quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Orçamento em modo de Péradon

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de António Pinho Cardão, saído hoje no jornal i.
Ademais, nunca se pode chamar do Estado a um Orçamento que não inclui nenhuma ideia de fundo, qualquer projeto motivador ou política pública relevante.
 
Orçamento em modo de Péradon 
Eu explico o título. A discussão do Orçamento do Estado para 2019 lembrou-me um episódio insólito, mas verdadeiro, ocorrido por volta dos idos de maio de 1970. À época, um grupo de quatro ou cinco bons malandros de Lisboa, vistos como gente de cultura, mas longe da clássica comunidade cultural, anunciaram por vários meios e também num prestigiado vespertino a vinda a Portugal de um brilhante filósofo francês, de seu nome A. Péradon, para uma conferência sobre a sua obra. A conferência, apresentada sob o título “A revolução teórica de A. Péradon”, realizou-se numa sala com nobreza, à imagem do ilustre orador. Presentes, vultos da cultura, académicos, deputados, profissionais liberais.

Feita a apresentação por um dos promotores da iniciativa, jurista e, mais tarde, administrador de um grande banco português (tenho uma cópia da apresentação), que considerou o pensamento de Péradon como uma poderosa e coerente síntese de diversas escolas filosóficas, o convidado discorreu em francês sobre a sua obra. No período de debate, convenientemente limitado porque o professor tinha de antecipar inesperadamente o seu regresso, alguns dos presentes ainda puderam expressar o seu apreço pela obra do filósofo, lamentando o relativo desconhecimento da mesma e atribuindo-o às debilidades do ensino e a uma menor atenção das editoras nacionais. A conferência terminou em beleza.

Eis senão quando, num rápido cocktail final, um amigo dos promotores segreda a alguém que tudo não passara de uma pantomina: o prof. Péradon nunca fora nem francês nem filósofo, era um português radicado em França desde pequeno, desconhecido em Portugal, e que se prontificou a participar na brincadeira. Num fósforo, a informação espalhou-se e os promotores só não passaram um mau bocado porque já tinham saído com o palestrante. E o vespertino, que tinha caído na esparrela de divulgar a conferência, não mais falou no assunto. Aliás, não seria admissível divulgar que personalidades importantes da cultura tinham caído no logro de conhecer e comentar um autor e uma obra inexistentes…

O episódio saltou-me à memória ao ouvir os comentários sobre o Orçamento do Estado, uma ficção não menor que a obra de Péradon. É que, a avaliar pelo passado, o Orçamento que tantos solenemente debatem não durará mais do que o tempo da sua aprovação. Depois será rapidamente golpeado, ferido, cortado, cativado, transferido de rubrica para rubrica, aliviado de despesas de investimento e incrementado por vistosa despesa corrente.

Para não ir mais longe no passado, basta atentar na abissal diferença entre os valores que o OE de 2018 apresentava e as estimativas da sua execução referidas no OE para 2019: se as despesas com pessoal aumentam 377 milhões de euros em relação ao orçamentado, valor compensado por uma diminuição em 381 milhões de euros no investimento na formação bruta de capital fixo (trocando-se investimento por despesa corrente, e siga a roda…), também os consumos intermédios e as outras despesas correntes sofrem cortes de 456 milhões e de 408 milhões de euros, respetivamente. Diferenças que adulteram por completo o Orçamento aprovado, tirando-lhe todo o significado, para além de explicarem muitas das dificuldades sentidas pelos serviços, nomeadamente de saúde.

Mostram ainda os números constantes do OE para 2019 que, em 2018, o governo estima extorquir à economia mais 1320 milhões de euros de receitas fiscais que o orçamentado, além de lhe retirar mais outro tanto em investimento não realizado, consumos intermédios e outras despesas correntes, desmentindo assim por completo a propaganda de que o crescimento económico se deve à política económica e orçamental.

