quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

O oráculo do Lavradio

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de António Pinho Cardão, saído hoje no jornal i.
O sábio dos novos tempos não pensa, repousa num qualquer oráculo escolhido a preceito e acaba por decidir pairando nas nuvens.

Antigo Coreto do Lavradio

O oráculo do Lavradio
Uma democracia de qualidade exige que os governos apliquem de forma criteriosa os recursos escassos de que dispõem. E, mais ainda, quando se trata de um país muito endividado e com uma carga fiscal absurda, como Portugal, os governos têm de eliminar o investimento em infraestruturas redundantes, que representam injustificados custos de oportunidade face a melhores alternativas, para além de criarem capacidades excedentárias não produtivas e exigirem outras complementares.

Exemplo óbvio de infraestrutura redundante é o Terminal Portuário do Barreiro (TPB), investimento de 800 milhões de euros cuja construção a ministra do Mar vem garantindo que “será mesmo uma realidade”

Pensam muitas das mais representativas e independentes entidades portuguesas como, por mero exemplo, a Ordem dos Engenheiros, que, havendo Sines, a prioridade seria o desenvolvimento daquele porto. E o mesmo refere a Universidade Católica do Porto. Estas, entre outras, foram entidades que, pensando e estudando o tema, se pronunciaram contra um investimento redundante, considerando-o “inútil”, “um desperdício de recursos” ou um exemplo de “mau investimento público”. Não são ouvidas.

Sócrates, o filósofo, que pensava e era um sábio, foi ridicularizado por Aristófanes e acusado de andar nas nuvens, na comédia com esse mesmo nome. E, pior ainda, foi condenado a beber cicuta. O mesmo, com a exceção da cicuta, está a acontecer a quem se atreve a pensar fora da geringonça, quanto mais não seja por atentar contra os afetos. Na política, então, a completa ausência do ónus de pensar tornou-se o modo natural de vida e fonte de generosos proveitos. O sábio dos novos tempos não pensa, repousa num qualquer oráculo escolhido a preceito e acaba, ele sim, por decidir pairando nas nuvens.

Também eu, por aproximação ao tempo novo, decidi consultar um competente oráculo, o do Lavradio, que me deu os argumentos bastantes para confirmar o Barreiro como o melhor sítio para construir um magnífico e excitante terminal portuário.

O primeiro argumento é tecnológico: não se pode desperdiçar a oportunidade de se constituir um cluster na área do exercício das dragagens, bem como no da reciclagem e enriquecimento das lamas, tarefa geradora de emprego permanente devido à constante acumulação daquela preciosa matéria-prima.

O segundo é económico: o dinheiro vai ser predominantemente gasto em importações ou nas remunerações dos trabalhadores imigrantes; e, assim, estamos a ajudar os outros países a sair da crise. E quanto mais depressa eles saírem, mais depressa nós entramos em crescimento.

O terceiro é ético: o TPB é instrumento essencial para dar o conteúdo justo à distribuição da riqueza nas parcerias público-privadas (PPP), em que o primeiro P define a natureza do negócio (parceria); o segundo P, quem arca com os custos e os riscos (público); e o terceiro P, quem fica com o benefício (privada).

O quarto é desenvolvimentista: como não é justo que as mercadorias fiquem encalhadas no Barreiro, o TPB obrigará a novas pontes, novas autoestradas, novas linhas de caminho-de-ferro, novos comboios, novas PPP, reforçando o argumento antecedente.

O quinto é de oportunidade: se não se construir já o TPB, prejudica-se a sua construção para todo o sempre, dado o risco de se transformar o local numa plataforma ecológica fluvial para abrigar no litoral os excedentes dos linces da Malcata.

O sexto é diplomático: o TPB é o complemento natural do porto seco de Badajoz, com as sinergias a potenciarem-se num futuro canal de ligação, ficando os nossos vizinhos reconhecidos por mais um acesso ao mar. Ao mesmo tempo, promove-se uma benéfica concorrência entre a ferrovia e o transporte fluvial.

