quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Um, dois, três, lá vamos nós outra vez…

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de João Luís Mota Campos, saído hoje no jornal i
Ai desta classe política, que se não se corrige rapidamente e de forma drástica, se continuar enredada nos seus joguinhos bizantinos, vai descobrir um dia que foi submersa por uma onda de indignação popular.


Um, dois, três, lá vamos nós outra vez…
Mohamed El-Erian, um conhecido economista, publicava há dias mais um artigo no blog Project Syndicate com o título “Toxic Politics Versus Better Economics”.

Sustenta que a relação entre a política e a economia está a mudar: a classe política dos países desenvolvidos está comprometida em conflitos frequentemente tóxicos e bizarros em vez de discutir e tentar chegar a um consenso alargado sobre a questão de como escapar a um período, que já vai muito longo, de crescimento anémico e desigual.

O risco desta situação, adverte-nos, é que a má política pode acabar por expulsar a boa economia e que a frustração e indignação das populações acabe por submergir a boa política e tornar o debate ainda mais tóxico.

Numa nota complementar, o falecido sir Ralf Dahrendorf (1929-2009) escrevia em 2006 um artigo, “Parties and Populists” (Project Syndicate), em que sustentava que o centro social estava a desaparecer e que, se nada fosse feito para travar a deriva polarizadora do debate político para os extremos, cedo ou tarde nos veríamos confrontados com fenómenos populistas e autoritários. Premonitório…

Também já aqui escrevi sobre estes temas e sobre a nova vaga dos angry voters, aquela parte das classes médias que sente estar a perder com a globalização e não vê as suas preocupações representadas pela classe política.

São os angry voters que dão sustento à inacreditável campanha de Donald Trump, aos líderes autoritários que surgem com frequência crescente na Europa, que invertem os resultados mais óbvios e lógicos dos referendos sobre questões essenciais (Brexit é um bom exemplo) e que votam em partidos de extrema-esquerda (e extrema-direita), pulverizando o quadro político e tornando os países ingovernáveis.

Enquanto as classes médias – e antigamente ascendentes – sentirem na pele o peso excessivo dos impostos, a diminuição crescente da rede de apoio social e a distância cada vez maior de uma classe política embrenhada em discussões tóxicas, desagradáveis e bizantinas, sem dúvida que estarão abertas, também crescentemente, a apoiar populistas e demagogos.

Aqui, na Península Ibérica, posso dar dois exemplos recentes do absoluto desprezo que a classe política manifesta pelas preocupações dos seus “constituintes”: recentemente, em Espanha, o governo de Mariano Rajoy foi obrigado a aceitar a demissão de um ministro envolvido em mais um escândalo de corrupção. No dia seguinte à última votação nas Cortes em que o governo foi mais uma vez chumbado, o ex-ministro foi nomeado para um altíssimo cargo no Banco Mundial. Corrupto mas não imprestável, pelos vistos…

Em Portugal temos o caso da Caixa Geral de Depósitos, em que é nomeada uma nova administração que vai ganhar o triplo da anterior. Trata-se de uma instituição à beira da falência, em que o Estado injeta, para a “recapitalizar”, ou seja, salvar, milhares (muitos) de milhões de euros que vão sair, obviamente, dos bolsos de quem paga impostos.

Verifica-se que a nova administração aceitou o encargo depois de ter contribuído para estabelecer um plano de reestruturação da Caixa, tendo-o feito enquanto os seus membros eram administradores de um banco concorrente da Caixa. Pedro Passos Coelho, presidente do PSD, interroga-se sobre se os pressupostos do plano foram fornecidos aos administradores de um banco concorrente, que assim passou a ter acesso aos segredos mais íntimos da Caixa. É uma interrogação válida e legítima.

O novo presidente da Caixa, um banco público salvo com muito dinheiro público, vem responder ao líder do partido mais votado e maior partido da oposição que, se ele soubesse alguma coisa de contas, nem colocaria a questão: os dados usados para o plano são públicos, são as contas da CGD.

Ou seja, não responde à pergunta feita e ainda é impertinente: se o grande e maravilhoso plano que consiste em injetar na Caixa uns largos milhares de milhões de euros foi feito em cima do joelho com base em informação do domínio público, é estarrecedor. Se não foi e foram usados elementos da Caixa que são segredo seu, foram ou não postos à disposição de um banco concorrente?

De tudo isto resulta que António Domingues, o “salvador” da Caixa, afinal é mais um apparatchik socialista, mais preocupado em pôr em cheque Passos Coelho do que em levar a bom porto a sua missão no banco.

Como é evidente neste combate, em vez de estarmos a discutir o interesse nacional de reestruturar e pôr a funcionar devidamente o maior banco – público – do país, estamos a assistir a um debate puramente politiqueiro. Os contribuintes, que pagam o plano, assistem a mais este episódio e podem fazer o quê?

Deste filme só podemos sair emigrando, que é uma forma pessoal de fazermos o nosso próprio bailout: fugir para onde não haja uma dívida pública tão elevada que ponha em causa o nosso futuro. É isto que se espera de nós?

Ai desta classe política, que se não se corrige rapidamente e de forma drástica, se continuar enredada nos seus joguinhos bizantinos, vai descobrir um dia que foi submersa por uma onda de indignação popular, não para bem da democracia nem da qualidade da democracia, mas para mal de todos. Já faltou mais, e não era pior que “essa” gente se convencesse que ou muda de vida, ou a vida muda-os a eles.
João Luís MOTA CAMPOS
Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade

NOTA:
artigo publicado no jornal i.

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

O prior de São Bento e a abadessa prioresa

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de António Pinho Cardão, saído hoje no jornal i.
A dívida do convento, onde acabam as facilidades e começam as dificuldades, essa, não pára de aumentar.

