quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Apesar de tudo, o Público aguenta-se


.Apesar de cada vez termos menos pessoas a ler, o Público aguenta-se.

Apesar do imediatismo fazer parte do dia-a-dia dos nossos média e o Público não seguir essa via, o Público aguenta-se.

Apesar do “i” que nasceu já fora do tempo, mas a apostar na qualidade, não ter conseguido seguir o trajecto inicial, o Público com qualidade aguenta-se.

Apesar de ter que acabar com o suplemento de domingo, que fazia parte da leitura de todos os que, mesmo com outros suplementos antes do “2”, lemos o Público desde o primeiro número, o Público aguenta-se.

Apesar de ter que deixar de ter alguns colunistas de qualidade, sempre, o Público aguenta-se

Apesar de cada vez haver menos publicidade para distribuir equitativamente pelos meios de comunicação escrita, o Público aguenta-se.

Apesar de a leitura, mormente em papel, estar em desuso o Público ainda aguentar o papel em paralelo com o on-line.

Apesar de a qualidade não ser o mote do nosso quotidiano, seja em comunicação social, seja em muito mais situações do nosso dia-a-dia, o Público com qualidade aguenta-se.

Apesar de o Publico ter tido, neste fim de ano de 2015, que fazer mais uns cortes de custos, o Público aguenta-se.

Mau será o dia em que o Público se não aguentar, ou tiver que seguir a via da não qualidade e não conteúdo para se aguentar.

E sem dúvida que temos que felicitar o Engenheiro Belmiro de Azevedo, por ter criado o Público e por estar a querer aguentá-lo contra ventos e marés, nestes tempos nada fáceis, para muito coisa: como a Democracia, os Valores e a claro, Imprensa com Qualidade.

E o Público aguenta-se e é muito bom.

Pena será o dia, que se espera não aconteça, em que se tiver que dizer por já não ter onde o escrever, o Público como Público não se aguentou e acabou. Esperemos que tal nunca aconteça! E todos dentro e fora temos que ajudar a manter o Público!

Augusto KÜTTNER DE MAGALHÃES
28 de Dezembro de 2015




quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

O alquimista

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de António Pinho Cardão, ontem saído no jornal i.
O alquimista de Veneza acabou enforcado em Munique; o alquimista político renasce a todo o tempo e a fórmula persiste e renova-se.

O alquimista 
Com a descoberta do caminho marítimo para a Índia e o desvio da rota das especiarias do Mediterrâneo para o Atlântico, Veneza entrou em declínio: a economia ressentiu-se, bancos entraram em colapso, sucederam-se falências, a crise chegou.
Por essa altura, chegavam a Veneza os ecos dos feitos de um alquimista, Il Bragadino, que de cidade em cidade ia mostrando o singular dote de transformar matéria desconhecida em ouro de lei. O seu prestígio crescia à medida que as cortes e os fidalgos lhe entregavam grossas somas para a aquisição da misteriosa matéria-prima que transformaria em ouro. Também manejava com sucesso a pedra filosofal, e a cura da infertilidade de Bianca Capello, Grã-Duquesa de Florença, aumentou-lhe fama e proventos. 
Tardando o Doge em resolver a crise, um grupo de venezianos pensou que a aposta nos poderes de Il Bragadino poderia ser a solução. E uma petição levou o Senado, em votação democrática, a contratá-lo para exercer a sua arte a benefício da cidade, a troco de palácio, honrarias e avultados bens materiais. 
Empossado, exigiu Il Brigadino substancial soma de ducados para a aquisição da matéria-prima que iria servir a alquimia. Ao mesmo tempo, ia promovendo demonstrações solenes do seu poder, retirando areia de um vaso e deixando-a cair, entre os dedos, misturada com grãos de ouro. Com a demostração, ia pedindo tempo para transformar em ouro toda a matéria-prima aprovisionada. Mas, com o passar dos anos, e não vendo os resultados esperados, desacreditaram os venezianos dos poderes do alquimista, oportunidade que ele logo encontrou para se despedir com justa causa. A alquimia só funcionava em ambiente de grande união e o que ele sentia era profunda desconfiança; o povo tornara-se o culpado do fracasso do processo. Veneza perdeu tempo e dinheiro, mas o mago foi logo disputado por várias outras cidades, da Itália à Baviera.  
Aparecem alquimistas em todas as democracias, mormente em tempos de dificuldades. Com uma simples aposta tocada pela pedra filosofal, o alquimista afirma poderes de transformação imediata das crises em crescimento, gerando riqueza abundante para todos. E na propaganda do método e nos laços que vai criando, estabelece a teia que vai permitir a sua entronização por um qualquer Senado. A quem promete e jura que a aplicação das fórmulas químicas constitucionais da aposta vai gerar prosperidade certa e distribuição equitativa. 
Mas logo no poder, as fórmulas químicas, antes sagradas, passam a ser modeladas à medida da sua conveniência e a alquimia, antes imediata, passa a demorar anos a produzir efeito.  
Como o alquimista de Veneza, também faz demonstrações. Dos pequenos rolos escondidos nos punhos já não saem alguns grãos de ouro que caíam com a areia, mas moedas à razão de 30 cêntimos por mês, transformando a crise dos reformados em riqueza, ou de 70 cêntimos, assegurando o abono pleno de família necessitada.  
Num estádio superior de manipulação alquímica, mistifica o fim de impostos que vão continuar a ser pagos e proclama o fim de outros que nunca existiram. E se o ouro não chega na quantidade exigida a alguns dos senatoriais apoiantes, logo lhes entrega pepita mais real, a da exploração das gôndolas nos canais da cidade e no espaço aéreo circundante.  
Distribuído o pouco ouro que existia, e já não podendo continuar a ilusão, o alquimista imputa a terceiros a responsabilidade do insucesso. 
O alquimista de Veneza acabou enforcado em Munique; o alquimista político renasce a todo o tempo e a fórmula persiste e renova-se. 
O alquimista é bem a criação de uma democracia sem qualidade