O sétimo visa a defesa da concorrência: o TPB impede que o porto de Sines se torne dominante, com as consequências nefastas daí advenientes, nomeadamente em termos de domínio monopolista de Singapura na Europa.

O oitavo é político: o TPB seria um porto para durar um século, o que retiraria a outros governos a oportunidade de construir outro na foz do Trancão daqui a meia dúzia de anos!...

O nono é técnico: só o TPB, dada a natureza do acesso, permite o exercício pleno dos skills e virtualidades da pilotagem, o que não acontece em Sines, de acesso demasiado fácil para as artes da navegação.

O décimo, e definitivo, é religioso: se ministros da geringonça dizem que o TPB é investimento estratégico, se não acreditarmos na geringonça, em quem é que podemos ter fé?

P.S. Averiguei agora que, por coincidência, a geringonça recorreu também à pitonisa do Lavradio para fundamentar o investimento. Estou, pois, no caminho dos sábios. Um oráculo amigo é a solução, substituindo o mero pensar, que, para além de dar trabalho, pode levar à cicuta, como aconteceu com o grego. Livra!...

E assim vamos nesta democracia, cuja aferição de qualidade deixo aos leitores.

António PINHO CARDÃO
Economista e gestor - Subscritor do Manifesto por Uma Democracia de Qualidade

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

À procura de rumo – factos e insuficiências

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de José António Girão, hoje saído no jornal i.

São as instituições políticas e económicas que estão subjacentes ao sucesso (ou insucesso) económico.


À procura de rumo – factos e insuficiências

O final de um ano e o dealbar de um novo são sempre ocasiões para fazer o balanço do que passou e conjeturas sobre o que começa. É assim que, no que respeita ao que terminou, o facto mais saliente de reflexão se centra na geringonça: mérito e sobrevivência da mesma contra as expectativas dominantes, o que, numa perspetiva alternativa, corresponde à descrispação e acalmia na vida político-social. Isso é indiscutivelmente positivo. Mas afigurar-se-á sustentável e, sobretudo, chegará para vencermos a crise interna com que há muito nos confrontamos?

Sobre as possibilidades e probabilidade de sobrevivência da geringonça, não me irei aqui pronunciar; deixo isso para os politólogos e jornalistas. Considero, aliás, que é a dimensão político-económica que é decisiva e que, sem uma visão estratégica para a questão económica, não será possível sair do círculo vicioso em que nos encontramos. No entanto, convém desde já salientar que existem neste domínio duas visões potencialmente conflituantes: a dos que defendem a premência de procurarmos resolver prioritariamente os problemas estruturais internos (visão reformista) e os que põem o acento tónico na dimensão externa da crise, a qual consideram impeditiva da melhoria das condições de vida dos portugueses e limitativa do exercício da soberania nacional (visão europeísta da crise).

É óbvio que a crise com que nos confrontamos tem uma dimensão europeia (ou mesmo global), que constitui a sua envolvente externa. Mas pretender defender que esta é a causa única (ou decisiva) dos problemas com que nos debatemos há décadas, ignorando o papel determinante dos condicionalismos internos que bloqueiam o nosso desenvolvimento e crescimento, é um claro atentado à inteligência dos portugueses. Não faltam estudos, análises e reflexões sobre as falhas, deficiências e lacunas das nossas instituições político-administrativas e empresariais, causadoras de graves distorções na esfera socioeconómica e de comportamentos impeditivos de uma salutar concorrência e de uma competitividade criativa. E esta competição é decisiva no contexto da globalização, com vista a facilitar a mobilidade seja de bens e serviços, seja das pessoas e ideias. Sem ela não haverá lugar ao crescimento, ao progresso e ao desenvolvimento económico-social. Claro que isto não elimina a importância da repartição do rendimento no processo de progresso e melhoria das condições de vida, mas põe em evidência a indispensabilidade do crescimento económico enquanto fator determinante dos fins a atingir. Este é um ponto essencial a ter em conta na formulação da política em geral e das políticas públicas em particular.