Cenacolo ("Última Ceia") em Santa Maria delle Grazie

O prior de São Bento e a abadessa prioresa
Conta a História, ou a lenda, que o duque de Milão Ludovico Sforza chamou ao seu palácio Leonardo da Vinci que, no Convento de Santa Maria delle Grazie, pintava “A Última Ceia”, preocupado que estava com o atraso da obra que mecenaticamente vinha financiando como penhor de salvação do Inferno e de minimização da quase certa temporada no Purgatório. Da Vinci justificou-se com o tempo que investia na busca, Milão afora, dos rostos que melhor correspondessem ao perfil dos discípulos de Jesus Cristo. Perguntado sobre se já tinha ideias sobre o rosto de Judas, Da Vinci respondeu que aí não tinha dúvidas: o rosto do prior era o que lhe parecia mais adequado.

Se Santa Maria delle Grazie continua a ser convento e a albergar tal obra-prima, o mesmo não acontece ao nosso Convento de S. Bento da Saúde, que mingua de obras-primas, deixou de ser mosteiro e se converteu em palácio com palacete adjacente, instalações bem mais adequadas para albergar irmãos laicos, mais dados às coisas dos negócios e da política, sobretudo baixa, do que aos prazeres da contemplação. Também eles vão entronizando sucessivos priores, alguns bem falsos como Judas, demagogos, líderes traidores de princípios e promessas. Ocupados no exercício de um mero poder pessoal, distribuindo benesses com garantia de retribuição em agradecidos apoios, fazendo todavia crer que é o bem-estar do povo que os move, eles deixaram o priorado à sua sorte, empobrecido e endividado. São os primeiros responsáveis pela situação. Mas não os únicos.

Também o são as elites académicas que se deixam instrumentalizar ou procuram mesmo ser instrumentalizadas, prestando-se a torturar números, estatísticas e princípios para elaborar planos económicos a gosto do prior, erróneos nos pressupostos e na eficácia das medidas, mas aptos a produzir as fichas falsas necessárias a alimentar o jogo das apostas, conceito em que o prior sintetiza todo o seu pensamento de crescimento económico do convento e de desenvolvimento do priorado social.

Sim, essas elites académicas são também bem responsáveis pela situação, dando um falso fundamento científico a medidas e políticas de conquista e conservação do poder do prior, mas incapazes de melhorar a sorte e a vida dos vassalos do foro conventual.

Também são responsáveis alguns irmãos não professos, mercadores, artesãos e menestréis, com acesso aos aposentos do prior, visando facilidades para comércio, obras e festas no mosteiro, ao arrepio de uma livre concorrência, fator de inovação e progresso.

Degradando-se a economia para equilibrar as finanças do convento, conubiou-se o prior com a abadessa de um pequeno mosteiro vizinho, numa aliança de consolidação do poder. E é agora a prioresa que aparece a defender as regras que antes condenava, e até novas e acrescidas corveias que, acrescidas às dízimas e capitações existentes, não poupam mesmo os mais pobres dos vassalos. E associada aos académicos aboletados, acena com mais e melhores apoios que uma economia estagnada e um priorado social cada vez mais depauperado, com escolas sem dinheiro para suportar gastos básicos, atrasos de pagamentos nos hospícios e aumento do tempo de espera nas enfermarias públicas negam à evidência.

E a dívida do convento, onde acabam as facilidades e começam as dificuldades, essa, não pára de aumentar.

O que não admira, num convento onde até se torna possível que irmãos vencidos nas votações capitulares se tornem priores. Convento onde Da Vinci não teria grande dificuldade em escolher o rosto de Judas.

Mas há quem pugne, vide “Manifesto Por Uma Democracia de Qualidade”, por alterar as normas vigentes no priorado, a começar pela eleição do prior. De modo a que Da Vinci nunca pudesse ver nele um rosto para retratar os Judas desta vida.
António PINHO CARDÃO
Economista e gestor - Subscritor do Manifesto por Uma Democracia de Qualidade


domingo, 16 de outubro de 2016

A fractura geracional


À volta do tema da Segurança Social e da sua necessária reforma, foi introduzido um terrível veneno: o veneno do corte geracional, o veneno da fractura intergeracional.

É algo que anda por aí, de modo vago, mas intenso. Vem de escolas económicas radicais. E foi introduzido sobretudo à direita, pelas linhas dirigentes que têm preponderado no PSD e no CDS, nos últimos dez a vinte anos.

Vi também que o fenómeno parece ter uma directa fonte "jotista", isto é, resulta de visões cultivadas a partir das juventudes partidárias e do olhar muito particular que desenvolveram sobre a sociedade, a política e o mundo.

Há poucos dias, realizou-se no Porto uma conferência-debate sobre a matéria. Entre vários intervenientes, participou um alto dirigente do CDS, que apresentou algumas ideias e uma proposta. Não vou entrar no debate desta proposta, que não interessa ao caso. Interessa o resumo feito pelo jornalista:
"O objetivo fundamental da proposta centrista é dar segurança aos actuais pensionistas, mas também não frustrar as expectativas de quem está a formar agora os seus direitos, bem como garantir que os mais jovens um dia vão poder receber uma pensão."
É esta uma das melodias que ouvimos repetidamente entoada desde há anos: "garantir que os mais jovens um dia vão poder receber uma pensão". Reparemos bem no implícito terrorista: os mais jovens estão em risco de não receber pensão quando chegar o seu tempo.

Esta ideia é uma falácia. Mais: é mentira. Há problemas a resolver, mas essa é uma previsão errada sobre o futuro.

É um erro de palmatória técnico, económico, social e sobretudo político. Imaginar que alguma geração não terá direito à pensão para que tenha descontado ao longo da sua vida activa é uma enormidade absoluta no plano jurídico e político.