António PINHO CARDÃO
Economista e gestor - Subscritor do Manifesto por Uma Democracia de Qualidade

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

A perversa fantasia da eleição do primeiro-ministro

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de José Ribeiro e Castro, hoje saído no jornal i.

O primeiro-ministro só é “eleito” se obtém uma maioria absoluta, como aconteceu, em coligação, com Sá Carneiro (1979 e 1980) e, num partido só, com Cavaco Silva (1987 e 1991) e José Sócrates (2005).

 
A perversa fantasia da eleição do primeiro-ministro
À medida que se esfumam os vapores da fantasia em que o debate político se arrastou ao longo de dois meses, vai-se tornando possível reflectir mais objectivamente sobre o tema da alegada eleição do primeiro-ministro. Já sabemos – creio que ninguém o negará – que não é isso que está na Constituição e na lei. O sistema constitucional é de eleição parlamentar, isto é, elegemos 230 deputados; e é da relação de forças parlamentar decorrente que resultará a formação do Governo – é precisamente estes “resultados eleitorais” que a Constituição manda o Presidente da República “ter em conta” para indigitar o Primeiro-Ministro. 
O sistema é semi-presidencialista, mas de vertente parlamentar mais acentuada. Por um lado, a revisão constitucional de 1982, conduzida por PSD, CDS e PS, eliminou a responsabilidade política dos governos perante o Presidente da República e concentrou-a unicamente na frente parlamentar de onde, por norma, emanam. Por outro lado, na mesma revisão, inibiu o Presidente de poder dissolver a Assembleia nos primeiros seis meses de cada legislatura, o que o constrange, nesse semestre, a ter de aceitar as indicações maioritárias do Parlamento. 
Com base nas eleições legislativas, o governo será maioritário ou minoritário, conforme assente, ou não, num partido ou coligação de partidos com maioria parlamentar, isto é, maioria absoluta, capaz de resistir por si só a qualquer ataque da oposição. Mas só pode constituir-se e manter-se como minoritário, se o partido que o constitui gozar da convergência, da cumplicidade ou da tolerância de outras forças partidárias que representem em conjunto uma maioria parlamentar, sem a qual não se sustentaria. 
Foi sempre assim, desde 1976.  
Não deixa de ser curioso como as direcções da PàF, que ferozmente se opuseram a esta lógica elementar e procuraram cunhar a ideia de já ter governo eleito a 4 de Outubro, acabaram por ajudar a comprovar que o sistema é exactamente como foi descrito, sem tirar nem pôr. A 10 de Novembro, a aprovação da moção de rejeição contra o XX Governo Constitucional (Passos Coelho/Portas) comprovou que a “maioria relativa” de nada serve: é indispensável uma maioria parlamentar efectiva. E, a 3 de Dezembro, o chumbo da moção de rejeição contra o XXI Governo Constitucional (António Costa) confirmou o carácter determinante de uma maioria parlamentar de apoio ou, ao menos, de tolerância. O sistema democrático é assim. Foi sempre assim. A final de contas, a fantasia é como a mentira: tem perna curta. 
Claro que os líderes partidários – presumidos candidatos a primeiro-ministro – têm influência capital nos resultados eleitorais, quer pela sua própria posição de liderança, quer pela presunção de que um ou outro virá efectivamente a chefiar o governo, como habitualmente acontece, em Portugal ou noutras democracias. É esta circunstância que foi influenciando estratégias de comunicação e de marketing eleitoral, pisando a linha da fraude política, que sublinhavam a tónica da “eleição do primeiro-ministro”, procurando ao mesmo tempo afunilar o sistema partidário e maximizar o “voto útil” nos maiores partidos. Mas, de facto, a Constituição e