Ora, como todos bem sabemos, não pode haver crescimento (sustentável) sem confiança dos agentes económicos no sistema político e suas instituições. E todos nós estamos certamente bem conscientes também das limitações quer de umas quer de outras, entre nós. Pondo para já de lado as questões relacionadas com as deficiências do sistema político, que estão, aliás, na origem do Manifesto “Por Uma Democracia de Qualidade” - e na base dos artigos que semanalmente vêm sendo publicados neste jornal sobre esta temática -, são conhecidas as insuficiências e a má qualidade das instituições em Portugal. Não só de natureza estritamente pública, mas igualmente de supervisão, reguladoras, empresariais, cooperativas, etc., sem esquecer as de natureza judicial, todas elas atingindo níveis de ineficiência que deveriam ser motivo de repúdio e vergonha por parte dos responsáveis políticos, tal como, aliás, sucede já com uma grande parte (maioria?) dos cidadãos.

Dito isto, deveremos começar por não esquecer os ensinamentos contidos nessa obra fundamental, da autoria de D. Acemoglu e J. Robinson, “Porque Falham as Nações”. São as instituições políticas e económicas que estão subjacentes ao sucesso (ou insucesso) económico. São as sociedades que conseguem organizar-se por forma a criar incentivos e compensar a inovação, assim permitindo a todos participar nas oportunidades económicas que daí resultam, e simultaneamente garantir que o sucesso e o progresso daí emergentes se torna sustentável, através de uma governança responsável (accountable), capaz de dar resposta aos anseios da grande maioria dos cidadãos, que triunfam; caso contrário, o seu falhanço é inexorável. Quão longe estamos em Portugal de alcançar este desiderato? Queremos nós continuar a ignorá-lo?

Sem isto também não será possível formular políticas públicas apropriadas e portadoras de futuro, uma vez que há que pôr cobro às distorções resultantes de interesses mesquinhos e lóbis de compadrio, e apostar decisivamente em políticas que promovam o investimento eficiente e de qualidade que está subjacente ao progresso - nomeadamente em pessoas (capital humano) e locais de trabalho que garantam a qualidade de vida e a dignidade dos cidadãos.

Abandonemos, pois, as visões parciais que resumem tudo a slogans e fazem depender tudo de medidas pontuais, que já provaram a sua incapacidade para resolver os problemas das sociedades contemporâneas, sejam elas as que põem ênfase na contenção de défices nas contas públicas, na privatização, na eficácia dos mercados, na liberalização do mercado do trabalho, etc., sem ter em consideração uma visão integrada dos problemas que confira dimensão humana e de justiça à solução. Só por essa via conseguiremos enfrentar os populismos e pôr cobro à demagogia!

José António GIRÃO
Professor da FE/UNL
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade
NOTA: artigo publicado no jornal i.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Legislar pela calada: o caso do Zé Augusto

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de José Ribeiro e Castro, hoje saído no jornal i.
A questão-chave da democracia é que os deputados respondam perante os cidadãos. Parlamento, representação; democracia, cidadania – sem isso, não presta.

O Estado carteirista

Legislar pela calada: o caso do Zé Augusto
Um dos piores problemas da nossa democracia é legislar pela calada: fazer leis sem que ninguém se dê conta disso. Numa sociedade democrática e aberta, é grave violação política e condenável erro moral. E, num parlamento democrático, dir-se-ia impossível: como seria possível que, com tantos deputados, vários partidos, maioria e oposição, numerosas comissões, reuniões disto e daquilo, assessores e adjuntos, imprensa, rádio e televisão, publicações na internet, possam adotar-se normas sem que ninguém se dê conta delas? Não pode!