Isso só aconteceria se os jovens de hoje, quando governassem e quando se fizessem suceder, agissem e fossem sujeitos a autênticos trogloditas, ainda pior do que já temos visto e ouvido. É absolutamente inverosímil.

Essa linha de pensamento e insinuação só tem servido para cavar um fosso entre gerações, rompendo a coesão social e minando por inteiro a confiança indispensável. Ou seja, só tem servido bloquear a própria reforma.

É triste dizê-lo, mas a verdade é que é também por isso que as reformas na Segurança Social feitas nos últimos anos só foram feitas pela esquerda e nenhuma pela direita. Uma coisa é falar, outra coisa é fazer. E só com respeito das gerações e dos direitos constituídos, bem como tendo presentes as responsabilidades do Estado quanto à sua própria má gestão pretérita, poderemos fazer reformas sérias, estabilizar a sustentabilidade do sistema e consolidar sempre a confiança, capital indispensável.

Pondo gerações umas contra as outras, não vamos a parte nenhuma.

Táctica fiscal do Governo (5): A CAMINHO DA "MAD TAX"

É fartar!

Na frenética criatividade tributária geringoncial, o Governo esqueceu-se de algumas possíveis medidas, que aqui se deixam como modestas sugestões:
  • instituir a "tattoo tax", aplicada sobre cada "piercing" e cada tatuagem, ao modo do IUC - Imposto Único de Circulação, isto é, com cobrança anual recorrente, enquanto inovadora expressão da nova linha de fiscalidade sanitária;
  • avançar corajosamente para a "fat tax" em sentido pleno, tributando em regime de progressividade cada quilo a mais dos contribuintes (isto é, qualquer quilo acima do peso saudável para a respectiva idade, sexo e altura), assim concretizando uma ousada política fiscal de três-em-um: (1) combater a obesidade, como manifestação da novíssima fiscalidade sanitária; (2) emagrecer os contribuintes, no corpo e nos cabedais; e (3) engordar os cofres do Tesouro;
  • estabelecer o IUC Plus, a aplicar como adicional sobre viaturas de valor aquisitivo original (o VVT, valor viatural tributário) superior a 20.000 euros, cilindrada superior a 1.800 cm3 ou possuidoras de outros indicadores de riqueza a definir, além de incluir também aviões, helicópteros, iates, veleiros, ultraleves, etc.
O GENF - Gabinete de Estudos Novi-Fisco continua em laboração intensa, analisando o potencial tributário de saltos altos (em especial, os saltos-agulha), ginásios, jardins, banheiras com jacuzzi, animais de companhia, varandas, terraços e parapeitos, bicicletas motorizadas e parapentes.

Táctica fiscal do Governo (4): EM NOME DO MEXILHÃO

Lembram-se do mexilhão?

Seria interessante saber a reacção dos municípios a esta nova tributação do património lançada pela geringonça.

Até hoje, o IMI era uma receita exclusiva dos municípios, cuja taxa, aliás, lhes compete fixar anualmente dentro dos limites da lei.

Ora, o Governo vem criar um novo tributo sobre o mesmo objecto tributário e calculado até sobre a mesma base (os VPT dos prédios), mas arrecadando ele a receita.

Uma das formas de os municípios reagirem é virem a aumentar até ao limite máximo as taxas de IMI que cobram no seu território. Já que o Governo carrega sobre o "seu" património, os municípios precatam-se, passando a arrecadar, por sua parte, tudo o que legalmente podem cobrar.

Quem sofrerá com isto? Adivinhem... Os contribuintes, claro! Provavelmente todos.


Táctica fiscal do Governo (3): PIMBA E CATRAPIMBA

Carrega, Centeno!

O novo imposto sobre o património poderá significar, na parte equivalente, um agravamento para o dobro do actual IMI. Não é coisa pouca. E, se não tiver efeitos pessoais e económicos pesados, é porque, na verdade, a lógica é, afinal, uma batata.

Explico.

A taxa de IMI, para os imóveis já avaliados, está em 0,3% a 0,5%, o que resultou do agravamento recente pelo governo anterior - anteriormente, as taxas poderiam variar entre 0,2% a 0,4%.

Os municípios, de forma geral, fixaram taxas entre 0,3% e 0,4%, prescindindo (por ora...) do valor máximo de IMI.

Assim, aplicar um adicional fixo de 0,3% ao património que exceda o VPT de 600 mil euros, significa que os contribuintes atingidos pagarão o respectivo imposto como IMI e, na parte abrangida, ainda praticamente outro tanto como adicional.

Como disse já, não é coisa pouca.

A somar a tudo o resto, claro!: impostos sobre o consumo, impostos sobre o rendimento fortemente progressivos, etc.

E isto por enquanto... A forma como decorreu a discussão pública deixou indícios suficientes de que esta nova linha de tributação foi aberta por forma a vir a ser sujeita a agravamentos sucessivos (abaixamento do limiar tributável, aumento das taxas, ampliação do património-alvo, aumento discricionário dos VPT como fez o governo anterior, etc.), sempre que der jeito.


Táctica fiscal do Governo (2):  CONSOLIDAR A SOBRETAXA

Veio p'ra ficar

Dizer que se elimina a sobretaxa do IRS, criando ou agravando outros impostos, não é eliminar a sobretaxa. É substituir a sobretaxa...

Eliminar a sobretaxa seria dar um pontapé nos 3,5% adicionais de IRS, reduzindo efectivamente a arrecadação tributária no valor correspondente.

O que a geringonça engendrou não é a eliminação da sobretaxa, mas, exactamente ao contrário, a sua consolidação através de outros impostos. Por outras palavras, estão a "stockar" a sobretaxa de IRS.

Como o velho brandy "Constantino", a sobretaxa "veio p'ra ficar". Muda de sítio, mas fica cá na mesma - e, agora, para sempre. Diluída, será mais difícil identificá-la para acabar com ela.