a lei não se revêem pelo ilusionismo do marketing. O primeiro-ministro só é “eleito” se obtém uma maioria absoluta, como aconteceu, em coligação eleitoral, com Sá Carneiro (1979 e 1980) e, num partido só, com Cavaco Silva (1987 e 1991) e José Sócrates (2005). Se ninguém alcançou maioria absoluta, nenhum primeiro-ministro foi “eleito” e a sua indigitação e manutenção vai depender do jogo de apoios parlamentares, ou porque consiga formar uma coligação maioritária, ou porque alcance um espaço maioritário de tolerância, como aconteceu em outros catorze casos de Governos Constitucionais. O III Governo Constitucional (Nobre da Costa, de iniciativa presidencial) e, agora, o XX Governo Constitucional foram os únicos dois casos de governos que, formados sem condições políticas de sustentação, caíram logo, na Assembleia da República, antes de começarem a governar.  
A bondade da “eleição do primeiro-ministro” é, aliás, ideia que não resiste a reflexão desapaixonada e mais pausada. Como seria possível consagrar e impor a eleição de um governo por maioria relativa? Como funcionaria um tal governo com uma maioria legislativa adversa e uma maioria de fiscalização hostil? E como se fariam as contas face às variações históricas do sistema partidário? Se passasse a haver três partidos à direita do PS, significa isso que a “direita” nunca mais governaria, ainda que somasse maioria absoluta, pois dificilmente teria um partido como o mais votado? E, na inversa, se a “direita” tivesse um só partido ou se apresentasse sempre em coligação, passaria a governar sempre, pois provavelmente teria as listas mais votadas, ainda que a “esquerda” reunisse maioria absoluta? Não vale a pena continuar: as variações do disparate são intermináveis. 
De facto, a coisa não tem pés, nem cabeça.  
O vendaval da “eleição do primeiro-ministro” foi, porém, tão forte que fez surgir porta-vozes defendendo ser necessário alterar o sistema eleitoral para introduzir regras de “facilitação da maioria”, delicioso eufemismo. Trata-se de sistemas de batota, à grega ou à italiana, que, por tipos diversos de bónus, convertem minoria em “maioria”. Estes mecanismos eleitorais são muito controversos e de democraticidade altamente contestável, pondo bem em evidência a perversidade daqueles raciocínios interesseiros. Não entrando em grandes discussões, basta lembrar que, na Grécia, esses truques não evitaram a crise profundíssima do país (antes pelo contrário) e que, na Itália, apesar de alvo de várias revisões, foram responsáveis pelo pântano em que o sistema político italiano vem patinhando desde há largos anos. 
Em matéria de democracia, não há como aplicar o factor KISS: “keep it simple, stupid” – quanto mais simples, melhor. Por isso, a reforma eleitoral de que precisamos não tem nada a ver com malabarismos e engenharias eleitorais, favorecendo uns contra outros; mas uma afinação do sistema que aproxime eleitos e eleitores, que proteja a proporcionalidade e justa representação das pessoas, do território e das correntes políticas e que dê poder e autoridade aos deputados, em lugar de os diminuir a caudatários e claques do “primeiro-ministro eleito”. 
A qualidade da nossa democracia tem vindo a degradar-se. Urgente é requalificá-la de novo.

José RIBEIRO E CASTRO
Advogado
Subscritor do Manifesto "Por uma Democracia de Qualidade"
NOTA: artigo publicado no jornal i.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Onde está o centro?

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de José António Girão, hoje saído no jornal i.

O sistema actual não visa directamente a escolha do primeiro-ministro, embora a escolha deste esteja associada aos resultados dessa mesma votação.


Onde está o centro?