Pois a verdade é que pode… Às vezes, ferindo gravemente interesses e direitos dos cidadãos. A extensão e complexidade das leis, a sobrecarga e fragmentação dos trabalhos parlamentares (com cada um cuidando do seu quintal), a quebra da democracia interna, a falta de participação e a destruição do trabalho colegial dos grupos parlamentares facilitam o manejo e a obscuridade, com duas consequências muito negativas: ou a possibilidade de manipulação deliberada, ou a maior facilidade do erro grosseiro. É possível fazer às escondidas com toda a gente a olhar; ou não ver aquilo para que se olha.

O caso recente mais conhecido contei-o no prefácio do livro “Manifesto Por Uma Democracia de Qualidade”. Correspondeu, em 2014, ao que Bagão Félix denunciou na televisão como o “cúmulo da estupidez legislativa”: a proibição imposta a reformados e aposentados de trabalharem à borla, sob ameaça de sanções pesadas. Essa anormalidade legislativa ainda levou tempo a ser corrigida, mas o mais absurdo são as circunstâncias em que tudo aconteceu, aparentemente sem que ninguém se desse conta, após longos trabalhos parlamentares. Uma nódoa.

Estava escrito que não seria caso único. O meu amigo Zé Augusto vive, angustiado, o segundo. Querem-no (e à família) forçar a pagar mais 2 mil euros de IRS, quando teria 500 a receber. Tudo por causa de outra trapalhada legislativa daquele calibre, também em 2014. Outra nódoa.

O Zé Augusto é casado e tem filhos. Têm rendimentos médios. Apresentou sempre a declaração conjunta de IRS com a mulher – e diz-me, irritado, que nem sabe fazer doutra maneira, nem percebe como é que puderam forçá-lo “a separar-me”. Quando, no Verão, me ligou a protestar, ripostei que tinha sido enganado, pois podia fazer a declaração conjunta. De facto, em 2014, o governo fizera uma reforma do IRS em que apontava para a tributação separada dos cônjuges, mas mantinha a possibilidade da tributação conjunta. Eu lembrava-me bem disso, pois não compreendia como é que “o partido do contribuinte e da família” ia romper com a tributação conjunta e impor a tributação individual, desprezando a família e penalizando o contribuinte. Recordo-me que, na altura, me responderam haver uns estudos segundo os quais seria assim mais benéfico para os contribuintes e, em qualquer caso, mantinha-se a possibilidade de optar pela tributação conjunta. Não gostei muito, mas, havendo liberdade, menos mal: cada qual faria como achasse melhor. E li ao meu amigo o artigo da nova lei. Afinal, eu é que fora enganado.

O Zé Augusto respondeu-me que isso era se tivesse entregue a declaração até 31 de Maio. Explicou-me que estava a mudar de casa, tivera dificuldade em organizar a papelada com a mulher, e quando, pela primeira vez com atraso, tentou entregar a declaração, já não pôde. Comunicaram-lhe que, agora, tinham de ser declarações separadas, o que lhe provocou mais atrasos, pois tiveram de andar a desagregar rendimentos e despesas. Só em Julho conseguiu entregar os papéis. E em Agosto, além da coima (contra a qual não protestava), levou o tiro: fora notificado para pagar um pouco mais de 2 mil euros de IRS, quando “o normal é receber estornos de 400 ou 500 euros”.

De facto, a mesma lei de 2014 introduzira uma habilidade manhosa para a qual ninguém alertou ninguém e que não foi objeto de debate parlamentar. Não no artigo principal, que define a incidência pessoal do imposto, mas noutra norma muito mais à frente entrou o texto criptado que continha o diabo: “A opção só é considerada se exercida dentro dos prazos previstos no artigo seguinte, sendo válida apenas para o ano em questão.”

