terça-feira, 31 de maio de 2016

Um dia igual, um dia diferente

Publicamos, aqui, o texto integral do artigo com o mesmo título, de que uma versão mais curta foi publicada hoje no jornal Público, no contexto das comemorações do Dia dos Irmãos.


O Fernando e eu, na festa dos meus 60 anos

Um dia igual, um dia diferente

- por José Ribeiro e Castro


É lema conhecido: todos iguais, todos diferentes. O mesmo pode dizer-se dos dias: têm 24 horas, mas todos são diferentes – pelo tempo que faz, pela hora a que o sol nasce ou se põe, pelo calendário. Repetem-se, todos os anos; e, repetidos, podem ser diferentes. O traço distintivo é a memória que assinalam ou o valor que celebram: um aniversário; ou a referência social que lhe associamos.

O dia de hoje distingue-se por ser Dia dos Irmãos – festejamos os irmãos e a sua relação. Foi em 18 de Setembro de 2014 que a assembleia geral da Confederação Europeia de Famílias Numerosas (ELFAC) resolveu instituir o Dia dos Irmãos, fixando-o a 31 de Maio a nível europeu, e iniciou a sua celebração anual, na sequência de uma primeira experiência estreada em Portugal nesse ano.

Já havia dias para praticamente tudo, não ainda para celebrarmos irmãs e irmãos. E, todavia, termos irmãos, sermos irmãos, é tipicamente a relação mais forte, mais próxima, mais duradoura na nossa vida. As experiências não são iguais. Há irmãos que se dão mal, não só os que se dão bem – estes predominam largamente sobre aqueles e são o exemplo que guardamos. Variam também os quadros e circunstâncias. Há os que só têm um irmão ou irmã e os que têm muitos. Há os irmãos de idade próxima e os de idades muito afastadas. Há irmãos dos dois pais e meios-irmãos, só de mãe ou só de pai. Há ser o mais velho e ser o mais novo. Há os gémeos e os que o não são. Há ter só irmãos, ou ter só irmãs, ou tê-los de ambos os sexos. Mas seja qual for o quadro, é singular e fortíssima a relação de irmãos. Prolonga-se e alarga-se por tios, primos e sobrinhos. Há sobrinhos, filhos de irmãos, que nos são tão queridos como filhos. Há primos, filhos de irmãos dos pais, com que enturmamos como irmãos – os primos-irmãos, propriamente ditos. E os tios, irmãos dos pais, são os que frequentemente têm connosco as conversas que os pais não têm, grandes camaradas de rectaguarda. É a relação de irmãos que estrutura a ampla e alargada relação familiar.

A lacuna já não existe. Ary dos Santos escreveu no poema que Fernando Tordo musicou para Paulo de Carvalho: “Natal é quando o homem quiser”. Assim é o Dia dos Irmãos: é quando o quisermos – não só quando nos lembramos dos irmãos, mas também neste Dia que, a partir da afirmação civil, escolhemos para os celebrar socialmente. Escolhemos 31 de Maio, hoje.

Existe, é certo, uma petição. Aliás, três: uma, dirigida à Assembleia da República; outra, para as instituições europeias; e outra, para as Nações Unidas. Essas petições são instrumentos de divulgação e agregação – não se destinam a pedir para ser criado o que já está criado. O Dia dos Irmãos existe desde 2014, instituído pela ELFAC.

Claro que será bom que qualquer dessas instituições públicas, superando partidarismos, o abrace e afirme também. Mas estes “Dias” existem fora de qualquer deliberação política. Onde está a lei ou a resolução que criou o Dia do Pai? Ou o Dia do Mãe? Ou o Dia dos Namorados? Não há. Vivem de afirmações sociais. O Dia Mundial do Escutismo resultou dos próprios escuteiros, que adoptaram o Dia de S. Jorge. O Dia Mundial da Terra decorreu da proclamação de um senador americano que foi fazendo o seu caminho. O Dia Mundial da Voz foi a escolha e decisão das associações de otorrinolaringologistas.