Táctica fiscal do Governo (1): A SOBRETAXA QUE VAI, MAS FICA

Às pinguinhas...

Esta narrativa da eliminação da sobretaxa às pinguinhas mensais é uma boa ilusão.

O IRS não é em regime de mesada, mas incide sobre a totalidade do rendimento anual do contribuinte. Se os contribuintes vão ter um ritmo diferente de redução/eliminação da sobretaxa ao longo do ano, isso só é relevante ao nível da retenção na fonte de que são objecto. Mas já não quanto ao imposto efectivo.

De facto, quando se fizerem as contas aos impostos a pagar, o que aquilo significará é que, quanto ao rendimento de 2017, os contribuintes pagarão sobretaxas de valor diferenciado, mas sobre a totalidade dos rendimentos do ano.

Por exemplo, se os rendimentos mais elevados só não tiverem sobretaxa aplicada ao equivalente das remunerações de Dezembro, isso significa que suportarão "grosso modo" uma sobretaxa reduzida apenas em 1/12 de 3,5%, isto é, de 3,2%.

Em conclusão: o efeito da dita "eliminação progressiva" da sobretaxa em 2017, significa que a sobretaxa de IRS só desaparecerá efectivamente em 2019.

Primeiro, porque todos os escalões de rendimento que forem objecto da tal "eliminação progressiva", estarão efectivamente a pagar sobretaxa sobre todos os rendimentos de 2017, embora com taxas diferenciado. E, segundo, porque, sendo apenas os rendimentos de 2018 os totalmente livres de sobretaxa, esse alívio só se sentirá efectivamente em 2019, que é quando se paga o IRS 2018.



quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Uma pedrada no charco

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de José António Girão, hoje saído no jornal i.

É chegada a hora de uma tomada de consciência por parte da sociedade civil e da sua mobilização para uma inflexão no caminho que vem sendo percorrido.


Uma pedrada no charco

Chegámos ao fim do normal período de férias, o que em termos políticos significa o fim da silly season. Devia agora seguir-se-lhe a rentrée, ou seja, o período anual de reflexão sobre as reformas e medidas políticas a implementar, com vista à melhoria, progresso e sustentabilidade do processo de desenvolvimento do país. Mas será isto que podemos antever nesta rentrée de 2016? Dificilmente...

Em primeiro lugar, porque não é esse o padrão de responsabilidade a que os sucessivos governos nos habituaram. Pelo menos na última década, para não dizer neste século, aquilo a que assistimos é a um agravamento da crise em que o país há muito mergulhou, consequência, em larga medida, do sistema corporativo de partidos que se instalou, empenhados primordialmente na sua sobrevivência. Daí a luta fratricida de interesses a que se dedicam, limitando-se a constatar e a tornar públicos os resultados da sua sucessiva desgovernação. Ninguém é culpado, ninguém é julgado, ninguém é preso. E nem o poder político nem os órgãos de soberania parecem ter consciência da responsabilidade que lhes cabe. A impunidade é total.

Face a esta situação, parece oportuno e mais do que necessário que os cidadãos se interroguem sobre a representatividade do poder político em Portugal – poder que há muito deixou de representar os interesses da generalidade dos cidadãos, como o comprova o crescente desinteresse destes pela “causa pública” e o seu progressivo alheamento do sistema eleitoral. Esta desmotivação é bem patente e está bem refletida no anedotário nacional que perpassa pelas redes sociais.

Do que precede retiramos uma conclusão. É chegada a hora de uma tomada de consciência por parte da sociedade civil e da sua mobilização para uma inflexão no caminho que vem sendo percorrido. Mas como, se é também um facto insofismável a fraqueza da nossa sociedade civil? A resposta só pode vir de um amplo movimento de contestação e “civil desobedience”. Foi este o método utilizado nos casos em que houve que pôr cobro e inverter caminhos pressentidos como desajustados dos princípios humanistas e dos interesses das maiorias. Como afirmou H. Thoreau, no célebre ensaio de 1849, o “governo pode expressar a vontade da maioria, mas pode igualmente expressar nada mais do que a vontade da elite política”. Daí a legitimidade de se opor resistência à governação, pela recusa em cumprir leis, pagar impostos e satisfazer outras exigências, como forma de influenciar a legislação ou a política governativa, na convicção de que tais exigências são moralmente injustas e que o sentir da consciência se sobrepõe às obrigações para com o Estado.

Como é óbvio, a desobediência civil não é isenta de controvérsia e de alguma ambiguidade. Desde logo, em virtude da legalidade do protesto e pela natureza violenta, ou não, do mesmo. Mas o que é inquestionável é o papel que tem desempenhado ao longo da História, sobretudo no contexto dos movimentos de independência, direitos humanos e várias formas de resistência.

Em face do que precede, parece pois justificar-se, e de forma premente, a necessidade de promover o aparecimento de um amplo movimento de contestação civil à situação com que nos confrontamos relativamente à governação do país. Porém, para ser eficaz e conseguir os seus intentos, este movimento terá de ser seletivo e definir objetivos e prioridades que permitam alcançar o desiderato visado. Não é possível ser eficaz contestando sistematicamente tudo e todos. Neste contexto, parece-nos prioritário eleger como objetivos a alteração (1) do sistema eleitoral; (2) do sistema subjacente à política orçamental; e (3) do sistema de Justiça.