O Zé Augusto ficou fora de si. E assim tem andado. Lamentou-se-me de andar nas manifestações de apoio à PàF, no início da legislatura – “Tu e os teus amigos nunca mais me apanham!”
O caso dele não foi o único. O clamor com a asneira legislativa foi tal que chegou ao provedor de Justiça: recebeu 104 queixas de famílias, o que é indício de serem centenas ou milhares os prejudicados. É natural que a própria Autoridade Tributária tivesse notado a enormidade que estava a ser feita. Isso explica a pronta reação do governo, que logo tomou posição e fez entrar uma proposta de lei para reparar estes excessos e permitir declarações conjuntas retroactivas. A imprensa deu nota de agregados familiares com prejuízos de 3 mil a 4 mil euros de imposto a mais. Destes não sei, mas o meu amigo tem um prejuízo líquido potencial de 2500 euros, entre o que paga e o que não recebe.

Numa das vezes que fui com o Zé Augusto às Finanças, a funcionária entreolhava-se e confirmava haver muitos casos. Ajudou-o. Ele tem de se endividar para pagar os 2 mil euros e, com a demora da nova lei no parlamento, as intimações fiscais eram contínuas. Meteu uma reclamação – bem fundada, mas não serve de nada. E a funcionária aconselhou-o a requerer o pagamento em prestações, até tudo poder ser reparado. Foi um bom conselho, que permitiu ao Zé Augusto passar um Natal tranquilo.

Está outra vez inquieto e desconfiado, porque a nova lei nunca mais sai. E as prestações começam a vencer-se no fim do mês. Ao fim de quatro meses na Assembleia, a lei reparadora foi aprovada. Por unanimidade. Foi-o no mesmo dia que o Orçamento; este saiu logo, mas a lei que responde à situação injusta de centenas ou milhares de famílias ainda espera. Está zangado. Compreendo. Não é caso para menos.

Este outro caso confirma falta de qualidade da democracia. Mostra incompetência coletiva, com pesadas consequências pessoais e patrimoniais. Como é possível um parlamento, em 2016, aprovar por unanimidade o desmanchar de uma norma manhosa adotada por maioria há dois anos? Agora, com o dedo apontado, foi competente; em 2014, incompetente. É certo que a responsabilidade só é atribuível à maioria de então. Mas surpreende ninguém o ter denunciado e discutido. O legislar pela calada está errado. É isso que afasta todos de tudo, porque mina o crédito da representação e a confiança na democracia.

As famílias e os contribuintes que tenham sido atingidos por esta violência poderão não voltar a votar no “partido da família e do contribuinte”, ao menos até ser apresentada explicação ou retificação. Mas o pior são os que passam a votar em ninguém, porque sentem que ninguém os representa, porque vêem e percebem que partidos e parlamento não funcionam de acordo com mecanismos de representação.

A questão-chave da democracia é que os deputados respondam perante os cidadãos. Parlamento, representação; democracia, cidadania – sem isso, não presta.

José RIBEIRO E CASTRO
Advogado
Subscritor do Manifesto "Por uma Democracia de Qualidade"
NOTA: artigo publicado no jornal i.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

O assalto às PME e a estabilidade da banca

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de Clemente Pedro Nunes, hoje saído no jornal i.
Para as PME que não conseguirem aumentar os preços de venda só haverá duas alternativas: endividarem-se junto da banca ou tornarem-se insolventes, com o consequente drama do aumento do desemprego.


O assalto às PME e a estabilidade da banca

O dinamismo e a capacidade de resistência das empresas produtoras de bens e serviços transacionáveis foram o que salvou a economia portuguesa após a pré-bancarrota a que Portugal chegou em maio de 2011, então conduzido pelo governo socialista de José Sócrates.

Reduzindo custos, lançando-se para o mercado exterior face à retração forçada do mercado interno, estas empresas, e muito em especial as PME, foram as responsáveis pela retoma económica registada logo a partir de 2012 e pelo fenómeno do reequilíbrio das contas externas, que desmentiram as previsões da “espiral recessiva” que muitos reputados economistas consideravam inevitável devido ao plano de ajustamento forçado pela troika.

Infelizmente, o novo governo da geringonça, logo que tomou posse, há um ano, decidiu atacar frontalmente a sustentabilidade das empresas que estão sujeitas à feroz concorrência externa.

