quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Soube-me a pouco, ou da irrelevância em política

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de João Luís Mota Campos, ontem saído no jornal i.
Para mim, das frases desta campanha que merecem ficar na história, pelas piores razões, é aquela de Marcelo quando disse a propósito das críticas dos adversários “não vou responder a nada, vou contar até 100 e, quando chegar a 100, estou eleito”.
Soube-me a pouco, ou da irrelevância em política

Parece que foi há uma eternidade mas, na verdade, foi há dias que ocorreu a primeira e última volta das eleições presidenciais. 
Juro que nunca esperei que o próximo Presidente fosse Marcelo Rebelo de Sousa. Parecia-me uma improbabilidade completa mas, dado o quadro de candidatos presidenciais, acabou por ser o desfecho mais lógico e, depois da eleição, dirão todos, o mais previsível… 
Pensei, porque me apetecia pensar isso em relação ao meu país, que as eleições presidenciais iriam pôr face a face duas visões diferentes sobre Portugal: uma de caráter mais “humanista”, cujo eixo fossem os direitos das pessoas a uma vida melhor, protagonizada por António Guterres; e outra cujo fundamento fosse o de defender a necessidade de tornar o país mais competitivo e com contas públicas em ordem, protagonizada por José Manuel Durão Barroso. 
Em vez disso, tivemos direito a um concurso de retórica digno da Roma Antiga, um festival de lugares-comuns e algumas denúncias apressadas dos malefícios do “neoliberalismo”, alguns palhaços para abrilhantar a festa e o verdadeiro buraco negro ideológico chamado Marcelo. 
O resultado foi a completa ausência de debate público durante a campanha, como se Portugal tivesse ficado entre parênteses e a eleição para Presidente da República fosse uma coisa de somenos. 
Quer Marcelo quer os seus adversários autoproclamados de esquerda contribuíram fortemente para diminuir a eleição a que se candidataram. Todos (com a honrosa exceção de Henrique Neto, que não por acaso teve um resultado miserável) recusaram discutir os problemas do país, aqueles problemas de ciclo mais longo - uma década, pelo menos - de que só um Presidente, cujo horizonte é esse, se pode ocupar sem pensar nas eleições seguintes. 
Havia outras opções? Havia, mas pelos vistos os portugueses têm a sorte de dispor de homens políticos tão bons que podem dispensar a experiência política e as provas dadas de Durão Barroso ou Guterres… 
Aquilo que ouvimos ao longo de um mês de campanha foi o que não competia ao Presidente fazer, as competências que não tinha, as razões por que não teria de se ocupar de nada que fosse relevante, em vez de termos um debate sério sobre a forma como os candidatos viam o país e o mundo que o rodeia e, sobretudo, qual era o projeto que os animava na sua candidatura. 
Esta campanha fez-me ter saudades de outra campanha presidencial, em que a eleição ocorreu um dia depois de eu ter nascido, a de Humberto Delgado contra Tomás, em 1958: numa época em que os poderes do Presidente eram menores do que hoje, Delgado pronunciava-se em termos lapidares sobre o estado do país e sobre o então primeiro-ministro, Salazar, para dizer que se fosse eleito, “obviamente que o demitiria”, e, fazendo-o, correu riscos, o primeiro dos quais o exílio. 
Em tempos de democracia, compare-se a cobardia intelectual, a demissão da responsabilidade, a falta de compromisso com Portugal de quem assenta uma campanha inteira no mero facto de ser conhecido e se considera dispensado de dizer ao que vem. 
Mas essa não é a parte lastimável, não. A parte lastimável é o facto de os portugueses terem achado tudo isso suficiente e terem elegido à primeira quem por eles tem tão pouca consideração, como é também lastimável que quem tem ou tinha verdadeiras responsabilidades no regime vigente possa ter achado que estava abaixo da sua dignidade candidatar-se ou meter-se numa refrega com o Tino de Rans… 
Para mim, das frases desta campanha que merecem ficar na história, pelas piores razões, é aquela de Marcelo quando disse, a propósito das críticas dos adversários, “não vou responder a nada, vou contar até 100 e, quando chegar a 100, estou eleito”. 
Sem dúvida, tinha toda a razão e até teve piada. Era mesmo assim e isso diz tudo sobre a campanha eleitoral.
Mas isso diz tudo sobre a nossa democracia? Em boa verdade, quem pode queixar-se dos poderes instituídos que temos se nos demitimos permanentemente das nossas obrigações democráticas, a primeira das quais, básica, é votar? Mas, por outro lado, podemos levar a mal aos nossos compatriotas que se demitiram da democracia, nem votando nem assumindo qualquer compromisso, quando verificam que os mecanismos da representação política foram capturados pelos diretórios dos partidos políticos e pelos fazedores encartados de opinião? 
Dir-me-ão que este momento baixo do país não é o melhor para discutir estas questões fundamentais. A minha resposta é que se não é agora, é quando?

João Luís MOTA CAMPOS
Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade

NOTA:
artigo publicado no jornal i.

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