Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de Clemente Pedro Nunes, hoje saído no jornal i.
A banca portuguesa, se quiser sobreviver, tem de atuar de forma exatamente oposta à que o governo pretende, que é continuar a alimentar artificialmente um consumismo desenfreado.
Os delírios perigosos e a banca
A política é muitas vezes feita de discursos retóricos que se destinam a influenciar a perceção que os eleitores têm da realidade e, assim, determinar os seus votos.
Por outro lado, a banca está naquela fronteira escorregadia em que escolhe a quem se empresta dinheiro e quanto, sendo por isso muito grande a tentação de alguns políticos se servirem dela para poderem manipular a realidade a seu bel-prazer.
Em Portugal, neste momento, as questões da gestão mediática do défice e da dívida pública têm muito mais a ver com o comportamento da banca do que transparece para a opinião pública.
No passado dia 27 de janeiro, António Costa anunciou no parlamento que a dívida pública líquida (DPL) diminuíra 1% em 2016.
Mas os números oficiais do Banco de Portugal publicados a 1 de fevereiro revelaram que a DPL aumentou 5,5 mil milhões em 2016. Ou seja, a DPL aumentou de facto 3,1% em 2016, desmentindo assim claramente as declarações de António Costa no parlamento.
Este aumento da DPL em 2016 é a principal razão pela qual os juros a dez anos da dívida pública têm estado a subir nos mercados, encontrando-se já bastante acima dos 4%, o que reforça a ameaça sobre a sustentabilidade da dívida e a consequente solidez futura da banca, dado que esta tem em carteira uma parte apreciável da dívida pública portuguesa.
Ora, tendo a geringonça decidido basear no aumento do consumo a redução do défice público, partindo do princípio de que quanto mais produtos forem comprados mais IVA se cobra, quanto mais combustíveis se venderem mais ISP se paga, quanto mais veículos se transacionarem mais ISV vai ter aos cofres do Estado, a banca tem estado a ser chamada a alimentar este delírio perigoso.
Como? Pois financiando quem consome para que compre mais e já, deixando para mais tarde o momento da verdade em que será preciso pagar os empréstimos à banca.
Também nas empresas, a pressão política vai no sentido de não as deixar cair mesmo quando estas estão com rentabilidades insuficientes para o serviço das respetivas dívidas.
Aumentar os plafonds de crédito às empresas em dificuldades é, na ótica dos políticos, sempre melhor que aumentar o desemprego e reduzir o consumo, esse manancial de impostos indiretos que alimenta o Orçamento do Estado.
É que a banca, quando gerida irresponsavelmente, é uma entidade especial: pode emprestar de forma laxista e assim criar artificialmente, tanto nas pessoas como nas empresas, uma sensação de bem-estar que será paga no futuro com grossos prejuízos, as tais imparidades, que vão à dívida pública e que, até agora, têm sido pagas pelos contribuintes.
Só que, paradoxalmente, a banca portuguesa, se quiser sobreviver – e o governo sublinha sempre que a estabilidade financeira é uma das suas grandes prioridades –, tem de atuar de forma exatamente oposta à que o governo pretende, que é continuar a alimentar artificialmente um consumismo desenfreado.
O futuro próximo da Caixa Geral de Depósitos é o exemplo mais acabado desta perigosa esquizofrenia.
Como acaba de se saber, a Caixa e o governo comprometeram-se com o BCE a aumentar os spreads e as comissões bancárias, a serem muito mais exigentes nos créditos a conceder e a não terem contemplações para com os devedores que provocaram as gigantescas imparidades que o laxismo creditício passado provocou nas contas do banco público.
E compreende-se bem porquê!
Para aceitar o caráter de mercado do plano de recapitalização da Caixa, o BCE exigiu que este inclua 1.000 milhões de euros de obrigações subordinadas vendidas no mercado, sem qualquer tipo de garantia dada pelo Estado.
Por outras palavras, quem comprar estas obrigações sabe claramente que, se as coisas correrem mal na Caixa, então vai perder todo o seu dinheiro. Espera-se também que o BCE não autorize que estas obrigações venham a ser subscritas pelas empresas do chamado capitalismo decretino que pululam na nossa praça, nem por entidades subordinadas ao próprio Estado...
Assim, a Caixa, para conseguir vender no mercado os tais 1.000 milhões de euros de obrigações, terá de desenvolver uma estratégia de gestão bancária que vai frontalmente contra o interesse político de consumismo fácil em que o governo, que também aprovou as condições de recapitalização da Caixa, quer continuar a basear a sua política económica.
Trata-se, pois, duma perigosa contradição insanável de termos.
E, por isso, aqui deixo ao dr. Paulo Macedo os desejos sinceros de que tenha sucesso e que não lhe falte a coragem para resistir às terríveis pressões que inevitavelmente sobre ele vão cair.
É que uma democracia de qualidade em Portugal vai depender muito da qualidade e da competência com que a nova administração da Caixa vai agora desempenhar o seu cargo.
Clemente PEDRO NUNES
Professor Catedrático do Instituto Superior Técnico
Subscritor do Manifesto Por Uma Democracia de Qualidade
NOTA: artigo publicado no jornal i.