O Dia dos Irmãos já está aí para o celebrarmos; e só existe na medida em que o celebremos. De que serviria qualquer instituição proclamá-lo, se os irmãos não o festejássemos? O que seria do Dia da Mãe se não lembrássemos a nossa mãe, não lhe falássemos com um mimo ou uma graça, não lhe déssemos um beijo ou um abraço, não lhe escrevêssemos um bilhete, não lhe levássemos aquela flor?

De tão habituados estarmos aos eventos do “Portugal sentado”, perguntam-nos por vezes: o que vai acontecer no Dia dos Irmãos? O que vão fazer no Dia dos Irmãos? Será como cada um quiser. Ninguém pode substituir-se à singularidade da nossa relação com os nossos irmãos e à imaginação que cada um escolher. Pode ser uma almoçarada ou jantarada. Aquele encontro alargado de família que se adia há tantos anos, fazendo até o plenário dos irmãos, isto é, com tios, primos e sobrinhos também. Uma conferência telefónica via Skype, entre os que estão longe. Começar um jornal de família ou estrear uma página ou grupo no Facebook. Buscar e partilhar fotografias e vídeos antigos. Um concurso de textos, pequenas histórias, quadras, desenhos. Uma futebolada ou um torneio de matraquilhos, malha ou ping-pong. Redescobrir as caricas e os berlindes e fazer um campeonato. Um festival de karaoke. Um simples reencontro. Isso! O mais importante de tudo: reencontro.

Os irmãos marcam-nos para sempre. São como nossa segunda natureza. Na minha circunstância, só tive um irmão. Melhor dito, só tenho um irmão. É facto que já morreu; mas nunca deixei de o ter. Só vivendo, percebemos o que estou a dizer. Não o entendia antes; entendo-o agora.

Um cancro levou-o de repente: ainda novo, com 61 anos. Um cancro de pulmão de células pequenas: terrível! Um cancro de fumador, particularmente agressivo. Num ano, deixámos de o ter connosco. Foi diagnosticado em Fevereiro; morreu em Março do ano seguinte.

O meu irmão tinha qualidades extraordinárias, não só de inteligência, trabalho e dedicação, mas também de temperamento e alegria. Crescemos muito, cultivando sentido de humor diante da vida, das situações e das dificuldades. O desenvolvimento do cancro teve duas fases: uma, em que pensou num milagre; outra, de contra-ataque inexorável do bicho. Numa das últimas semanas, fui almoçar com ele perto do seu trabalho. Não tinha cabelo, por causa da quimioterapia. Ao sairmos para o restaurante, cruzámo-nos com umas jovens, colegas dele, que fumavam à porta do edifício. O meu irmão, sorrindo muito, olhou para elas e disse-me: “Zé! Eu já disse a estas meninas para terem cuidado: fumar faz cair o cabelo.” Elas sorriram também. Sorriso contido.

Nunca o ouvi lamentar a sua sorte. Mas o meu irmão gostava muito de viver. Adorava a vida. Sinto que partiu triste. Gostava de ter mais tempo. E tinha muito para fazer.

Tenho sempre dúvidas sobre se estas coisas funcionam, pois também fui grande fumador e as recomendações não funcionavam comigo. Mas sinto que a prevenção do meu irmão a quem fuma é esta: “Cuidado! Fumar faz cair o cabelo.”


sexta-feira, 27 de maio de 2016

Porque é que o défice orçamental é inimigo de uma democracia de qualidade?

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de João Luís Mota Campos, saído anteontem no jornal i
O défice orçamental permite aos governos não confrontar os eleitores com o custo das decisões políticas que são tomadas, mas que comprometem as gerações futuras. Que não votam…


Porque é que o défice orçamental é inimigo de uma democracia de qualidade?
Imaginem um tanque de água. Pode estar raso, meio cheio ou vazio. Vamos-lhe chamar tanque da dívida pública. A água nesse tanque tem algumas qualidades: diminui com a evaporação – chamemos-lhe inflação – e aumenta com a chuva – chamemos-lhe juros.

