? Aos nossos bolsos.


A captura pelo carteirista
Temos denunciado nesta coluna o mau funcionamento do sistema político e da representação parlamentar, às vezes com casos-tipo mais chocantes.

Uma das questões é a alienação dos deputados, arredados de problemas ou privados do exame prévio cuidadoso das decisões. Foi, em 2014, a “eutanásia social”, na expressão de Bagão Félix: a proibição de os reformados trabalharem mesmo sem remuneração, um caso que contei no prefácio da 1.a edição do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”. Ou, também de 2014, a proibição manhosa de os casais, em atraso, se apresentarem, como habitualmente, à tributação conjunta em IRS – o “caso do Zé Augusto”, que aqui relatei: milhares de contribuintes, de recursos médios, com o imposto brutalmente agravado em milhares de euros, em 2016 – interveio o provedor de Justiça e a lei foi revista.

Há casos de grande gravidade, todavia, em que a reação não soa nem prevalece. Está um na ordem do dia: os CMEC, tão longamente badalados quanto sobreviventes.

O cidadão comum tem dificuldade em saber o que são CMEC. Se o leitor, nas suas cogitações, pensar que um “C” significa “captura” e o outro “C” significa “carteirista”, não andará longe da verdade. O esquema, engendrado em 2004 e posto em marcha em 2007, significa “Custos de Manutenção do Equilíbrio Contratual”; mas o leitor revelaria faro e argúcia se, ao querer adivinhar, pensasse em “Captura Metódica pelo Esquema do Carteirista”.

O esquema consiste num laborioso enredo técnico, impenetrável aos pagantes e muito difícil de entender para quem não seja especialista ou lhe dedique horas de estudo. Ouvindo as explicações, a nossa alma divide-se entre, por um lado, admiração gulosa e, por outro, indignação irada por se ter construído um novelo normativo que, através da articulação entre uma dada engenharia de produção e um sistema de tarifas garantidas, assegura para os lucros de alguns uma arca do tesouro alimentada em contínuo por um moedeiro bem lubrificado. E onde liga o moedeiro? Aos nossos bolsos, aos bolsos dos consumidores de eletricidade.

São essas as engenhosas “rendas” não só “excessivas”, mas ilegais à luz do direito comunitário: um “pick pocket” que, sacando 5 euros aqui e 53 acoli, mais 29 euros ali e outros 44 acolá, consoante o nível dos consumos domésticos ou empresariais, alimenta, em todos os meses de todos os anos, uma torrente de milhões que vai parar aos bolsos de alguns. Os CMEC são milhões de porquinhos-mealheiro (os consumidores) a encher, por decreto, o gordíssimo cofre do Tio Patinhas. Benefício público? Zero. Ou questionável. Além disso, impedem a economia de funcionar.

Este esquema de privilégio nunca deveria ter começado – e devia ter acabado há muito. Faço parte de um grupo de portugueses (nos bancos do meio, pois não tenho habilitações técnicas especializadas) que já há alguns anos lutam politicamente contra os CMEC. Cremos que são ilegais. E, antes disso e além disso, são gravíssimo erro de política económica e de política energética, que fere as famílias, penaliza as empresas, atinge a nossa economia e a competitividade.

Nunca conseguimos o apoio suficiente para vencer. Sofre-se segregação. E houve quem pagasse mais o preço da verdade: o secretário de Estado Henrique Gomes, a quem presto homenagem, afastado porque queria ir mais longe, mais depressa. Os polos de captura do sistema são muito poderosos – sobretudo quando há muitos milhões em jogo –, hábeis a chegar a muito lado de várias formas, incluindo à comunicação social. Não digo necessariamente corrupção – chega, muitas vezes, o poder encantatório dos milhões ou a teia das redes de poder. Há espíritos que se deslumbram com facilidade. Há dependências que se criam, pela publicidade e por mecenatos. E há a sábia máxima dos prudentes: “Viver não custa, o que custa é saber viver.”