Nos últimos dois meses, o país tem assistido, entre o atónito e o perplexo, à discussão entre figuras partidárias, comentadores políticos de vários quadrantes e seus acólitos, sobre o significado dos resultados das eleições de 4 de Outubro p.p., e da legitimidade da constituição de um governo não liderado pelo partido mais votado. A questão sendo surpreendente não deixa de ser relevante, na medida em que parece revelar uma visão distorcida do que significa o sistema parlamentar em democracia.
Com efeito, um tal sistema assenta na escolha (eleição) de um conjunto de deputados (230 em Portugal) enquanto representantes dos cidadãos/eleitores, agrupados em círculos eleitorais. Embora os candidatos a deputados se apresentem em listas elaboradas pelos partidos concorrentes, o seu mandato é pessoal, restringindo-se a disciplina partidária à obrigatoriedade de votação em apenas algumas matérias - moções de censura, de rejeição e de confiança, aprovação do Orçamento de Estado e pouco mais. De igual modo, o sistema não visa directamente a escolha do primeiro-ministro, embora a escolha deste esteja associada aos resultados dessa mesma votação. Aliás, é precisamente  com vista à clarificação e maior transparência destas questões que um grupo de cidadãos  tornou público o manifesto “Por Uma Democracia de Qualidade” .
Mas qual é, então, a mensagem que se retira da votação no passado dia 4 de Outubro? 
Parece incontestável que a principal conclusão dessa votação é a de que os cidadãos rejeitaram de forma  significativa a continuidade da coligação  PàF, não só porque lhe retiraram a maioria absoluta dos votantes, como tornaram maioritário  o grupo constituído  por abstencionistas e votos nulos (+de 50% ). É verdade que a Coligação recolheu o maior número de votos (38% dos votantes e cerca de 19% dos eleitores), mas tal não constitui, como é óbvio, votação suficiente para poder governar ... a menos que conseguisse o apoio (ou anuência) parlamentar para tal. Como sabemos, não foi isso que aconteceu, tendo acabado por tomar posse e entrar em funções um governo do PS, com o apoio parlamentar do BE e PCP. 
Por outro lado, o facto de a maioria dos eleitores ter decidido não votar nos partidos que participaram no acto eleitoral (na linha de tendência registada em anteriores eleições), significa, com grande verosimilhança, que não se identificam com as  propostas e práticas dos mesmos ... para não falar na desilusão resultante das políticas prosseguidas pela Coligação PàF, traduzida numa perda de votos de cerca de 700 mil eleitores. Igualmente admissível parece ser a conjectura de que a coligação entre o PSD e o CDS resultou num bloco político de cariz neoliberal (como vem sendo designada), mas de qualquer forma não identificável com a matriz social-democrata do anterior PSD. Significa isto, que uma grande maioria de votantes moderados, defensores da economia de mercado, mas com claras preocupações sociais, deixaram de ter um partido com que se identifiquem e os represente. 
Acresce que, como é visível nas actuais reacções dos cidadãos, uma significativa proporção destes, mostra-se entre o surpreendido e o descrente/assustado, com o actual acordo entre o PS e os partidos à sua esquerda, e pelo menos até há pouco, considerados como de protesto e não do “arco da governação”. 
Mas quais as implicações práticas de tudo isto? 
A curto prazo, tudo se reduz à posse de um governo, formado pelo segundo partido mais votado, com apoio maioritário no parlamento, após negociações e acordos firmados com os partidos à sua esquerda. Porém, parece óbvio que as repercussões a médio prazo deverão ser maiores e eventualmente bem mais profundas. 
Com efeito, do que precede resulta que os eleitores ao centro (no sentido anteriormente referido) não têm actualmente um partido com que se identifiquem e em que votar, razão que leva a perspectivar a necessidade de uma reestruturação partidária ... que represente e dê voz ao “Centro”. Com efeito, parece pouco verosímil que o país possa ter como configuração estável a actual situação partidária, configurada por dois blocos largamente divergentes: um de  direita de cariz neoliberal; outro à esquerda, de cariz socialista, mas agrupando visões distintas de socialismo - do radical e de Estado, ao de mercado; logo, demasiado abrangente, não conciliáveis e por isso não credível! 
É pois previsível - e até altamente desejável - que, a médio prazo e com vista a futuras eleições, ocorra uma reconfiguração partidária no país, de que resulte um verdadeiro partido reformista e de prática social-democrata, correspondendo aos anseios de grande parte do eleitorado e no qual os cidadãos se revejam e com o qual se identifiquem. Só assim será possível o país encontrar o rumo que há muito aguarda, e lhe permita finalmente a convergência com os países em cujo espaço se integra, bem como o nível de desenvolvimento sustentável e de esperança por que tanto anseiam! 
Se tal será possível com as actuais lideranças partidárias, ou se outros protagonistas terão de emergir, capazes de dar corpo a estas necessidades e anseios, é a grande questão que aqui deixamos à reflexão e consideração dos leitores.