Ademais, nunca se pode chamar do Estado a um Orçamento que não inclui nenhuma ideia de fundo, qualquer projeto motivador ou política pública relevante. Um Orçamento cheio de medidas avulsas eleitoralistas, proclamando benesses nos livros escolares, na gratuitidade dos passes ou na redução de propinas, traficando novos impostos sobre sacos de plástico por um adiamento de declaração de outros e culminando numa descentralização sem verbas que a suportem, ou num aumento das despesas com pessoal em 1,1 mil milhões de euros em relação ao OE de 2018. Um Orçamento que rigidifica a despesa servindo alvos clientelares, em detrimento dos cidadãos.

Para coroar a ficção, o colossal embuste de inscrever despesa de 590 milhões nos mapas orçamentais e eliminá-la para cálculo do défice!

Se o OE de 2018 foi um mero derivativo exótico e enganador, o Orçamento de 2019 é um produto tóxico, sem qualquer realidade subjacente.

E quem analisa tal ficção como se realidade fosse faz mais triste papel ainda que os académicos que comentaram a ficção de Péradon. Esses procuraram esconder a vergonha, enquanto estes desavergonhadamente se prestam a divulgar o logro. Porque o OE de 2019 é tão vazio como a obra de Péradon.

António PINHO CARDÃO
Economista e gestor
Subscritor do Manifesto por Uma Democracia de Qualidade
NOTA: artigo publicado no jornal i

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Porque este não serve, que regime queremos?

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de Eduardo Baptista Correia, hoje saído no jornal i.
Temos hoje partidos fechados em si mesmos que em função de interesses promovem e despromovem a eleitos os membros do grupo. 

Porque este não serve, que regime queremos?

Vivemos tempos onde de uma forma regular verificamos a falta de preparação, sentido de Estado e ausência de visão estratégica para o país por parte de uma parte muito significativa da classe política. Deputados mal preparados, presidentes de câmara sem a mínima noção da importância da sua actuação para a vida das pessoas e para a qualidade do território e, mais grave, líderes partidários de fraquíssima dimensão.
O livro recém-publicado do ex-Presidente da República Cavaco Silva vem reforçar muito essa noção, facilmente perceptível ao cidadão mais atento e interessado. A fragilidade emocional e técnica de Passos Coelho para galvanizar o país era evidente e apenas ultrapassada pela completa ausência de segurança do então líder do PS, António José Seguro, a quem o ex-presidente apelida de medroso e incapaz de liderar. Tanto um como o outro cresceram juntos dentro dos respectivos partidos políticos e não se conheceu a nenhum dos dois nenhum mérito extra. Um foi primeiro-ministro e o outro esteve perto. Por outro lado, temos um conjunto de líderes que pensam em si acima de qualquer outro interesse e que tudo fazem para sobreviver. Cavaco apelida António Costa de artista e taticista, o que de facto é bem patente na forma mestre como salvou a respectiva sobrevivência política negociando com o Partido Comunista e a extrema-esquerda a constituição de um governo que muito pouco tem contribuído para as reformas essenciais de que o país necessita, mantendo o regime de fascismo fiscal perfeitamente activo com a benesse de toda a esquerda, constituindo esse número a grande mestria daquele a que o ex-Presidente apelida de artista. Por fim, Paulo Portas foi classificado de infantil e pouco patriótico. Ambos passaram grande parte da sua vida dentro dos respectivos partidos.

Há muitos anos que escrevo e manifesto a minha preocupação com o sistema político assente na partidocracia que efectivamente promove este tipo de perfis ao desempenho dos mais altos cargos da gestão dos destinos do país, e por isso, de um modo geral subscrevo a interpretação que o ex-Presidente agora publica, o que confesso constitui uma raridade. Fico contudo uma vez mais admirado com o tempo escolhido para o ex-Presidente reclamar. Enquanto Presidente da República não o vimos nunca intervir no sentido da regeneração do regime. Quando podia de forma ponderada e devidamente alicerçada contribuir para a alteração do regime pura e simplesmente não o fez. São as oportunidades perdidas que atrasam as sociedades.