Quanto ao primeiro objetivo, ele está na origem do “Manifesto Por Uma Democracia de Qualidade” e tem sido objeto de amplas e variadas justificações e sugestões, nos artigos que, semanalmente (às quartas-feiras), alguns dos subscritores do referido documento têm publicado neste jornal. No entanto, nada acontece, não se mostrando os partidos interessados em alterar a atual situação, como, aliás, se constatou nas audiências havidas com os promotores do Manifesto ou através de quaisquer desenvolvimentos subsequentes. Justifica-se, pois, que este tema seja objeto de iniciativas de desobediência civil. Como exemplo de iniciativas neste âmbito, poder-se-ia avançar com um forte apelo a uma participação nas eleições legislativas através do voto nulo (ou em branco). Assim se daria um sinal claro de desagrado e repúdio pelo atual sistema, suscetível de “acordar” os políticos e mobilizar os eleitores.

Que a atual política orçamental é insatisfatória e gravosa do ponto de vista nacional, também não há lugar para dúvidas. Continua longe de garantir o equilíbrio das contas públicas e de contribuir para a solvência do Estado, exibindo um nível de exaustão incapaz de permitir a estabilidade da política fiscal e um financiamento eficaz da economia compatíveis com a acumulação de capital exigida por um crescimento sustentável do processo de desenvolvimento.

O combate a esta fragilidade financeira e económica só poderá ser conseguido com uma alteração da política orçamental com vista à sua estabilização e consolidação a médio prazo, assente na análise rigorosa das prioridades e qualidade da despesa e numa política fiscal estável que permita o eficaz financiamento da economia, com vista ao seu crescimento e desenvolvimento sustentáveis. Este é, assim, um objetivo primordial em que a cidadania deveria empenhar-se, nomeadamente protestando ativamente e recusando qualquer alteração de impostos e da carga fiscal que não se alicerce numa estratégia e num programa económico e orçamental de médio prazo, devidamente fundamentado e discutido em termos dos seus pressupostos, e transparente nas medidas a implementar, bem como no acompanhamento da sua execução, inclusive por parte de movimentos representativos da cidadania. Trata-se, como é óbvio, de formas organizadas de pressão política sobre o governo, mas que deverão contribuir decididamente para se sair do rumo pantanoso em que o país está a afundar-se.

Por último, há que ter em conta a ineficácia e descrédito do atual sistema de Justiça. Os exemplos são bem conhecidos e não necessitam de mais comentários. O que se torna premente é dotá-lo de eficácia, até porque nele assenta o Estado de direito. E sem isso, o país não terá a credibilidade nem haverá confiança para o investimento, crescimento e desenvolvimento social e humano. Que formas deverá a desobediência civil revestir neste caso, deixo para proposta dos especialistas na matéria. Lembraria somente que o recurso às redes informáticas, como via de divulgar opiniões e fazer reivindicações, está ao dispor de grupos de cidadãos empenhados e vem-se revelando cada vez mais eficaz; isto para já não falar no recurso a manifestações de protesto.

À guisa de conclusão, diríamos que não há lugar para dúvidas quanto ao facto de a generalidade dos cidadãos estar consciente da encruzilhada em que o país se encontra; austeridade versus crescimento não passa de um dilema com que nos confrontamos, mas insuscetível de solução no atual quadro económico, social e político. Urge, pois, alterar este estado de coisas. Só que tal não parece possível no quadro partidário vigente. Por conseguinte, surge como inevitável que seja a sociedade civil a promover e lutar pelo desbloqueamento da situação, através de movimentos organizados em torno de projetos e propostas devidamente alicerçados em estudos, levados a cabo por instituições independentes e competentes da sociedade (think tanks), como forma de pressão política, no âmbito da desobediência civil.

Dir-se-á que não é bonito! É fácil concordar. Só que parece não haver outro meio (pacífico) de alterar a situação. Além de que ele já deu provas em múltiplos casos, incluindo entre nós. Nomeadamente quando da manifestação contra a tentativa de alterar a TSU pelo anterior governo (15 de setembro de 2012). E por muito pouco bonita ou ortodoxa que seja a desobediência civil, sempre poderá criar as “ondas” que nos permitam sair do atoleiro...

José António GIRÃO
Professor da FE/UNL
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade
NOTA: artigo publicado no jornal i.

terça-feira, 11 de outubro de 2016

PAP - o Pedro do "Povo"




PAP era como muitos chamávamos ao Pedro Aguiar Pinto: uma pessoa rara, um amigo geral.

Hoje, à hora de almoço, aterrou-me por e-mail a notícia inimaginável. Chegou como um raio, fulminante: o Pedro tinha morrido de madrugada. Assim, de repente. Estava connosco - deixou de estar connosco. Assim mesmo.

Ia numa peregrinação a pé a Fátima, que ele próprio conduzia. Fazia-o muitas vezes; e, creio, sempre ou quase sempre nesta última peregrinação do ano, para o 13 de Outubro. Interpela-nos muito este facto e esta circunstância singular da sua morte.

Não vou armar. Não vou, sem o dizer, dar a entender que já fiz peregrinações a pé a Fátima. Diversamente do Pedro e dos que ele habitualmente guiava, nunca fui a Fátima a pé; nunca fiz uma peregrinação assim. Porém, sem nada saber e nada ter experimentado, a segunda coisa que me veio, hoje, à cabeça foi: "Olha! O Pedro já chegou." Nós continuamos a andar, os seus companheiros e discípulos prosseguem a caminhada para Fátima, mas o Pedro chegou primeiro: já lá está.

Há bocado, na missa celebrada por sua alma, na Igreja da Encarnação, havia como que uma nuvem de Sexta-Feira Santa a pairar. Senti-o. Um ambiente geral de tristeza serena e leve, mas que pesava. Era, por um lado, sentidamente leve, talvez porque confiante; e, por outro lado, pesado, porque silencioso, estupefacto, sem palavras. Senti-o assim, como nunca. Já fui a muitas missas de sufrágio e a enterros sem conta, estive na morte de meus avós, de minha mãe, de meu pai, do meu tio, de meu irmão, de cunhados, de amigos muito chegados - e, todavia, nunca o sentira. Nunca havia sentido esta nuvem de Sexta-Feira Santa, como hoje pelo Pedro Aguiar Pinto. Eu creio que isso é bom.