No princípio o tanque estava vazio e num tanque vazio não chovem juros. Como é que o tanque se começou a encher?

O tanque encheu alimentado por um tubo de água chamado défice orçamental. Pode esvaziar por um tubo chamado superavit orçamental.

Num país bem governado, a injecção no tanque de défice e a sucção de superavit deveria permitir manter o tanque a níveis satisfatórios, na margem da chamada dívida sustentável. Na verdade, não há um número mágico que determina que a divida seja ou deixe de ser sustentável: os EUA têm uma divida pública igual à nossa; o Japão tem uma divida pública muito superior à nossa – 200% - e no entanto ambas são consideradas sustentáveis e contempladas com os Triple A das agências de rating. Isto é assim porque a sustentabilidade da divida depende de muitos factores, entre os quais o facto de estar denominada em moeda desse país, de haver ou não crescimento económico, do nível de fiscalidade, da inflação, de divida externa e balança de pagamentos…

Em Portugal não há um único ano dos últimos 40 em que tenha havido superavit; houve défice em todos os anos desde 1974. Isto determinou que ao longo das décadas o tanque da dívida foi enchendo e nunca esvaziando, mesmo quando se tiraram de lá uns baldes de água chamados privatizações.

Neste momento o tanque está raso de água e a transbordar. Significa isto que quem nos pode emprestar dinheiro só o faz com juros punitivos, ou como é o caso, com uma garantia de recompra de títulos dada pelo Banco Central Europeu. Quer isto dizer que no dia em que essa garantia desparecer, estaremos tão falidos como antes de 2011.

Porque é que chegámos aqui? Ou por outras palavras, porque é que ano após ano o tubo do défice nunca parou de bombear para o tanque da dívida? A verdade é que ter défices orçamentais é uma escolha política. Há alternativas: pode-se aumentar as receitas ou fazer diminuir as despesas.

O que o Estado português escolheu fazer nos últimos 40 anos foi aumentar os impostos, fazer crescer as despesas e financiar a diferença entre receitas e despesas com recurso a crédito, ou seja, injectar água no tanque da dívida.

Se olharmos para as principais rúbricas da despesa pública, é fácil de perceber porquê: educação, saúde e segurança social, e sobretudo esta que consome cerca de 27% do PIB. Nenhum governo democraticamente eleito quer perder eleições cortando nestas despesas.

A alternativa escolhida consistiu em vender aos credores uns papéis chamados divida pública cuja garantia de pagamento é o trabalho e o rendimento que os portugueses do futuro hão de ter.

Compreende-se pois: os governos «oferecem» hoje ao eleitorado vantagens e regalias que não saem do bolso de ninguém agora, mas que hão-de sair no futuro. As vantagens eleitorais são agora, razão pela qual qualquer governo que queira ganhar eleições não hesita nesta troca de «compre agora e pague depois», mas a verdade é que esta troca distorce profundamente a democracia, constituindo quase uma compra de votos (“votem em nós e aumentámos-vos as pensões”) e no fundo funciona como se o Estado dispusesse de um poço de petróleo ao qual se vão buscar os rendimentos que não saem dos impostos. Não saem agora, mas hão-de sair.

O défice orçamental permite pois aos governos não confrontar os eleitores com o custo das decisões políticas que são tomadas, mas que comprometem as gerações futuras. Que não votam…

Há outra razão pela qual o défice orçamental é profundamente atentatório de uma democracia de qualidade: ao engrossar ano após ano o tanque da divida pública, lança o Estado e as politicas públicas nas mãos dos credores, que nos confrontam com um dilema que consiste em que ou pagamos o que devemos nas condições que os credores estabelecem, ou incumprimos com resultados catastróficos.