Pessoalmente defendo um regime onde a carreira dentro dos partidos políticos não constitua a plataforma de acesso ao poder. Defendo um regime onde os cidadãos antes de chegarem ao poder dão provas do seu contributo para a sociedade, onde as juventudes partidárias são juventudes de solidariedade social, onde os cargos políticos sejam muito bem remunerados, e onde os eleitores elegem directamente os seus representantes, nomeadamente através de círculos uninominais. Defendo um regime meritocrático onde antes de se ser Presidente da República, primeiro ministro, ministro, Presidente de Câmara ou deputado seja necessário provar sistematicamente ao longo da vida o respectivo valor. O que temos hoje são partidos fechados em si mesmos que em função de interesses promovem e despromovem a eleitos os membros do grupo.

Este regime tem ainda como consequência contaminar a sociedade com os maus hábitos que ex-políticos e governantes levam para as instituições a que muitos depois de terminarem as suas carreiras lhe são entregues para governarem. Estão neste domínio empresas e instituições publicas, universidades e fundações. De facto, deveria ser ao contrário. Seria o desenvolvimento de boas práticas ao longo da vida que deveria possibilitar aos mais bem preparados serem escolhidos para governar o país. Incomoda-me profundamente verificar que na constituição de alguns dos governos pós-25 de Abril a qualidade da formação e da ética daqueles que ocupavam pastas governamentais não é comparável em medida alguma com o que hoje se passa na forma com a gestão dos interesses que não os públicos, condiciona a constituição dos governos.

Estou absolutamente convicto de que o desenvolvimento de uma nação está intrinsecamente ligado à qualidade do aparelho de Estado e para isso em Portugal necessitamos de mudar o regime. O povo português está cada vez mais consciente dessa necessidade.

Há muito para desenvolver e evoluir na democracia portuguesa.

Eduardo BAPTISTA CORREIA
Activista político
Gestor e Professor da Escola de Gestão do ISCTE/IUL
Subscritor do Manifesto "Por uma Democracia de Qualidade"

NOTA: artigo publicado no jornal i

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Está aí a reforma eleitoral

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de José Ribeiro e Castro, saído hoje no jornal i.
Com a petição pública “Legislar o poder de os Cidadãos escolherem e elegerem os seus Deputados”, está finalmente em cima da mesa a reforma eleitoral. Agora, já podemos tomar posição e puxar o tema para o centro dos debates da Assembleia da República.


Está aí a reforma eleitoral

Com a petição pública “Legislar o poder de os Cidadãos escolherem e elegerem os seus Deputados”, está finalmente em cima da mesa a reforma eleitoral. Agora, já podemos tomar posição e puxar o tema para o centro dos debates da Assembleia da República. 
A petição, lançada pela histórica SEDES e pela APDQ, outra associação cívica mais recente, contém um projecto de lei cuja adopção muda para melhor, num instante, o sistema eleitoral português. Além de podermos escolher os partidos ou coligações da nossa preferência, determinando a proporção das representações parlamentares, passaríamos a eleger também os deputados que representam os territórios de maior proximidade e a influenciar o processo de escolha dos demais. Com esta lei, que concretiza plena e rigorosamente a Constituição, deixará de haver deputados mais dependentes dos directórios que do eleitorado. Entraremos numa democracia de qualidade e a abstenção cairá, de imediato, para perto dos 20% ou menos ainda.

Estamos à espera de quê?

No projecto agora apresentado, o total de deputados passa a 229. Nos dois círculos da emigração mantém-se o sistema actual, com quatro deputados. O novo sistema misto de representação proporcional personalizada é aplicado para atribuir 210 mandatos distribuídos pelos círculos em que se divide o território nacional, na proporção do eleitorado. Estes 210 mandatos territoriais – o eixo fundamental do sistema e da representação política – são repartidos, de modo paritário (105+105), entre círculos uninominais e círculos plurinominais, correspondendo estes às regiões autónomas e aos distritos (ou, nalguns casos, agregação de distritos). Os últimos 15 mandatos são reservados para atribuição por um círculo nacional que assegura, por um lado, a máxima expressão possível da liberdade de escolha da cidadania e, por outro, ao mesmo tempo, a garantia da proporcionalidade da votação.