Em maio de 2013, organizei, para alguns colegas deputados no CDS, um seminário com excelentes especialistas na matéria. O seminário sucedeu a um outro, realizado em abril, onde tinha estado António Mexia e a sua equipa. O seminário de maio, contra as rendas ilegais, foi um contraditório arrasador. A explicação e a prova dos abusos e efeitos nefastos foram tão flagrantes que recordo não terem ficado dúvidas sobre o imperativo de acabar com isso. Pois bem… não se passou nada. A questão foi explicada a deputados do Parlamento Europeu – também nada se passou. As altas esferas, os centros de decisão aplicaram ao assunto o triturador habitual e a questão continuou dormente, para não dizer morta. Debate para uma decisão coletiva? Nem um. Tudo rola nos gabinetes, nos corredores, nos restaurantes, nos telemóveis – isto é, nos terrenos favoráveis aos mecanismos de captura.

A troika colocou repetidamente nos memorandos e relatórios esta exigência: “Tomar medidas de modo a limitar os sobrecustos associados à produção de eletricidade em regime ordinário, nomeadamente através da renegociação ou de revisão em baixa dos custos de manutenção do equilíbrio contratual (CMEC) paga a produtores do regime ordinário.” Quase nada se passou. O lóbi que vive disto tem conseguido resistir à própria troika. Podemos chamar-lhe o LDT: o Lóbi Disto Tudo.

Agora, face à ressonância de um caso judiciário, foi convocada a voz grossa dos “chineses”. Sabe-se que, embrulhada com o deslumbre alcunhado de “diplomacia económica”, a compra da EDP e da REN pelos chineses foi, nos corredores, um dos argumentos mais servis para manter o statu quo. Compreendo que os chineses possam estar inquietos: ter-lhes-ão vendido gato por lebre? Mas, aí, teriam de pedir contas a quem, começando pelos órgãos da empresa, lhes tivesse garantido que o direito comunitário é para violar, lhes tivesse escondido a controvérsia já existente, lhes tivesse dito que um esquema lesivo da economia nacional poderia manter-se eternamente ou lhes asseverasse que, em Portugal, o direito e a política democrática estão submetidos ao poder do dinheiro. O que não pode continuar é serem os portugueses, os consumidores de eletricidade, a pagar os custos de mais um logro.

Tenho verificado que as maiorias, fossem as do PS, fossem de PSD e CDS, nunca resolveram o problema. Caíram nos mecanismos de captura e, muitas vezes, participam neles. Por isso, defendo a reforma do sistema eleitoral: nos CMEC, a informação técnica disponível já é tanta que bastariam três ou quatro deputados com pelo na venta e independência pessoal e política para arrasar esta manipulação no prazo máximo de dois a três anos. Se tivéssemos um sistema eleitoral misto à alemã, conjugando círculos uninominais e plurinominais, o eco daquele seminário de maio de 2013 não teria desfalecido. Os deputados não seriam manietados ou condicionados. E, se quisessem agarrar essa luta, ninguém os poderia parar, com o que os partidos também ganhariam. Os partidos ganham com deputados assertivos, que enfrentam problemas, interpretam causas, animam questões; não ganham nada com os que vestem o bibe dos poderosos e dos endinheirados.
José RIBEIRO E CASTRO
Advogado
Subscritor do Manifesto "Por uma Democracia de Qualidade"
NOTA: artigo publicado no jornal i

quarta-feira, 14 de junho de 2017

A perversão da eletricidade

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de Clemente Pedro Nunes, hoje saído no jornal i.
Durante o mandato de José Sócrates criou-se um sistema elétrico monstruoso que protege a energia eólica. Quem paga esta proteção? Todos os consumidores de eletricidade em Portugal.


A perversão da electricidade

Uma Democracia de Qualidade tem como objectivo eleger políticos sérios que exerçam os seus cargos com competência e ao serviço dos cidadãos.

No caso da política energética portuguesa, o objectivo prioritário é o de se conseguir uma base energética que fomente o emprego na economia e, em especial, nos sectores transacionáveis.

Ora, em Portugal, durante o mandato de José Sócrates, criou-se, em 2007, um sistema eléctrico monstruoso, pela inclusão simultânea de duas componentes legais:

a) Promoveu-se a instalação de 5.600 MW de potência eólica intermitente, toda ela protegida legalmente por tarifas “feed-in”;

b) Manteve-se em vigor, e nalguns casos reforçou-se, os CMEC, que eram destinados a “proteger do mercado” as receitas de exploração das centrais que anteriormente serviam de base à produção eléctrica.