José António GIRÃO
Professor da FE/UNL
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade
NOTA: artigo publicado no jornal i.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Manuel Maria


Já não está connosco.

O Comandante Manuel Pinto Machado era um homem raro. Basicamente era um militar: foi um dedicado marinheiro. Ontem à noite, na Basílica da Estrela, entre os primeiros que se foram juntando para o acompanhar na última despedida, lá estava uma vasta série de companheiros de Marinha da sua geração, colegas de Curso e camaradas de outras e variadas missões militares. Lá estava também o guião da Associação de Fuzileiros, sinal da especialidade a que também pertenceu. Como acontece entre os camaradas de armas, de forma bem marcada na Marinha, pareciam todos irmãos – e sempre jovens como há cinquenta anos. Para quem pudesse ter dúvidas sobre o seu carácter, via-se bem, pela saudade e presença massiva dos companheiros, que o Comandante Manuel Pinto Machado foi um bom camarada. E era. Mais do que isso: era um amigalhaço.

Até um determinado acontecimento, fez carreira com passo certo na sua Marinha. Comandou alguns navios e foi Imediato noutros. Na Guerra do Ultramar, fez duas comissões de serviço em Angola: a primeira, como fuzileiro; a segunda, que se estendeu também a São Tomé e Príncipe, como comandante da NRP “Cacine”, um navio-patrulha costeiro da Armada. Em Angola, nessa altura, viviam também, em vidas e actividades civis, duas irmãs suas e um irmão, com as respectivas famílias. Esta segunda comissão coincidiu com o 25 de Abril e, depois, a descolonização e o regresso. Deixou o comando da “Cacine” já em 1975. Esta sua última experiência de comando marcou-o tanto que foi com o nome desse navio que baptizou o blog que criou e onde escrevia, na nova era da informação electrónica – o NRP CACINE, cujo lema, atravessado de ironia, é o retrato e o hino da sua personalidade: “O que penso… enquanto me deixam”. Foi neste blog que, em Agosto passado, deixou um quase último post – “Ainda à tona” – com uma metáfora sobre a sua doença final, sempre com a assinatura da sua ironia.

O jovem Cadete
Manuel Maria de Meneses Pinto Machado

Depois, deu-se o outro acontecimento da sua vida profissional. Como militar, em 1980, foi designado para o gabinete do Ministro da Defesa Nacional, Adelino Amaro da Costa. E podemos dizer que entrou militar... e saiu político, isto é, civil. 

O convívio diário com o Adelino marcou-o tanto, que nunca mais o largou. Amaro da Costa foi a sua principal referência política – forjando-se também entre ambos uma forte amizade pessoal. Depois da sua trágica morte em Camarate, Manuel Pinto Machado não deixou de cultivar as suas homenagens. Coligiu e editou, aliás, um dos livros que o evocam: “Escritos de Governo”. Mais tarde, seria durante largos anos o Presidente do IDL – Instituto Amaro da Costa. Aqui, deveu-se, aliás, à sua coragem e visão (juntamente com Paulo Marques, também já falecido, e alguns outros) a formação da decisão de saída do IDL da imponente sede da Rua de São Marçal, o que permitiu que o Instituto deixasse de definhar num palacete ilustre e, com capitais próprios, pudesse retomar actividade visível, regular e influente, noutro local. 

Por causa do CDS, com que se envolveu em memória e por continuação de Amaro da Costa, o Comandante Pinto Machado viria a deixar o activo na Marinha. Em 1981, num tempo ainda de ásperas tensões político-militares, contemporâneas dos debates para a extinção do Conselho da Revolução, viu recusada pela sua hierarquia uma nomeação para o gabinete do Vice-Primeiro-Ministro - e, nesse rescaldo, zangou-se e pediu a passagem à reserva. Qual era o problema? O problema, que começara em 1980, na identificação que teve com Amaro da Costa, era este: tendo sido indicado pelos “militares”, identificara-se com a posição dos “políticos”. Os tempos eram muito bipolarizados e de contraste afiado.