Foi logo o abandono da redução da taxa de IRC, anteriormente acordada pelo próprio Partido Socialista, e que era uma peça fundamental para a capitalização das PME. Foi, de seguida, a decisão da reposição imediata dos quatro feriados, sem qualquer tentativa de acordo na concertação social, com importante influência no aumento dos custos de produção, muito em especial no quarto trimestre, onde se situam três dos quatro feriados repostos.

Foi, depois, o célebre “imposto Mortágua”, destinado a confiscar a poupança imobiliária, incluindo aquela que está investida em andares de habitação que se encontram devidamente arrendados e que, por isso, pagam já todos os impostos devidos.

E isto é tanto mais grave quando são as PME que criam grande parte do emprego e são indispensáveis para manter Portugal no euro. E só a solidez financeira das empresas dos setores transacionáveis pode permitir à banca ser rentável evitando as “loucuras financeiras” que geram depois as famosas imparidades, que só provocam mais dívida, pública e privada.

Criar as condições fiscais para que as empresas se possam capitalizar ao serviço da criação de emprego deverá ser, pois, um objetivo político fundamental para garantir a coesão social de Portugal e a sua manutenção na Zona Euro.

Por isso se assistiu agora com grande preocupação ao diktat do governo sobre as empresas no que diz respeito ao aumento do salário mínimo, aumento este que se situa muito acima da taxa de inflação e dos ganhos de produtividade, o que claramente coloca em causa a competitividade da economia portuguesa.

Com 557 euros, pagos 14 meses por ano, a que acrescem 22,5% da componente da TSU paga à parte pelas empresas, mesmo após a redução especial proposta para 2017, as empresas vão ter de despender 557x14x1,225 euros por cada colaborador, ou seja 9630 euros em 2017. Para os cerca de um milhão de colaboradores nestas condições, o esforço financeiro exigido globalmente às empresas atinge os 9630 milhões de euros.

Mas atenção: 33,5% deste montante é receita direta do Estado, através da Segurança Social, ou seja, 3250 milhões de euros saem das empresas diretamente para os cofres do Estado.

Além disso, isto representará em 2017 um adicional de 448 milhões de euros relativamente a 2016, e deste aumento de despesa, 33,5%, ou seja, 150 milhões de euros, vão diretamente para o Orçamento do Estado como contribuições obrigatórias para a Segurança Social - o que constitui um precioso contributo para a redução do défice de 2017.

Mas, para manterem a atividade nestas novas condições, as empresas terão de ir buscar algures esses 448 milhões de euros adicionais.

Para as PME que não conseguirem aumentar os preços de venda só haverá duas alternativas: endividarem-se junto da banca ou tornarem-se insolventes, com o consequente drama do aumento do desemprego.

E se é certo que, em 2016, o extraordinário boom turístico, provocado pela instabilidade no Médio Oriente e no norte de África, salvou o emprego, nada garante que em 2017 este fenómeno se repita na mesma escala e que a ameaça do desemprego não ressurja.

E depois lá estará de novo o espetro do aumento das dívidas à banca e do aumento do malparado.

Conforme já referi em anterior artigo, a atual política de redução da poupança em simultâneo com o aumento do consumo só será possível, a prazo, com uma política laxista e suicida de concessão de crédito por parte da banca que aumente artificialmente a circulação financeira.

Por isso, considero que a última coisa que o atual governo da geringonça deseja, exatamente ao contrário do que se tem propalado, será aplicar o pré-acordo com o BCE para a recapitalização da Caixa Geral de Depósitos que foi recentemente revelado pela imprensa e que visa, nomeadamente, uma grelha muito mais rigorosa para a concessão de créditos.

Mas esse será um assunto para ser tratado com maior profundidade em próximo artigo, para se criar em Portugal “Uma Democracia de Qualidade” conforme proposto no nosso Manifesto.


Clemente PEDRO NUNES
Professor Catedrático do Instituto Superior Técnico
Subscritor do Manifesto Por Uma Democracia de Qualidade

NOTA:
artigo publicado no jornal i.