No espírito deste sistema misto de representação proporcional personalizada, os vencedores nos círculos uninominais não são imediatamente eleitos, mas ficam investidos nos primeiros lugares de eleição dentro da quota proporcional obtida pela sua candidatura na circunscrição territorial em que o círculo uninominal se integra. Numa circunscrição a que caibam, por exemplo, 14 deputados, haverá sete círculos uninominais e listas plurinominais de sete candidatos. Escolhidos directamente pelos eleitores, os vencedores nos uninominais entram, com precedência, nos lugares de eleição ganhos pelo respectivo partido ou coligação na mesma circunscrição territorial eleitoral. O problema põe-se, porém, no caso de um candidato de um determinado partido vencer num círculo uninominal e o partido já não dispor de lugares na sua quota territorial para acomodar mais esse mandato – são os chamados mandatos supranumerários, em alemão Überhangmandate.

O modelo alemão, que é o melhor dos modelos internacionais de sistemas mistos, apresenta duas dificuldades. Uma é a cláusula-barreira: só têm acesso ao parlamento as candidaturas que obtenham um mínimo de 5% na percentagem nacional plurinominal ou vençam, pelo menos, em três círculos uninominais. A outra é a dos deputados supranumerários: a eleição dos que vençam em círculos uninominais para além da quota do respectivo partido, indo acrescer ao total de deputados e fazendo, como na Alemanha, com que o parlamento tenha sempre um número variável de membros.

A primeira dificuldade é fácil de resolver: não há cláusula-barreira. Somos contra. Ponto final! Já a segunda é mais complexa. A solução alemã não nos é possível em Portugal: nós temos um limite máximo de deputados e, por isso, mesmo que se o achasse razoável, a Assembleia da República não pode crescer indefinidamente, sob o impulso aleatório dos supranumerários. Além disso, a situação tem-se tornado cada vez mais complexa na Alemanha, em virtude da evolução do sistema partidário. Nas eleições de 1949 a 1990, o problema não suscitou preocupação, ainda que, em rigor, um deputado supranumerário seja sempre uma distorção da proporcionalidade: os supranumerários eram poucos (muitas vezes nenhum, um, dois, três e só uma vez cinco), com peso quase insignificante, não se gerando querela. Nos últimos anos, porém, o número de supranumerários começou a crescer quase continuamente, de eleição para eleição, levando o Tribunal Constitucional, para garantir a proporcionalidade, a ordenar que fosse arbitrado aos partidos não beneficiados com Überhangmandate o número suficiente de mandatos complementares (Ausgleichsmandate), para repor a proporcionalidade do voto plurinominal. Este remédio ampliou a dimensão do problema: nas últimas eleições, o Bundestag recebeu nada mais nada menos do que 111 deputados adicionais (46 supranumerários e 65 complementares), passando dos 598 mandatos de candidatura aos 709 mandatos de eleição. Isto, para a Alemanha, não será um problema; para nós, é.

O projecto de reforma dá solução a este problema bicudo. Tenha-se presente que a resposta aos supranumerários pode ser, basicamente, uma de três. A primeira é como na Alemanha: são todos eleitos, e… logo se vê. A segunda é: nenhum é eleito – o sistema é de representação proporcional personalizada e, portanto, não há representação personalizada para ninguém acima e fora da representação proporcional. A terceira é intermédia: admitir supranumerários até um limite máximo nacional, sujeito ainda ao sistema de compensação correctiva.