É assim que se aproximou do CDS e nele, mais tarde, entrou e militou até ao fim. A sua referência mais forte, a seguir a Amaro da Costa, foi a de Nuno Abecassis. Foi vereador da Câmara Municipal de Lisboa e desempenhou, por largos anos, variadas responsabilidades autárquicas, sobretudo como Secretário-Geral da UCCLA – uma genial invenção de Nuno Abecassis, precursora da CPLP com alguns anos de avanço –, onde procurou prosseguir o legado do iniciador e dar testemunho também da sua próxima vivência africana, e paixão.

No CDS, foi tanta coisa que não dá para contar. Autarca, dirigente nacional, dirigente local, sempre activo nos corredores e interveniente na escrita. Ontem, na Basílica, a presença de vários altos dirigentes nacionais do CDS-PP, entre os quais o Presidente, eram o sinal e o eco desse rasto que deixou. Certamente que outras manifestações se seguirão, traduzindo a gratidão por o termos tido como um de todos. Todas essas manifestações são e serão merecidas – ele era, de facto, um militante largamente estimado. 

O último lugar que ocupou foi o de Presidente do Senado, cargo de que se orgulhava muito e que lhe quadrava particularmente bem. Orgulhava-se do lugar; da função nem tanto. O Senado foi encostado a progressivo declínio, deixando de ser recomposto e usado ou chamado para o que quer que fosse. Ainda hoje, se formos ver ao portal do CDS, consta lá uma composição do Senado completamente ultrapassada, salvo erro a mesma que era quando saí de Presidente do CDS, em 2007 – dos nomes que figuram na lista, dois já faleceram e um está há muito tempo limitado por razões de saúde. Cansado de apelar bastas vezes para que o problema fosse resolvido e o Senado recomposto e reactivado, Pinto Machado demitiu-se do lugar aquando do último Congresso. Foi o seu último posto partidário.

Manuel Maria de Meneses Pinto Machado, nascido no Porto, onde foi criado e educado, parte de uma conhecida família portuense, é tio direito de minha mulher e, portanto, meu tio também. Eu chamava-o normalmente de “Commander!”, em tom proclamatório. Em família, ele é conhecido, desde miúdo, como “Mizi”. É assim, que todos o chamam lá por casa; e os meus filhos tratam-no pelo “Tio Mizi”. Mas, comigo, deixou de me dar jeito. Nunca me disse nada, nem alguma vez fez a menor observação a este respeito. Pode até nem ser verdade o que eu pensei. Mas, várias vezes, me deu a ideia, por qualquer coisa no seu olhar, que ele não gostava quando eu o tratava por “Mizi” ou “Tio Mizi” – “Manel” (que algumas vezes usei) estava bem, mas “Mizi” não. Parecia olhar-me com aquele ar, gozão mas aborrecido, de quem diz “por-que-está-este-parvalhão-a-chamar-me-Mizi-como-se-eu-fosse-um-garoto?” Por isso, quando tratá-lo por “Manel” não dava jeito, o vocativo “Commander!” era o meu bordão. E ele gostava: quer do tom proclamatório, que soaria talvez a parada; quer da própria palavra – no fundo, ele nunca deixou de ser marinheiro, mesmo quando as circunstâncias da vida o trouxeram para a actividade política e, por aí, à condição civil.

Foi meu chefe de gabinete num curto período, antes de ir para presidente da ANOP, e falámos vezes sem conta nas andanças da política. Os seus dois mentores (Amaro da Costa e Abecassis), seus ídolos também, eram dos temas mais frequentes – o Manel era um homem de espantosa fidelidade a quem deixava rasto, obra e memória. Era um cultor dessa memória e dessa continuidade. É uma coisa que todos os militares aprendem e a generalidade pratica: nós não estamos cá por causa de nós, mas por causa de uma coisa maior.

O Manel era também um excelente conversador, como todos os Pintos Machado – as mulheres então… Nada como uma longa conversa, à mesa ou em recantos de sala. Rotinas intermináveis, com caso ou a descaso, sobretudo pelo prazer apenas de estar uns com os outros. Não conversas como eu sei e gosto, que têm de ter necessariamente um propósito, um fio condutor definido, uma conclusão qualquer. Antes conversas pelo prazer de conversar, não pelo prazer de concluir. Conversas sem destino marcado, conversas ao desafio, conversas assim como Passos Perdidos, conversas inacabadas, porque nunca se pode acabar de conversar.

Havemos de ter muitas conversas sobre o Manel, o “Commander!” Para pôr em dia as suas histórias connosco e as nossas histórias com ele. Conversas inacabadas, conversas que nunca mais nos deixarão.