É bom porque assinala a sua Páscoa, porque nos confirma a certeza da sua ressurreição. Aos cristãos, Jesus explica que é por Ele que se vai ao Pai. Nenhum de nós tem dúvidas sobre onde está o PAP, com Quem está e onde irá estar.

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O Pedro vai fazer-nos muita falta. Desde há não sei quantos anos, ele mantinha o "Povo", um blogue, uma newsletter, uma sei-lá-que-mais-electrónica, que chegava, com irrepreensível pontualidade, aos nossos computadores e aparelhos quejandos, pela mesma via por que fomos, hoje, sacudidos pela notícia da sua morte: por e-mail. Que grande e notável serviço ele prestou, caramba!

Esses e-mails eram cuidadas resenhas de artigos e de notícias, que respigava e seleccionava por aí, para nos manter a par do espírito bom. Às vezes, continham também breves comentários seus. E tudo ficava registado, creio, se bem me lembro, no blogue correspondente.

Quanta informação circulou, graças a ele. Quanto ânimo foi regado. Quanto rumo foi apontado, reafirmado e confirmado nos corações e nas mentes de tantos, graças a este trabalho do PAP.

Este "nós", os privilegiados da mailing list que ele foi construindo e geria, eram não sei quantos milhares de católicos e outros portugueses de boa vontade que se empenharam, em diferentes posições e lugares, em incontáveis combates cívicos e culturais, sociais e políticos, pela Vida, pela Família, pela Liberdade, pela Paz, pela Justiça. Sendo nós este "Povo" do PAP, todos fomos regados e alimentados por esse precioso correio diário.

Nestes anos todos, não me lembro de aí ter lido uma só palavra de raiva, ou de zanga, ou de irritação, ou de desânimo. Assim como não recordo qualquer ordem, responso ou ralhete. O Pedro não era assim e não fazia isso - dava até ideia de que não saberia fazê-lo, se lhe passasse pela cabeça o impulso. Partilhava serenamente informação e opinião, só isso. "Isso" que foi muito importante para regar a terra e manter fresco o jardim.

Vai, na verdade, fazer-nos muita falta: ao Povo, que somos nós; e à sociedade portuguesa, onde estamos e agimos.

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Quando fui Presidente do CDS, o Pedro Aguiar Pinto ajudou-me, logo ao princípio, em Junho de 2005. Não tinha qualquer obrigação de o fazer. Nem sei sequer se ele era do CDS. Talvez fosse; ou talvez votasse apenas no CDS, "quando merecíamos". Não sei.

O PAP era, além da sua fé, um cientista: um cientista respeitado no seu meio e um reputado professor em Agronomia. A ajuda que me deu foi a brilhante participação que teve num seminário que organizámos no IDL - Instituto Amaro da Costa, ainda no palacete da Rua de São Marçal, para apresentar e debater um novo olhar sobre a nossa Economia.

Outros oradores eram da nossa tribo e muito qualificados: o José Paulo Pimentel Castro Coelho (amigo e colega do PAP) e o Gustavo Mesquita Guimarães. O Pedro, assim como Medina Carreira, eram peritos externos que nos foram enriquecer.

Ora, de que nos falou o Pedro Aguiar Pinto?

De um tema muito raro na agenda do CDS: de Alterações Climáticas. Estávamos em 2005, não em 2016. E não nos falou nem com o discurso negacionista, nem com o discurso terrorista, ambos habituais; falou com factos e constatações, falou com projecções e o seu debate, falou de desafios e também de oportunidades. Falou como era: um cientista, um inovador atento ao futuro, um homem sério.

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Há cerca de 20 anos, conheci um sacerdote notável. Foi na Igreja do Sacramento, também ao Chiado, não muito longe da Igreja da Encarnação, onde fomos hoje rezar pelo Pedro. Era um pequeno curso nocturno sobre temas cristãos, onde esse sacerdote nos deu aulas de Liturgia: tudo explicadinho. Mas não foi o seu saber, que era muito, aquilo que me impressionou, ao ponto de nunca mais o esquecer.

O Padre José Ferreira, assim se chamava, era, já então, velhote, com mais de 70 anos - bem mais velho, portanto, do que o PAP, hoje. Tinha uma cabeça muito branca, que ajudava ao seu carisma. Era baixo; e a pequena estatura apoiava a sua proximidade connosco - era dose concentrada, poderíamos dizer. Falava e ensinava com um vigor, uma alegria, uma vibração contagiantes.

Às tantas, já não me lembro porquê, entrou a falar-nos da morte. Não da morte em abstracto, mas da dele. E disse-nos da alegria que sentia, de como se sentia cada dia mais feliz: «a cada dia que passa, sinto-me um dia mais perto de Deus Pai». O brilho radioso no olhar, o sorriso largo que se lhe rasgou, o tom natural da sua voz fizeram-me acreditar totalmente na genuinidade do que partilhou connosco. Falou com entusiasmo - eu nunca estudei Grego, mas aprendi, ainda no liceu, que entusiasmo deriva de "en + theos", literalmente "em Deus".

O Padre José Ferreira estava lá "en theos"; e, cada dia que passava, sabia que ainda mais próximo, o que alimentava a sua alegria. Levou ainda 20 anos até esse encontro total: faleceu em Março passado, com quase 100 anos. Vi-o umas duas ou três vezes mais, no Seminário dos Olivais, a seguir a uma viagem à Polónia que ainda fizemos, num grupo. Encontrei-o sempre como o conhecera: pequeno e concentrado, com o carisma da sua cabeça branca, mais velhote do que o velhote inesquecível que eu já conhecera, e sempre enérgico e alegre, com o entusiasmo a vibrar.