Em 1876 a Turquia incumpriu a sua dívida assumida durante a guerra da Crimeia; foi-lhe imposta pelos credores internacionais uma comissão da divida que passou a deter o controlo das alfândegas e da cobrança dos impostos turcos e passou a decidir quais as reformas que teriam de ser realizadas. Esta completa perda de soberania é o que acontece a um país que tem dívida em excesso, ou seja, divida que não consegue pagar. Há pior forma de deturpar a democracia do que entregar as decisões sobre o nossos futuro a credores estrangeiros?
João Luís MOTA CAMPOS
Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade

NOTA:
artigo publicado no jornal i.

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Na geringonça, tanto truque e tanto engano, tanta retórica aborrecida… Onde pode acolher-se um fraco humano?

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de António Pinho Cardão, saído anteontem no jornal i.
Truques que desmerecem de uma democracia de qualidade, incompatível com geringonças de sistemas eleitorais geradores de políticos ágeis em habilidade, mas muito arredados da prática da verdade.

Victor Lustig, um grande artista

Na geringonça, tanto truque e tanto engano, tanta retórica aborrecida… Onde pode acolher-se um fraco humano?

Camões, glosado no título, não seria conhecido por Victor Lustig, cujos truques para ludibriar as vítimas eram também verdadeiros poemas - entre eles, uma máquina de fazer dinheiro. Nas demonstrações que fazia perante cada “cliente” previamente selecionado e do qual conseguira fazer-se amigo, Lustig convidava-o a introduzir na máquina uma nota verdadeira e um pedaço de papel branco com idêntica dimensão, depois de ele próprio sub-repticiamente ter colocado no mecanismo uma outra nota. Passadas seis horas, o acionamento de uma manivela levava a máquina a expelir as duas notas, uma das quais - e aí estava o disfarce - ainda húmida da tinta, sinal de o papel branco se transformara em valor real. Claro que o papel ficava nas entranhas da geringonça. Para comprovar a ilusão, Lustig deslocava-se com o cliente a um banco que, naturalmente, confirmava a autenticidade das notas. Fulminado pela evidência, logo o “cliente” insistia na compra da máquina, ao que Lustig acabava por aceder, considerando a amizade criada e uma avultada comissão. Claro que o comprador nunca conseguia extrair qualquer nota suplementar, mas Lustig já tinha viajado para longe, onde artefacto semelhante se encontrava disponível para uma nova “emissão”. A dificuldade de comunicações e a vergonha pelo logro eram suficientes para deixar Lustig descansado.

Passaram entretanto 100 anos, mas o produto persistiu e estendeu-se mesmo a novos mercados, como o da política, naturalmente usando modernas tecnologias que a renovada clientela já não dispensa.

Em Portugal, a geringonça substituiu o ferramental e as notas de Lustig pelo computador e pelo PowerPoint. Mas se Lustig só conseguia que a máquina produzisse uma nota ao fim de seis horas, o PowerPoint geringôntico garante dinheiro farto imediato no bolso do cidadão, o fim das privações, o aumento da riqueza assente na dinâmica do investimento, do consumo privado, das exportações e da despesa pública.

Acontece que Lustig fazia private placement do produto junto de clientes affluent, enquanto o governo faz dele colocação pública, que exige rigor e validação interna e externa, todavia repetidamente negada. Tal maquinismo é incapaz de transformar dados virtuais em maná concreto e real, dizem.

E se Lustig introduzia duas notas verdadeiras, falsas são as notas que o governo usa para rodar o motor do crescimento: o consumo foi travado por novas fiscalidades, e o investimento racionado. Por milagre, não prejudicando, também insistem, nem crescimento nem redução do défice. Todavia, a nota que vai saindo é a da desaceleração do PIB, do aumento do desemprego, da diminuição da competitividade e das exportações. O papel branco onde se imprimiriam as promessas ficou nas entranhas da geringonça e a austeridade passou a chamar-se consolidação. Consolidação da austeridade, melhor dito.

E se Lustig enganava a vítima com uma caixa, o governo engana com duas, tendo introduzido em cada uma o Plano de Estabilidade e o PNR.