Há quase um ano, foi tomado por uma estranha e rara doença que o foi consumindo a pouco e pouco. Foi isso: consumir. Era tão difícil o diagnóstico, quanto difícil era o tratamento. Já no fim do Verão, o prognóstico tornou-se infelizmente mais claro e ele foi deslizando mais visivelmente. Ontem, com 72 anos, partiu, abreviando-lhe Deus mais sofrimento.

Por uma singular coincidência, vai a enterrar, hoje, 4 de Dezembro de 2015, quando passam exactamente 35 anos sobre a trágica morte de Adelino Amaro da Costa, que tão proximamente serviu e tão intensamente o contagiou. Amaro da Costa viajava para o Porto de avião. O Manel segue, hoje, da Basília da Estrela para o Porto, onde será sepultado no jazigo da família. Se calhar, foi o Adelino que o chamou. Oxalá se encontrem. E estejam já a conversar.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

A iniciativa privada, a liberdade e a democracia

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de Clemente Pedro Nunes, ontem saído no jornal i.
Os empresários são a componente mais visível da iniciativa económica privada. São eles que congregam e motivam os colaboradores que garantem o sucesso das empresas.


A iniciativa privada, a liberdade e a democracia
A verdadeira iniciativa económica privada é baseada na motivação de alguns cidadãos para criarem empresas capazes de venderem produtos e serviços de forma competitiva e sujeita às leis do mercado aberto. E, ao fazê-lo, terem as competências e o dinamismo necessários para gerarem os recursos para pagarem os salários dos seus colaboradores e remunerarem os capitais investidos.

Os empresários são a componente mais visível da iniciativa económica privada. São eles que congregam e motivam os colaboradores que garantem o sucesso das empresas e assim promovem o desenvolvimento económico dum país, estando todavia sujeitos ao enquadramento legal e de política económica que vigore em cada momento.
Ora a trajectória da política económica de Portugal nos últimos 70 anos foi deveras atribulada.

Do “mercado regulado” da II República passou-se para o socialismo revolucionário do PREC de 1974/75, que liquidou a maior parte das grandes estruturas empresariais privadas então existentes em mãos portuguesas e que, depois, foi sendo sucessivamente amenizado para permitir a entrada do nosso país na então CEE, em 1986.

Mas só após a revisão constitucional de 1989 é que Portugal voltou a ter um enquadramento legal da iniciativa privada em moldes europeus. Isto para pouco tempo depois, em 1998, o país ter sido admitido a integrar a moeda única europeia, a par de algumas das nações e empresas mais competitivas do mundo.

Os quase 15 anos passados desde a entrada de Portugal no euro foram um teste decisivo à capacidade de resistência da verdadeira iniciativa privada portuguesa.

De facto, esta viu-se confrontada neste período com dois desastres entrecruzados: por um lado, o espectacular falhanço das políticas públicas, nomeadamente na área financeira que, fomentando a já tradicional punção despesista do Estado, o levou à pré-bancarrota em Maio de 2011; por outro lado, porque se viu entalada pelo designado “capitalismo decretino”, ou seja, pelas empresas que, sendo aparentemente privadas, vêem os seus resultados depender de decretos-lei que resultam da “proximidade” do poder político, e não das qualidades próprias demonstradas, em concorrência aberta, em mercado livre.

Apesar disso, após 2011, as empresas privadas que actuam em mercado aberto foram capazes, na sua maior parte, de se reinventarem, de reduzirem custos, de se voltarem para a exportação e ganharem novos mercados. Foi essa a razão pela qual o país conseguiu equilibrar as contas externas, pela primeira vez em muitas dezenas de anos, e vencer a maldição da “espiral recessiva”.
E isto apesar de terem sido esmagadas, desde 2011, por um brutal aumento de impostos tornado necessário para suportar a “máquina do Estado” e, simultaneamente, permitir a redução dos défices públicos, o que viabilizou a saída “limpa” da troika em Junho de 2014.

Mas o problema do balanço entre a iniciativa privada aberta à concorrência e o despesismo estatal não está resolvido e ameaça mesmo a liberdade e a democracia.

Uma democracia moderna e saudável tem de se basear no dinamismo dos cidadãos e no prémio ao mérito e ao esforço que só a verdadeira iniciativa privada pode proporcionar.

O Estado não pode absorver recursos excessivos para tentar garantir uma falsa segurança económica aos seus “agentes e protegidos” que a parte competitiva da sociedade não está em condições de lhe fornecer.