As tarifas feed-in garantem, por Lei, duas vantagens fundamentais aos produtores de eletricidade de origem eólica intermitente:

- Um preço garantido, muito acima do preço de mercado - e asseguram esse preço mesmo que não haja consumo no momento da produção.

- Prioridade à energia eólica produzida de forma intermitente, em termos de entrada na rede, afastando assim outras fontes de energia que estejam disponíveis nesse momento e a preços muito mais baixos.

E quem paga, por Lei, estas proteções é o conjunto de todos os consumidores de electricidade em Portugal.

Para melhor se perceber o absurdo deste quadro legal, vejamos dois exemplos:

1) - Consideremos que a Central de Sines se encontra a fornecer eletricidade ao sistema a 35 euros/MWh mas que surge, entretanto, um aumento de vento que introduz no sistema 1.000 MW de potência que beneficia dum preço garantido de 100 euros/MWh. Então, o sistema tem que comprar esta electricidade, deixando de comprar a que estava disponível mais barata.

O que significa que, em cada hora, esta substituição provoca um sobrecusto de 65.000 euros, ou seja, um custo adicional de 1,6 milhões de euros por dia…

Só que os prejuízos que esta descida de produção provoca na Central de Sines também serão pagos pelos consumidores, dado que esta Central está protegida por um CMEC que visa exatamente eliminar estes impactos negativos na respectiva exploração.

2) - O segundo exemplo da irracionalidade económica deriva de que, se, num dado momento, houver excesso de produção eólica e o sistema elétrico português não a puder absorver, ela poderá ser exportada para Espanha.

Só que, aqui, o produtor eólico já está pago pelos referidos 100 euros/MWh que a Lei lhe garante, à custa dos consumidores portugueses, que, neste caso, não vão consumir essa eletricidade, a qual, depois, pode ser vendida a consumidores espanhóis a preços de mercado, como o MIBEL prevê.

O que significa que os consumidores espanhóis podem, depois, pagar a apenas 5 euros/MWh esta eletricidade, que já tinha sido paga aos produtores eólicos por 100 euros/MWh.

É este cocktail explosivo, derivado das limitações tecnológicas da intermitência eólica e dum quadro legal absurdo, que também originou a famosa Dívida Tarifária, que continua a atingir quase 5.000 milhões de euros.

Como é possível o consumidor pagar a eletricidade tão cara e ser-lhe atribuída em cima disso a responsabilidade por uma Dívida Tarifária?

Porque os sobrecustos deste sistema monstruoso são de tal forma elevados que, em vários anos, os responsáveis optaram, por razões políticas, por não fazer pagar todos esses custos nesse mesmo ano e, em vez disso, diferi-los para serem pagos em vários anos futuros.

Só que, com estas regras, os sobrecustos continuam a ser tão altos que a Dívida Tarifária permanece, apesar das tarifas serem tão elevadas.

É como se tivesse criado uma perversão para evitar que a eletricidade produzida em Portugal possa ser usada para criar empregos no nosso país.

E o que se pode fazer para se atenuar este desastre?

Em primeiro lugar, acabar em absoluto com a atribuição de tarifas feed-in a quaisquer tipos de novos produtores, para que o problema não aumente ainda mais.

Em segundo lugar, renegociar as tarifas feed-in e os CMEC ou, pelo menos, não criar mais qualquer tipo de CMEC, que assim se extinguirão a prazo, começando já em finais deste ano com o CMEC da Central de Sines que, ao passar a mercado, será um contributo para reduzir as tarifas.

E, em terceiro lugar, pressionar a Europa, juntamente com Espanha, para que as interligações Península Ibérica/França sejam reforçadas e, assim, se possa vender electricidade quando ela for cá excedentária, ou comprar em França quando ela for mais barata do que na Península Ibérica, melhorando, assim, o custo da base energética em Portugal.

Eis pois um excelente objectivo a alcançar por uma Democracia de Qualidade em Portugal.
Clemente PEDRO NUNES
Professor Catedrático do Instituto Superior Técnico
Subscritor do Manifesto Por Uma Democracia de Qualidade

NOTA:
artigo publicado no jornal i.