Optou-se por esta última solução, que se construiu, por a considerar equilibrada, aceitável e justa. Essa gestão final é efectuada dentro da bolsa de 15 mandatos do círculo nacional: no total nacional, podem ser confirmados de zero a oito mandatos supranumerários; e há 15 a sete mandatos complementares para corrigir as distorções de proporcionalidade que tenham ocorrido no apuramento territorial. Tenha-se presente que, como aconteceu várias vezes na Alemanha, pode não haver qualquer mandato supranumerário, caso em que os 15 mandatos do círculo nacional serão todos para efeitos de compensação.

A divisão 8/7, nos mandatos do círculo nacional, sinaliza o igual peso do factor cidadania (uninominais) e do factor proporcionalidade (plurinominais, correção complementar), dando um sinal mais forte para a cidadania. Mas pode preferir-se inverter para 7/8. Ou alterar para repartições mais acentuadas, como uma fórmula 10/5 ou 5/10. Ou qualquer outra conjugação que gere o maior consenso, assegurando sempre as finalidades do sistema. O importante é assinalar que o problema deixou de ser um problema: há solução.

Será óptimo quando estivermos já nessa fase de especialidade e a afinar outros pormenores. O modelo está pronto para ser assumido, a partir da petição pública. Cabe aos cidadãos levantar a voz. E aos deputados fazerem o seu trabalho.

Para o eleitor, este novo sistema de representação proporcional personalizada é de grande simplicidade e liberdade. No boletim de voto, cada eleitor assinala: quanto às listas candidatas no círculo plurinominal, o partido da sua escolha; e, entre os candidatos no seu círculo uninominal, o deputado que prefere. E, ao exercer o direito de voto, cada eleitor tem a garantia de que receberá um parlamento a representar, de forma fiel, o peso percentual das correntes políticas, mas também todo o território e, finalmente com poder de escolha, os cidadãos.

José RIBEIRO E CASTRO
Advogado
Subscritor do Manifesto "Por uma Democracia de Qualidade"
NOTA: artigo publicado no jornal i



quarta-feira, 10 de outubro de 2018

As instituições da República

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de João Luís Mota de Campos, saído hoje no jornal i
A crise exacerbou todas as piores tendências do capitalismo global, acrescendo à desigualdade social, à erosão do Estado social, à proteção dos mais desfavorecidos, ao aumento da influência das redes clientelares, alienando progressivamente as classes médias e lançando-as num ambiente cada vez menos seguro e com um futuro cada vez mais incerto. 
As instituições da República
A confiança na estabilidade do mundo em que vivemos é tudo. É um facto histórico que a crise de 2008 começou em 9 de agosto de 2007, de manhã, quando o banco francês BNP Paribas anunciou que congelava três fundos devido à “completa evaporação de liquidez em certos segmentos do mercado americano de securities que tornou impossível a atribuição de valor a determinados ativos independentemente da sua qualidade ou avaliação de crédito”.

Este “evento” de mercado destruiu em horas a confiança no sistema e lançou uma sequência catastrófica de acontecimentos cujo ponto culminante e mais notório foi a falência do Lehman Brothers em 15 de setembro de 2008 e a paralisação quase completa dos mercados financeiros ocidentais e transatlânticos.

Adam Tooze, no seu recente livro “Crashed – how a decade of financial crises changed the world”, explica bem que a crise do subprime não foi uma crise americana, mas uma crise dos mercados financeiros transatlânticos, europeus e norte-americanos.

Esta crise, como todas as crises, foi a causa de profundas transformações económicas, sociais e políticas no mundo, mas também foi a consequência de uma permanente perda de influência e poder por parte do mundo ocidental, cujo poder económico era e continua a ser enorme, mas num mundo cada vez mais multipolar em que a segunda e, em breve, talvez primeira potência económica é a China.

Enquanto a China e o Sudoeste asiático crescem a velocidades estonteantes, a Europa e os Estados Unidos vão-se transformando naquilo a que Nial Ferguson chamou um “Estado estacionário”, citando Adam Smith em “A Riqueza das Nações”: trata-se da condição em que se encontra um país que já foi próspero quando pára de crescer.