Este é um forte desafio estratégico para o governo que acabou de tomar posse. Ou actua de forma a dar espaço de liberdade, em termos das políticas fiscais e de combate à burocracia, para que as empresas que actuam em mercado livre possam criar a riqueza capaz de suportar o Estado social e toda uma máquina estatal devidamente optimizada, ou a liberdade de iniciativa económica dos cidadãos será progressivamente esmagada e tenderão a ficar no país apenas os membros das novas gerações que pretendem viver na “falsa tranquilidade” da sombra de um Estado aparentemente protector ou das empresas que apenas prosperam “por decreto”.

E deste desafio depende também a permanência de Portugal no euro e o próprio futuro da nossa democracia.

Clemente PEDRO NUNES

Professor Catedrático do Instituto Superior Técnico
Subscritor do Manifesto Por Uma Democracia de Qualidade 

E o que fará agora a sociedade civil?

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de Fernando Teixeira Mendes, saído há uma semana (25 de Novembro) no jornal i.
É tempo de a sociedade civil perguntar aos partidos políticos por que alteraram a Constituição e não legislaram para as melhorias conseguidas serem implementadas.


E o que fará agora a sociedade civil?

Tivemos recentemente eleições de deputados à Assembleia da República que mais não foram que eleições de directórios de partidos que, de uma forma pouco democrática, escolhem os deputados, afirmando depois que estes são os representantes do povo.

Assim, em vez de deputados próximos da sociedade civil, temos uma grande percentagem deles cujo objectivo é satisfazer as hierarquias partidárias, para continuarem com a sua remuneração e outras mordomias associadas à função. Pouco ou nada se concentram nos votantes que, legitimamente, muito esperam da acção dos seus eleitos na Assembleia da República.

Democracias destas são chamadas democracias de tipo ditatorial, não tendo apenas um só ditador, mas umas dezenas deles.

Sou dos que pensam que, se fossem correctamente escolhidos, a nossa Assembleia funcionaria adequadamente com 230 deputados, mas com a forma como estes directórios de partidos impõem as suas regras e as disciplinas de voto, uma dezena de deputados contribuiriam para o mesmo resultado das votações e com custos bem mais reduzidos. São as conclusões óbvias que se tiram da forma como decorreram as intervenções dos deputados e os resultados das votações que se verificaram recentemente na Assembleia da República.
Sobre a reforma do sistema eleitoral e o financiamento dos partidos políticos escrevemos, há mais de um ano, o manifesto “Por Uma Democracia de Qualidade”, documento muito actual por cuja implementação a sociedade civil deveria bater-se.

Urge alterar o nosso sistema eleitoral absolutamente terceiro-mundista. Urge constituírem-se círculos uninominais, que a nossa Constituição já prevê há quase duas décadas. É tempo de a sociedade civil perguntar aos partidos políticos por que alteraram a Constituição e não legislaram para as melhorias conseguidas serem implementadas.
É premente ainda alterar-se a Constituição para que nesses círculos uninominais possam ser eleitos deputados candidatos independentes das estruturas dos partidos que se apresentem às eleições por vontade própria, tendo uma vontade genuína de verdadeiramente defenderem os interesses dos eleitores que em si votam, até porque para obterem os seus votos, têm de estar bem perto deles.

Vários estudos mostram ser muito adequado usar-se em Portugal um sistema eleitoral com 130 círculos uninominais e com um círculo nacional de 100 deputados que asseguraria a governabilidade do país. Mais ambicioso, mas ainda melhor, seria dar também a possibilidade aos eleitores de poderem ordenar ou classificar os deputados nas listas do círculo nacional.

Existiria assim uma ligação efectiva dos eleitores aos seus deputados que, como mencionei, hoje não existe, e que muitos especialistas consideram ser a génese de muitos problemas associados ao nosso défice democrático.

Acresce que um tal sistema eleitoral deveria ser do total agrado das estruturas dos nossos actuais partidos políticos porque isso só os iria fortalecer. Mas, infelizmente, isso não se verifica, dependendo a solução deste problema apenas da vontade da sociedade civil. Esta tem de decidir se o caminho é uma entrada nos actuais partidos para alterar a sua forma de actuar ou, em alternativa, criar um ou mais partidos políticos que aceitem sistemas eleitorais com princípios dos indicados no manifesto “Por Uma Democracia de Qualidade” ou de outros semelhantes, que vários grupos da nossa sociedade civil têm vindo a elaborar de forma muito meritória.

Permito-me recomendar-vos a leitura do manifesto “Por uma Democracia de Qualidade”.

Fernando TEIXEIRA MENDES
Gestor de empresas, Engenheiro
Subscritor do Manifesto Por Uma Democracia de Qualidade