Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de José António Girão, ontem saído no jornal i.
É bem sabido que a Verdade, no sentido de algo que está em conformidade com o que é, tem subjacente um sistema de valores. Como este não é único, nem unanimemente aceite, o conceito de verdade torna-se algo subjectivo. Porém, se aceitarmos que o seu oposto é a falsidade, fácil é reconhecer que, na prática, falar com verdade implica, autenticidade, sinceridade e boa-fé.
Um país governado por meias-verdades
Tudo isto vem a propósito de uma reflexão sobre a “verdade” acerca do estado do País, dos seus verdadeiros problemas, das suas causas, da estratégia a prosseguir para os ultrapassar e dos objectivos a atingir.
Não é este, obviamente, o local para um ensaio sobre este tema. Porém, mesmo uma breve reflexão é suficiente para revelar o conjunto de meias-verdades que pululam no espaço político-mediático. Basta lembrarmo-nos do teor das afirmações que predominantemente acompanharam os resultados das recentes eleições legislativas – em que o vencedor foi claramente o “grupo dos abstencionistas e votos nulos” – ou das respeitantes à legitimidade do Governo entretanto entrado em funções, para concluirmos pelo predomínio de meias-verdades no discurso político. Convirá também não esquecer as que acompanham a crise que o nosso sistema financeiro vem atravessando. Mas centremo-nos no discurso mais geral, ou melhor ... na propaganda que o acompanha e lhe serve de suporte.
Uma primeira constatação tem a ver com o endeusamento da estabilidade. Esta é a “palavra de ordem” no momento actual. Sem ela tudo parece estar em risco; nada será possível e o mundo desmoronar-se-á. Esquece-se, assim, que a estabilidade é apenas um tipo de equilíbrio. Aliás, caracterizado pelo facto de, se o sistema sofrer qualquer choque, ou perturbação, ele retomar a situação prevalecente no equilíbrio anterior. Ou seja, trata-se de um conceito altamente conservador e, por isso, totalmente desajustado para situações em que o equilíbrio existente é insatisfatório e haja lugar para pôr em prática uma dinâmica conducente a um novo equilíbrio , ajustado à nova realidade visada. Melhor seria, pois, apelar à prossecução de uma dinâmica de equilíbrio, que permita as reformas que o País há muito exige, mas por forma a que as políticas prosseguidas não conduzam ao domínio ou subjugação das diferentes forças em presença. O apelo à estabilidade é, pois, equivalente a pugnar pelo imobilismo conservador, impeditivo de verdadeiras reformas, por forma a preservar o “status quo” dos interesses instalados. Ao contrário do muitas vezes sugerido, não é factor gerador de verdadeira confiança.
Mas não são só estas as meias-verdades que informam o nosso quotidiano e actuam de forma a obstacularizar a criação e desenvolvimento da necessária dinâmica reformista. Assim, defende-se (ou critica-se) a austeridade, sem clarificar e definir claramente os seus propósitos, ou identificar as medidas alternativas susceptíveis de os alcançar, e menos ainda, sem caracterizar e avaliar os custos e benefícios das mesmas, assim se reduzindo o leque de possibilidades à ideia de que “não há alternativas”; uma outra forma de preservar os interesses instalados.
O mesmo ocorre quando se abordam algumas das reformas necessárias em muitos outros domínios: do sistema eleitoral e do Estado, da educação, saúde, segurança social, justiça, sistema fiscal, equilíbrio das contas públicas e das contas externas, etc. O princípio recorrente no debate é essencialmente o das meias-verdades e apelo à estabilidade, em detrimento da eficiência e equidade, necessárias à eficácia das políticas. Esta implica consenso nos objectivos e nas medidas a implementar, por forma a que o tempo necessário à concretização dos mesmos permita uma avaliação dos resultados alcançados. Igualmente asseguradas deverão ser as regras visando o re-desenho de apropriadas medidas correctivas, sem que ocorram sobressaltos geradores de incerteza.
Em resumo, estabilidade não deve ser confundida com a necessidade e existência de regras de governação que assegurem a eficácia das políticas prosseguidas, de modo a gerar a confiança dos agentes económicos e cidadãos em geral, e que constituem um elemento indispensável da governança pelo poder político. O objectivo fulcral deve ser o de possibilitar um equilíbrio dinâmico, enquanto garante de credibilidade. Para isso são necessárias transparência e regras claras de actuação, e não uma estabilidade de conveniência com os interesses instalados, impeditiva das reformas e ajustamentos necessários, num mundo globalizado e em constante mudança.
O País está cansado da “estabilidade” resultante do poder que advém do actual sistema eleitoral e político. Mais do que estabilidade, Portugal precisa de um desígnio e uma estratégia para o alcançar. E de uma governança que tenha como objectivo final o bem-estar dos cidadãos e não os benefícios resultantes do exercício do poder.
Agora que o País acaba de eleger como Presidente da República, um consagrado professor de Direito e experiente analista político, façamos votos para que se empenhe no contributo que dele é legítimo esperar, para que finalmente passemos à fase de uma vivência assente num desígnio estratégico e definitivamente abandonemos a governação por meias-verdades.
José António GIRÃO
Professor da FE/UNL
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade
NOTA: artigo publicado no jornal i.