Referencia a primeira o Tratado Orçamental, de que os parceiros de governo nem querem ouvir falar, enquanto a segunda, a do PNR, inclui algumas das mais fortes paixões desses mesmos. Mas não sendo reproduzido o cenário da última no cenário da primeira - é o governo que o diz -, tal significa que é o próprio governo a atestar a falsidade da nota do PNR, pois que não a releva para efeitos do Plano de Estabilidade.

Truques que desmerecem de uma democracia de qualidade, incompatível com geringonças de sistemas eleitorais geradores de políticos ágeis em habilidade, mas muito arredados da prática da verdade. Onde pode acolher-se um fraco humano?

António PINHO CARDÃO
Economista e gestor - Subscritor do Manifesto por Uma Democracia de Qualidade

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Mais uma legislatura perdida

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de José Ribeiro e Castro, hoje saído no jornal i.
A participação eleitoral e a representação democrática estão profundamente doentes. E um dos remédios certeiros é a reforma da eleição legislativa, o paradigma do sistema, devolvendo-lhe prestígio e autenticidade.


Mais uma legislatura perdida
A necessidade da reforma do sistema eleitoral, que aproxime eleitos e eleitores e devolva a democracia à cidadania, é uma das necessidades mais prementes do nosso sistema político. Não deve haver matéria tão badalada quanto essa. De tal forma que, há 20 anos, uma revisão constitucional veio permiti-la com grande amplitude. A Constituição não é aqui justificação para o imobilismo. A culpa da inércia mora unicamente nos diretórios partidários, por uma razão fácil de entender: o que os eleitores ganharão em liberdade e poder de escolha perderão os diretórios em arbítrio e poder de condicionamento.
A nossa democracia transmite, na verdade, sinais consecutivos de alarme.  
Um deles é a multiplicação de novos partidos. A seguir ao 25 de Abril surgiram inúmeros partidos políticos. O tempo sedimentou o regime à volta de alguns, criando um quadro tetrapartidário, hoje pentapartidário, com uma fase de dois partidos dominantes. Mas, na última década, voltámos à onda de formação de novos partidos. É facto que nenhum deles tem obtido resultados relevantes no plano nacional, mas a pulverização do tecido partidário é sempre sintoma de crise de representação. E os comentários sociais que ecoam são igualmente sintomáticos. 
O outro sinal é a abstenção: as pessoas votam com os pés, não votando sequer. Nas últimas legislativas (2015), apesar do dramatismo da eleição e da aguda bipolarização do debate, a abstenção atingiu uma percentagem recorde: 44,1%! E este fenómeno de alheamento da política e das eleições contamina outras eleições também. Nas últimas regionais da Madeira (2015), apesar da mudança de ciclo com a retirada de Alberto João Jardim, a abstenção superou a metade: 50,3%. As autárquicas, diversamente do que se pensa, não são exceção, apesar de serem eleições de grande proximidade: nas últimas multiplicaram-se as candidaturas independentes e, ainda assim, a abstenção foi de 47,4%. Nas europeias, a catástrofe é de há muito conhecida: nas últimas (2014), a abstenção subiu a 66,2%! E a doença atingiu as próprias eleições presidenciais, eleições personalizadas e tidas por “simpáticas” – nestas últimas (2016), a abstenção passou também a metade: 51,7%. 
A participação eleitoral e a representação democrática estão profundamente doentes. E um dos remédios certeiros é a reforma da eleição legislativa, o paradigma do sistema, devolvendo-lhe prestígio e autenticidade. Toda a gente diz mal dos deputados, o que ultrapassa a habitual maledicência dos políticos. Há a convicção (correta) de que os deputados que lá estão não representam ninguém senão os líderes ou oligarquias que servem. Generalizou- -se o descrédito da representação parlamentar, de modo injusto para muitos dos que estão em São Bento. E vulgarizou-se a ideia de reduzir drasticamente o número de deputados: para muitos cidadãos, se calhar, o melhor seria haver só cinco, os chefes – “Chegava perfeitamente! E era mais barato...” 