As suas características são o caráter social regressivo e a capacidade de elites corruptas e monopolistas de explorarem o sistema legal e a administração pública em seu favor.

Esta alteração do eixo de poder no mundo em desfavor do Ocidente, no termo de meio século de globalização da economia mundial e de desregulamentação dos mercados financeiros, colocou as sociedades ocidentais numa posição de fraqueza e insegurança sobre si próprias, os seus valores e os seus princípios.

Por outro lado, a crise exacerbou todas as piores tendências do capitalismo global, acrescendo à desigualdade social, à erosão do Estado social, à proteção dos mais desfavorecidos, ao aumento da influência das redes clientelares, alienando progressivamente as classes médias e lançando-as num ambiente cada vez menos seguro e com um futuro cada vez mais incerto.

As consequências venenosas da crise de 2008, tal como as da Grande Depressão de 1929, têm vindo a fazer o seu caminho, desde logo numa profunda mudança de paradigmas, começando pelo retrocesso da globalização, substituída junto de muitos novos decisores políticos pela ideia do nacionalismo económico, quer à esquerda quer à direita, tão bem explicada há dias pelo presidente Donald Trump no seu discurso na Assembleia-Geral das Nações Unidas.

Com o novel (e muito antigo) nacionalismo económico surgiu toda uma série de novos protagonistas políticos de um “novo tempo” que paulatinamente vão ascendendo ao poder, seja nos EUA ou na Hungria, Rússia, Turquia e tantos outros, e que lentamente vão definindo um novo paradigma político do séc. XXI: a democracia iliberal, assente em caudilhismos e nacionalismos, e não em instituições estáveis. Pelo contrário, as instituições existentes, a começar pelos tribunais, são os primeiros alvos desses novos regimes políticos.

Muita gente em Portugal imagina que, porque as coisas demoram a chegar cá, não vão chegar nunca, e que estamos imunes a esses fenómenos políticos.

Portugal é um país profundamente conservador que manteve durante 41 anos a Constituição e o regime de 1933 e que há 42 anos mantém quase intactos a Constituição e o regime saídos do 25 de Abril.

Da mesma forma que antes de 1974 parecia impossível evoluir nas nossas posições em relação à existência das chamadas províncias ultramarinas, onde residiam mais de meio milhão de portugueses metropolitanos, e que esse nó górdio foi cortado numa manhã de abril de 1974, também agora parecemos enterrados sem solução num regime que se mostra incapaz de evoluir e adaptar aos tempos modernos.

Se as classes médias portuguesas se virem confrontadas com um renovar da crise (que, ao contrário do que é dito, está longe de ter acabado: precisamos de 30 anos de superávites orçamentais só para voltar a uma percentagem de dívida de 60% do PIB…) e se aparecer um caudilho que saiba capitalizar esse sentimento de profundo descontentamento latente e alienação social, quantas manhãs julgam que serão necessárias para desatar o nó górdio do nosso atual regime político representativo?

Como Daron Acemoglu demonstrou (“Porque Falham as Nações”), a qualidade institucional de um país é essencial para a sua prosperidade a longo prazo. A verdade é que as melhores instituições são aquelas que atraem o consenso e a legitimidade da sociedade como um todo.

Para isso é essencial que possam evoluir guardando o essencial do seu espírito democrático. Instituições que não evoluem e se mantêm rigidamente, apesar de, à sua volta, um turbilhão de mudanças e de riscos exigirem respostas novas, são instituições que a prazo deixam de merecer a aprovação dos cidadãos.

Uma dessas instituições, essencial da democracia representativa em que vivemos, é a eleição em regime proporcional do nosso parlamento, uma instituição central à nossa democracia e ao sentimento de representação, sem o qual o regime político perde legitimidade.

Temos pugnado há anos para propiciar uma evolução desse regime eleitoral que, em suma, aproxime eleitores de eleitos e dê aos cidadãos algum módico poder de escolha, de que hoje estão privados.