O nosso Pedro Aguiar Pinto viajou hoje. Não tinha a mesma exuberância do Padre José Ferreira, era uma personalidade mais serena. Mas tinha exactamente o mesmo entusiasmo. A mesma fé também. Por isso, a dedicação que só resulta de um e de outra. Aquela mesma certeza do caminho que inspira quem olha e vê, quem ouve e escuta.

Obrigado, Pedro. Nunca agradeceremos o suficiente.


Lisboa, Igreja da Encarnação, 11 de Outubro de 2016

Reflectindo sobre a justiça administrativa e o embaraço que é para Portugal


Li no Público de 7 de Outubro que «voltou a ser impossível comparar atrasos da Justiça Portuguesa com o resto da Europa», porque no ano de 2014 o Ministério da Justiça não dispunha dos dados (!).

O mesmo artigo referia que o Ministério da Justiça «não tem por práctica» apurar as estatísticas dos Tribunais Administrativos.

Ainda bem que não tem, porque se tivesse e também tivesse consciência, não dormia.

Se não há estatísticas, há experiência empírica dos tempos de tramitação dos processos nos Tribunais Administrativos e essa é trágica: é comum nesses Tribunais a tramitação na 1ª instância demorar 6, 8, 10, 12 e mais anos, para ser produzida normalmente uma sentença vergonhosa, que envergonharia qualquer Juiz dos Tribunais Cíveis ou Criminais, e isto sem que por norma haja qualquer forma de instrução ou apuramento da matéria de facto, e quando há… era melhor não haver!

Obviamente que tudo tem excepções e que há nos Tribunais Administrativos Juízes com qualidade e sabedoria; são é a excepção que confirma a triste regra.

Até há uns poucos anos, havia pelo menos os Tribunais Centrais, tribunais de apelação, cujos Juízes, mais velhos e experientes, corrigiam como podiam os erros e desmandos processuais da 1ª instância. Infelizmente isso está a acabar porque a triste leva de Juízes nomeados em 2004 para a «grande reforma» dos Tribunais Administrativos está agora, por artes que não entendo, 12 anos depois, a chegar aos Tribunais Centrais e a produzir acórdãos de tão má qualidade e tão indecentes como as sentenças que lavravam na 1ª instância. A barbárie chegou aos tribunais de recurso e em breve chegará ao Supremo Tribunal Administrativo.

Dizer coisas em tese geral pode parecer meramente opinativo, não há nada como dar um exemplo:

Em muito recente acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte (TCAN), de 15 de Julho de 2016, no Processo 00105/1, ficou decidido que «incumpre parcialmente o contrato de atribuição de ajudas o beneficiário que procede à troca de veículo agrícola cujo financiamento havia sido aprovado por um outro, não previsto na candidatura assim cometendo uma infração contratual, legalmente cominada com a alteração unilateral do contrato e a determinação da reposição do montante correspondente.»

Do que é que se trata? Um pobre agricultor do Norte do País candidatou-se a uma ajuda europeia a um projecto de investimento que passava pela limpeza e melhoramento de um olival e a aquisição de um tractor.

Recebeu uma ajuda ao investimento de cerca de 20.000,00 €, dos quais despendeu 18.455,52 € na aquisição de um tractor.

Alegou o prestador da ajuda, o IFAP, «que o projeto de investimento estava em situação irregular, uma vez que o trator existente na exploração não correspondia ao trator aprovado», tendo em consequência procedido a uma rescisão parcial do contrato de ajudas, exigindo a reposição do valor da ajuda à compra do tractor – 9.227 € - acrescidos de mais de 2000 euros de juros moratórios.

O agricultor impugnou este acto perante o Tribunal Administrativo de Mirandela alegando que esse tractor teve de ser substituído por outro mais potente, por o primeiro não ser capaz de dar conta do recado, que adquiriu esse tractor mais potente e que com ele concluiu o projecto de investimento, tendo aplicado em tal projecto a totalidade das ajudas recebidas.

Para o Tribunal Administrativo de Mirandela os factos contaram pouco: nem curou de saber se o tractor de substituição era mais potente – e caro – que o tractor objecto da ajuda, nem de saber se o projecto tinha sido devidamente executado e concluído. Ficou-se pela conclusão formal, e absurda, de que o tractor subsidiado não constava da exploração agrícola, concluindo ter ocorrido «incumprimento do contrato».

Debalde recorreu o agricultor para o TCAN: este excelso tribunal recusou-se a proceder à reanálise da matéria de facto, com argumentos especiosos que só o deslustram; e sobre a matéria de direito concluiu que tendo ocorrido «incumprimento do contrato» ao IFAP não restava mais do que rescindir parcialmente o contrato, sendo até uma obrigação vinculada à qual não poderia escapar mesmo que quisesse.

Acrescenta, misteriosamente, que «a atuação administrativa aqui questionada é uma atuação maioritariamente vinculada (desde logo, pelo direito europeu)…». Lendo na íntegra o acórdão não se vê a que disposição do direito europeu se refere o acórdão.

Em suma, o Tribunal Administrativo de recurso denega ao pobre agricultor qualquer respaldo da Justiça, numa situação em que os factos são que a ajuda recebida foi integralmente gasta no projecto aprovado, que foi executado e concluído e que o referido tractor foi substituído por outro mais potente e mais caro e mais capaz para o serviço a realizar.

Não sei, porque o Acórdão não o refere, quando começou este caso, mas deverá ter começado em 2009, data do acto administrativo impugnado. Decorreram sete anos para obter esta vergonha.

Aos juristas que me lerem peço que reflictam sobre a fundamentação jurídica do Acórdão em questão e concluam se «aquilo» é digno de um Tribunal Superior.