O Presidente da República introduziu o tema no seu muito saudado discurso do último 25 de Abril. Marcelo Rebelo de Sousa apelou a alguns consensos de regime entre as forças políticas de campos diversos, entre os quais quanto à reforma política. Fez bem – e deve continuar a fazê-lo. Mas os sinais colhidos não são bons.  
O “Diário de Notícias” fez este balanço, no dia 27:  
“No caso do sistema político, qualquer acordo seria sempre mais exequível entre o bloco central, devido ao sistema eleitoral. Aí, o PS não conseguirá trazer a esquerda a jogo nem o CDS alinhará com o PSD. Bloco e PCP afastam liminarmente ideias como a redução do número de deputados, a introdução de círculos uninominais ou do voto preferencial. Isto porque os partidos com menor expressão temem que a proporcionalidade da representação parlamentar saísse beliscada. Basta ver que, no processo de formação de governo o PS limpou do seu programa a ideia dos círculos uninominais e o CDS matou à nascença qualquer intenção do PSD em inscrever no programa da PAF a redução do número de assentos na AR.” 
Ou seja: tudo na mesma. Nada vai acontecer. Para mais, o PSD anunciou entretanto uma proposta que mais não será do que a continuação do estilo de fazer política como “tiros de barraquinha de feira”: nada resulta, senão o estampido. Por um lado, põe à cabeça a estafada redução acentuada do número de deputados, o que é a melhor maneira de gerar desconfiança em todos os outros. Por outro, avança com um muito tímido voto preferencial, que já deu para entender que é a melhor forma de fingir que se muda, deixando tudo na mesma. 
Na revisão constitucional de 1997, abriram-se portas de reforma muito importantes que constam hoje do artigo 149.o da Constituição. Passou a ser possível evoluir para um sistema misto, à alemã, isto é, um sistema rigorosamente proporcional, com justa representação do território, dos cidadãos e das correntes políticas, com uma componente de candidaturas uninominais, além das listas plurinominais. Só esta evolução resolve o nosso problema e será capaz de restituir saúde à vida democrática e à participação da cidadania. Aliás, para os que receiem uma distorção da representação proporcional – que a experiência alemã mostra não existir – poderia ainda acrescentar-se, como última garantia, um círculo nacional de compensação, semelhante ao círculo regional introduzido na última reforma eleitoral açoriana. A possibilidade desse círculo nacional existe desde a revisão constitucional de 1989 e está igualmente a ser desperdiçada pelos nossos DDT da política, os “donos disto tudo”. 
É um desconsolo ver o nosso sistema democrático a desfalecer e desacreditar-se enquanto os dirigentes políticos empurram o tempo com a barriga, sem nada fazerem. É triste ver passarem 30 anos sobre uma revisão constitucional e 20 anos sobre outra, sem aproveitar nenhuma das portas e das alamedas abertas para reformar as nossas decrépitas eleições. Porquê? Porque o que está mal para os eleitores está bem para os DDT. 
Na linha do manifesto Por Uma Democracia de Qualidade, é preciso conseguir que os cidadãos desenvolvam o propósito de “passar a formas superiores de luta”. Se os partidos não fazem e não querem fazer, é preciso correr por fora. Estão a perder o nosso tempo.  
Queremos participar. Queremos escolher.

José RIBEIRO E CASTRO
Advogado
Subscritor do Manifesto "Por uma Democracia de Qualidade"
NOTA: artigo publicado no jornal i.

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Uma crise de confiança

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de José António Girão, ontem saído no jornal i.

Não é simplesmente possível acreditar numa governação sem horizontes, sem sentido estratégico, com políticas titubeantes e a maior parte das vezes erradas, desprovida de uma justiça eficaz.