Verificamos que a nossa classe política é imune e avessa a estas ideias de mudança, que implicariam da sua parte uma forte capacidade de adaptação. Como cidadãos empenhados, temos tentado furar esta barreira e levar estas ideias à deliberação do parlamento. Não tem sido fácil.

No entanto, não podemos desistir de salvar de si próprias as instituições da nossa República, esperando que o instinto de sobrevivência aguce o engenho dos nossos representantes antes que o tempo deles termine e a mudança os condene aos caixotes do lixo da História.

João Luís MOTA CAMPOS
Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade

NOTA: artigo publicado no jornal i.

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Mais cidadania, melhor democracia

Uma democracia capturada pelos partidos

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de Henrique Neto, saído hoje no jornal i.
Vivemos numa democracia capturada pelos partidos e pelo seu domínio sobre o Estado e a sociedade, o que limita por todas as formas a participação dos cidadãos na vida política. Tal não mudará até que os portugueses possam escolher os seus representantes e enviar para casa uma parte substancial daqueles que pouco ou nada fizeram para tornar Portugal uma verdadeira democracia.


Uma democracia capturada pelos partidos 
Apesar de os partidos políticos portugueses terem feito há 20 anos uma revisão da Constituição da República para permitir a reforma das leis eleitorais, no sentido da democratização do nosso regime político, nenhum dos partidos com assento na Assembleia da República se mostrou até hoje disposto a permitir essa reforma, para que os candidatos a deputados possam ser escolhidos pelos cidadãos eleitores em vez de, como agora acontece, serem escolhidos pelos diretórios dos partidos. Com efeito, o sistema atual força os cidadãos eleitores a terem de escolher entre dois males: ou a abstenção ou o voto em listas fechadas, com nomes de candidatos que os eleitores não conhecem ou que, nalguns casos, conhecem demasiado bem, mas cuja proposta de eleição não podem evitar.
Não se trata de um mero acaso da política portuguesa, mas da vontade firme dos partidos políticos com assento na Assembleia da República de deterem o monopólio da participação política, o que lhes permite reforçar o controlo do Estado e, através do Estado, controlar muitas das instituições da sociedade. Também não por acaso, todos os anos o Orçamento do Estado destina muitas centenas de milhões de euros às mais variadas instituições, com o resultado de criar as mais diversas dependências relativamente ao poder político.

Este modelo institucionalizou em Portugal o centralismo democrático da ex-União Soviética e com as mesmas consequências: permitir a impunidade das classes dirigentes e o domínio do Estado e das instituições da sociedade. Trata-se de um modelo bastante simples: o chefe escolhe os índios e os índios, agradecidos, elegem o chefe.

Há todavia uma diferença: em Portugal não há uma mas duas oligarquias que se revezam no poder e com os mesmos custos para a democracia, um dos quais é a opacidade do poder, central e autárquico. Desta ausência de transparência democrática resulta a naturalidade com que os governantes e os dirigentes partidários se recusam a esclarecer ou sequer a responder aos sucessivos casos de alegadas ilegalidades, ou mesmo de corrupção, divulgados pelos meios de comunicação social. Ter a “consciência tranquila” tornou-se numa vulgata válida para governantes, autarcas e dirigentes de futebol, além de uma demonstração clara da impunidade do poder.

Dois exemplos recentes: a senhora ministra do Mar foi acusada de ter nomeado uma amiga e sócia para um cargo público, o que foi considerado ilegal por vários juristas, mas em vez de procurar fazer a sua defesa e dar a sua versão sobre o caso, como seria natural, permitiu-se dizer que estava demasiado ocupada e não tinha tempo de responder às perguntas dos jornalistas que publicaram a notícia.