É por estas e por outras que cada vez mais sou adepto de por fim à triste experiência dos tribunais administrativos, cuja legislação e regulamentação supervisionei enquanto Secretário de Estado da Justiça.

Para ter isto, mais vale a pena só ter Tribunais Cíveis e Supremo Tribunal de Justiça. Já chega!

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Outra cultura política

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de José Ribeiro e Castro, hoje saído no jornal i.
Enquanto não mudarmos a chave do sistema político, isto é, o sistema eleitoral, não teremos melhores políticos nem uma cultura política de préstimo.


Outra cultura política
Só uma mudança profunda na cultura política nos permitirá resolvermos os problemas que se arrastam há anos e voltarmos a ter, duradouramente, orgulho na política, gosto pela política. Não é exasperante este não passarmos da cepa-torta? Não chega já de estarmos sempre a ouvir os mesmos problemas sem nunca os vermos resolvidos? Não satura sermos, em áreas cruciais, um país adiado? O que gera este quadro de faz-que-anda-mas-não-anda é uma cultura política medíocre.

Um dos aspectos mais negativos no nosso sistema político é o espírito e a atitude na generalidade da classe dirigente. A degradação que critico não decorre de defeitos intrínsecos das pessoas, mas do modo de operação do sistema, que favorece os defeitos, em lugar de os combater. Não somos um sistema de excelência, mas um sistema de decadência: as coisas evoluem para pior.

Acredito que só a mudança do sistema segundo as linhas preconizadas pelo Manifesto Por Uma Democracia de Qualidade, ou similares, proporcionará uma afirmação das qualidades humanas dos políticos acima dos defeitos, exactamente ao invés da evolução negativa a que temos assistido. Porquê? Porque o sistema que preconizamos, ao fortalecer a independência dos deputados, promove a sua responsabilização, estimula a sua genuinidade, convoca a afirmação da sua credibilidade enquanto pessoas genuínas e políticos autênticos. O escrutínio individual de cada deputado passará a ser próximo e natural. Não me refiro ao tipo de escrutínio em que se entretém a imprensa dos escândalos – esse continuará aí, naturalmente. Mas refiro-me a um escrutínio muito mais importante para salvarmos a democracia e que nos vai escapando por inteiro: o escrutínio da autenticidade do pensamento de quem nos representa, o escrutínio da sua generosidade cívica ou não, o escrutínio da sinceridade da dedicação à causa pública, o escrutínio do saber e do propósito.

Hoje não é assim, porque o sistema de selecção dos deputados dispensa esses atributos e privilegia outros. O império dos directórios dita: quanto mais dócil e obediente, melhor; quanto mais sonora retórica, melhor; quanto mais ginástica no palmómetro de bancada, melhor; quanto melhor arte dissimuladora, melhor; quanto mais habilidade manobradora, melhor; e por aí adiante. Não que alguns destes atributos não sejam importantes no desempenho político. Mas não devem ser os prevalecentes; sobretudo, não devem apagar os atributos que têm a ver com pensamento, sinceridade, entrega, autenticidade, propósito cívico. A política, na sua substância, é isto; aquilo é apenas a forma.

O problema a que chegámos é que a forma mastigou e engoliu toda a substância. O sentido e a busca do Bem Comum foram-se perdendo. Confunde-se zaragata com discussão política e discussão com debate. Uma vitória política não é a resolução de um problema; é um triunfo efémero num qualquer ringue de pugilato. Não se vence uma dificuldade ou uma crise, esmaga-se um adversário. A própria mentira se torna boa e recomendável, se der aparato, espectáculo jeitoso, boa linha de defesa. O essencial é despertar vibração nas próprias hostes, animando a excitação das claques.

De ciclo em ciclo político, vai sendo cada vez mais difícil perceber o que realmente pensam a maioria dos nossos representantes. Alguns há que mais parecem profissionais do não-pensamento e fazem jus ao provérbio que um dia ouvi: “A palavra é uma dádiva do diabo para o Homem esconder aquilo que pensa.” E a mulher também, é claro.

A política visa o auto-desfrute dos artistas e a delícia dos seguidores. Às vezes, o povo choca-se de os ver rir e sorrir tanto quando há tantos a passar tantas dificuldades. Tornámo-nos mais uma democracia de seguidores do que de eleitores. Vêmo-lo no contínuo afastamento destes, de eleição em eleição – votam com os pés: vão-se embora para a abstenção cada vez maior. Como já tenho escrito, a nossa democracia é representativa no sentido de representação teatral, não efectiva representação política. O teatrinho corre bem e animado, a representação dos cidadãos nem por isso.

Agora, continuamos a atolar-nos na falta de reformismo do Estado, que pesa cada vez mais às costas das famílias e da economia produtiva. Os que berravam contra a austeridade aí estão a aplicá-la, com novos alvos e outros processos. E os que hoje berram – bem – contra os aumentos de impostos são os que, antes, os sobrecarregaram e voltarão – mal – a aumentá-los no futuro, se voltarem a ser chamados ao mando. Porquê? Porque a cultura política é superficial e foge da raiz e do tronco dos problemas. E por que é a cultura política assim? Porque é uma cultura irresponsável: é uma cultura de faz-de-conta, não de prestação de contas.

Enquanto não mudarmos a chave do sistema político, isto é, o sistema eleitoral, não teremos melhores políticos, nem uma cultura política de préstimo. Só abrindo o sistema proporcional – justo, recto, sem truques de secretaria – a uma componente significativa de círculos uninominais, permitindo também candidaturas independentes, teremos competição exigente, democracia representativa a sério, partidos reabilitados, regeneração política em Portugal. Quem tem medo de gente livre? Quem medo de um sistema sério?
José RIBEIRO E CASTRO
Advogado
Subscritor do Manifesto "Por uma Democracia de Qualidade"
NOTA: artigo publicado no jornal i.