Facilidade ou exigência? Eis a questão
O governo, o Presidente da República e a maioria dos comentadores dos jornais e das televisões regozijam-se com o estado do País e acreditam que os portugueses estão a viver melhor, que as contas públicas estão no caminho certo, que a dívida está controlada, que o défice vive mínimos históricos e assim vai continuar, para satisfação da União Europeia, além de que a paz social veio para ficar. Suponho, portanto, que os portugueses andam felizes e contentes, seja porque já se habituaram à pobreza, seja porque desistiram de lutar por uma vida melhor, seja porque emigraram.
Este é o estado da governação em Portugal e, num tempo de grandes mudanças por todo o mundo, os nossos dirigentes tratam do contentamento e da felicidade dos portugueses, entre afetos e
selfies. Para quê, portanto, duvidar do Presidente da República e do primeiro-ministro, ou de tantos académicos e politólogos que os portugueses leem, ouvem e veem diariamente?
Para completar a bem-aventurança, até um senhor holandês resolveu contribuir para o peditório de um raro momento de unidade nacional, ao considerar que os portugueses andam a dedicar-se excessivamente ao vinho, ao sexo e a gastos sumptuários, desatenção que lhe custou a exigência de demissão, ainda que ele tenha apenas expressado, com uma notável ausência de diplomacia, aquilo que os países do norte e do centro da Europa pensam e, já agora, pensam os nossos credores, que, com regularidade, se expressam ao nível dos juros que pagamos. O que se deve certamente a um erro de perceção mútua.
Claro que não é a primeira vez que vivemos contentes. Já aconteceu quando éramos os bons alunos europeus, no tempo de Cavaco Silva, ou gozávamos a economia de sucesso de António Guterres, bem como durante as vitórias delirantes de José Sócrates. Foram tempos em que, com alguns outros miserabilistas, me queixei da ausência de uma estratégia nacional para o desenvolvimento
(1), do excesso de obras públicas, da economia de bens não transacionáveis, das exportações insuficientes e do omnipresente regime político do compadrio, além de um Estado ineficiente e caro, utilizado como máquina de voto dos partidos.
Nada de novo, portanto. Agora apenas temos a adição da geringonça, uma dívida um pouco maior e mais impostos e taxas; quanto ao resto, continua tudo na mesma. Para justificar as estatísticas que nos colocam no fim da tabela europeia, temos a crise internacional de 2008, a sra. Merkel, o ministro das Finanças alemão e, sorte nossa, o holandês voador. Além disso, o governo tem agora na Assembleia da República um apoio muito mais diversificado do que no passado, mas também muito mais eclético: coexistem na governação partidos com diferentes opções quanto à União Europeia e à NATO, que governam em diálogo frequente sobre privatizar ou nacionalizar, aumentar os salários ou o investimento, dar prioridade ao mercado interno ou às exportações, reduzir o défice ou gastar um pouco mais em investimentos tão importantes e rentáveis como o porto do Barreiro ou árvores em vez de carros no centro de Lisboa.
Portugal, depois de ter espatifado, sem estratégia e sem critério, muitos milhares de milhões de euros de ajudas da União Europeia ao desenvolvimento e modernização do país, tem agora no poder partidos que advogam a saída do euro e da União Europeia, mas sem explicação do que fazer a seguir – porventura, seguir as pisadas da Venezuela. Nesse processo, infernizam a política e a economia portuguesas e corroem qualquer simulacro de sentido de orientação que o governo de António Costa possa ter. A realização de um referendo sobre o assunto tornou-se, por esse motivo, uma necessidade nacional, para acabar de vez com a dúvida e reforçar a nossa participação na União Europeia e no euro, ainda que com outro nível e maior exigência.
Neste contexto de grande felicidade nacional, continuo a defender para Portugal o que sempre defendi: reforma do sistema político e das leis eleitorais, como previsto no
“Manifesto Por Uma Democracia de Qualidade”; definição de uma estratégia euro-atlântica de médio prazo e de um modelo económico consequente e exportador; atrair o investimento estrangeiro de empresas integradoras que nos tragam mercados, usando as vantagens logísticas da nossa localização no centro do Ocidente e beneficiando, através do
transhipment em Sines, de ligações rápidas e baratas de mercadorias com todos os continentes; definir como o principal objetivo económico aumentar as exportações para um mínimo de 60% do PIB e trabalhar nesse sentido com os empresários portugueses; reduzir substancialmente o IRC; reformar e profissionalizar a administração pública e criar uma verdadeira escola de Administração; fazer passar pelo crivo da Assembleia da República, em sessões públicas, as nomeações para altos cargos do Estado, com base em critérios profissionais e de seriedade; acabar com a pobreza e a ignorância numa geração através de um novo modelo de ensino pré-escolar, com alimentação e transporte, destinado às crianças das famílias mais pobres; na educação, continuidade de políticas e exigência e exigência e exigência, com prioridade às ciências em geral e às engenharias em particular.
A felicidade dos povos, como podemos aprender com os nórdicos ou com os irlandeses, não compreende a mentira e a cultura da facilidade como modelo de governação. É o resultado do trabalho consequente, da verdade na relação entre os governantes e a sociedade e da exigência em todos os planos: político, económico e social. Porque não existe justiça social sem eficiência económica, apenas os governantes com essa cultura de rigor e de verdade podem realizar as transformações que dão acesso ao progresso dos povos.