 

Uma crise de confiança
A crise que Portugal atravessa tem sido tema de inúmeras crónicas e análises. E por boas razões: a sua magnitude inclui dimensões económicas, políticas, institucionais e cívicas. Resumidamente e em síntese, poder-se-ia dizer que se trata de uma crise generalizada que atinge a confiança. Talvez por isso esta seja tão frequentemente referida e tantos apelos lhe sejam feitos. 
A confiança, tal como muitas outras dimensões da vida relacionadas com comportamentos, tem por base a experiência passada; logo, assenta em factos e requer provas. Porém, a nossa experiência passada na esfera política e da governabilidade só muito dificilmente permite gerar essa tão necessária confiança. E sem ela, dificilmente se conseguirá o grau de respeitabilidade, previsibilidade e responsabilidade indispensáveis à tomada das decisões que o funcionamento eficaz da economia e da sociedade exigem. A confiança é tanto mais necessária quanto todo o comportamento humano tem sempre associado uma certa aleatoriedade; é a confiança que permite conter esta no campo do risco aceitável. 
Para além de, atualmente, não existir no país um consenso sobre quais os vetores que perspetivam o desígnio nacional que torne possível equacionar e aceitar o presente, o sistema político não tem sido capaz de produzir novas elites nem instituições geradoras de confiança. Sem um projeto comum, não é possível interpretar o presente nem perspetivar o futuro. E sem instituições inclusivas, que favoreçam consensos, promovam a negociação e permitam equilíbrios sustentáveis, não se conseguirá crescimento económico duradouro e bem-estar social. Negociar é uma das características primordiais das relações democráticas e de igualdade e fator de confiança. 
É, pois, este contexto de ausência de grandes objetivos comuns e de um sistema político capaz de promover a conciliação de correntes de opinião que faz com que as instituições se descredibilizem e façam parte do problema. Gera-se, assim, a desconfiança no Estado - com a consequente suspeita e desrespeito pela lei - e a desresponsabilização dos cidadãos, envoltos numa cultura avessa à avaliação e ao mérito que fragiliza a sociedade civil e mina a confiança. 
Ao que precede acresce - e decorre, em parte - a falta de credibilidade de grande parte das políticas prosseguidas por sucessivas governações. Estas têm-se mostrado reféns dos mais variados - embora nem sempre os mesmos - grupos de interesses e incapazes de definir de forma transparente o rationale subjacente às suas decisões, de mostrar claramente que estas se pautam pelo interesse nacional, e não por quaisquer interesses individuais ou de grupo. O contrário parece ser verdade, assistindo-se ao desenrolar de factos reveladores de corrupção, de práticas fraudulentas e desrespeitadoras dos mais elementares princípios éticos e de conflitos de interesse, sem que se assista à incriminação e julgamento dos responsáveis. O país encontra-se perplexo perante os inúmeros casos, que têm sido relatados, de clara violação das leis e da ética que já custaram ao país vários milhares de milhões de euros - e que, presumivelmente, ainda muitos mais irão custar - sem que ninguém seja responsabilizado. Aparentemente, tudo se esfuma na “memória coletiva”. 
Com tal desresponsabilização e falta de credibilidade na governança interna, não é possível a confiança. Deste modo, não é legítimo nem necessário recorrer aos inúmeros erros da governança exterior a Portugal para explicar as razões pelas quais a economia portuguesa não arranca, nem aos baixíssimos níveis de investimento no país - seja nacional ou estrangeiro. Não é simplesmente possível acreditar numa governação sem horizontes - de navegação à vista e pressionada pelos acontecimentos -, sem sentido estratégico, com políticas titubeantes e a maior parte das vezes erradas, desprovida de uma justiça eficaz. É por isso que, em vez do investimento indispensável ao país, assistimos a destruição de valor e a fugas de capital - financeiro e humano. 
Torna-se imperioso um grito de alerta quanto ao ponto a que chegámos. Há situações a partir das quais o sentido da evolução é irreversível. A história revela-nos alguns exemplos. Não basta clamar por confiança. É indispensável dar provas de que ela é merecida. Credibilidade e transparência das políticas prosseguidas, objetivos claros, inseridos numa estratégia com prioridades claramente assumidas e com responsabilização dos governantes são fatores determinantes da mesma. Temos todos de agir enquanto é tempo.
José António GIRÃO
Professor da FE/UNL
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade
NOTA: artigo publicado no jornal i.