Num outro caso, a autarquia de Lisboa foi visada por acusações de um ex-autarca e por um minucioso trabalho de investigação jornalística acerca de diversos casos de favorecimento em rendosas autorizações de construção, sem que o presidente da autarquia ou qualquer outro dos restantes autarcas se tenha incomodado a explicar, ou a documentar, as razões para tão estranhas decisões, que envolvem interesses conhecidos e têm contribuído ao longo dos anos para a má imagem da gestão autárquica.

Ou seja, num qualquer regime político verdadeiramente democrático, onde a opinião pública e a opinião publicada são respeitadas, estas atitudes de arrogância e de falta de transparência nunca seriam toleradas. Em Portugal são a normalidade, como ainda recentemente aconteceu na Assembleia Municipal de Lisboa, quando o Partido Socialista, com a ajuda dos seus aliados, inviabilizou que o poder excessivo do autarca Manuel Salgado pudesse ser democraticamente avaliado.

Aliás, durante muitos anos, nem mesmo o sistema judicial se preocupou com as questões da transparência, ou mesmo com a corrupção mais evidente, até que uma nova procuradora-geral da República colocou alguma ordem na investigação da corrupção, com os resultados conhecidos. O que provocou um visível incómodo na generalidade da classe política, tendo mesmo começado a surgir as mais variadas criticas à Procuradoria-Geral da República, o que antes não acontecia, nem mesmo quando o anterior procurador-geral protegia ostensivamente um primeiro-ministro que acabou preso.

Nenhuma destas minudências parece preocupar demasiado os deputados na Assembleia da República, que, escolhidos pelas cúpulas dos partidos para a função de proteção do seu sistema de poder, o fazem sem atender à degradação dos serviços do Estado ou aos fenómenos de corrupção, por mais evidentes que se tenham tornado, ou à defesa da transparência, da ética e do bom nome da atividade política.

Ainda sobre corrupção, é significativo que a maioria dos partidos políticos não aparentaram sentir qualquer incómodo com a recente substituição da procuradora Joana Marques Vidal, ou com o facto de o governo ter pedido a opinião dos partidos um dia antes de a decisão ser anunciada e, obviamente, depois de assumida pelo Presidente da República – o que deveria ser considerado um caso limite de falta de decoro institucional, que afeta o próprio Presidente, mas que para os partidos se trata de uma não questão. Suponho, por isso, que toda a encenação feita pelo governo, que durou quase um ano, teve como consequência dar alguma esperança aos acusados pela justiça e acalmar algum nervosismo latente no Partido Socialista. Digo-o com a convicção de saber o que a casa gasta, mas sem qualquer juízo negativo sobre a nova procuradora, que apenas espero e desejo tenha o maior sucesso na sua missão. Preferiria apenas que, como acontece noutros países, antes da sua confirmação tivesse de defender publicamente ser a pessoa certa para o lugar.

Em resumo, vivemos numa democracia capturada pelos partidos e pelo seu domínio sobre o Estado e a sociedade, o que limita por todas as formas a participação dos cidadãos na vida política. O que, como parece evidente, não mudará até que os portugueses possam escolher os seus representantes e enviar para casa uma parte substancial daqueles que, ao longo dos últimos anos, pouco ou nada fizeram para tornar Portugal uma verdadeira democracia, com as consequências que todos conhecemos.

A primeira e principal consequência tem sido a falta de ação fiscalizadora dos governos pelo parlamento, o que permitiu uma longa lista de erros de governação, como os investimentos feitos sem retorno económico, a criação desmiolada de uma enorme dívida pública, a destruição de uma parte do sistema financeiro, a generalização da corrupção e o empobrecimento do país relativamente a quase todos os outros países da União Europeia. São estas as razões que estão na origem da longa batalha cívica travada há anos pelos subscritores do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”, com o objetivo de que sejam os eleitores portugueses a escolher os seus representantes, um a um, como acontece na generalidade dos países mais avançados da União Europeia. Trata-se de um ato de fé nas virtudes da democracia.

Henrique NETO
Empresário
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade

NOTA: artigo publicado no jornal i.