No final deste mês de novembro é apresentado, em Lisboa, o livro “Reforma Política Urgente”, uma edição da Sopa de Letras, por iniciativa da APDQ – Associação Por uma Democracia de Qualidade, de que sou presidente. O livro compila quase todos os artigos publicados semanalmente, há três anos, neste jornal, à quarta-feira, por um punhado dos 50 subscritores do
Manifesto Por uma Democracia de Qualidade (2014): António Pinho Cardão, Clemente Pedro Nunes, Fernando Teixeira Mendes, Henrique Neto, João Luís Mota Campos, José António Girão, Luís Campos e Cunha, Luís Mira Amaral e eu próprio. O manifesto foca-se na reforma política, reclamando medidas de mais verdade, representatividade e transparência no sistema eleitoral e no financiamento partidário. A associação constituiu-se para dar continuidade à expressão pública das ideias do manifesto e para as aprofundar em diálogo com a sociedade civil. O livro recolhe textos que abordam o tema sob ângulos diversos, corporizando o essencial da nossa luta cívica destes últimos três anos.
Em título, o livro toma logo posição pela urgência da reforma política. Mas esta urgência não decorre de nada de novo que tenha acontecido agora e a provocasse. Não, a urgência resulta de a reforma ser esperada há muito e, preguiçosamente, continuar por fazer.
É espantoso como a teia e os enredos montados pelos diretórios partidários e pelo núcleo duro das classes dirigentes têm conseguido fintar e bloquear, 20 anos a fio, as reformas que se impõem quanto ao modelo das eleições para a Assembleia da República, mantendo tudo na mesma e privando os eleitores da palavra decisiva.
Há 20 anos saiu a Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de setembro, com a quarta revisão constitucional. A Constituição passou a apontar para um sistema eleitoral de representação proporcional personalizada, que reforça substancialmente o peso dos eleitores na escolha dos deputados. O texto do artigo 149.º da Constituição, embora não o imponha, aponta claramente para um sistema misto, em coexistência de círculos uninominais e plurinominais, em moldes complementares e protegendo sempre a proporcionalidade da representação parlamentar global. A Alemanha tem um sistema deste tipo, que tem prestado excelentes provas.
O que significa isto? Significa que os problemas e vícios de que mais nos queixamos – falta de representatividade dos deputados em geral, poder centralizado nos chefes e diretórios, fraca colegialidade, baixa institucionalidade, escasso poder de escolha pelos eleitores, fácil captura dos centros de decisão, descrédito dos partidos, descrença na democracia – eram problemas que pesavam já fortemente no debate político dos anos 1990. Por isso se fez a revisão constitucional neste domínio, com a profundidade do artigo 149.º. Seria impossível conseguir maioria de 2/3 para desenhar o novo caminho se a questão não estivesse já bastante madura.
A revisão da Constituição foi aprovada a 3 de setembro de 1997. Logo a seguir, o governo da altura aprovou, a 11 de setembro, uma resolução do conselho de ministros a definir o calendário e a metodologia de elaboração de uma proposta de nova Lei Eleitoral para a Assembleia da República, anunciada para março de 1998. A preparação dessa proposta foi muito participada e aberta: houve intervenção dos organismos técnico- -eleitorais do Estado; houve estudos científicos de reputadas entidades universitárias e prestigiados especialistas; houve um primeiro anteprojeto submetido a debate e escrutínio público; houve exame por parte dos partidos políticos.
Em 26 de março, deu entrada no parlamento a proposta de lei n.º 169/vii, estruturando o novo sistema de representação proporcional personalizada, compreendendo 103 círculos uninominais num total de 230 deputados. Seria uma revolução democrática no poder de escolha dos eleitores. Antes, a 16 de março, já dera entrada o projeto de lei n.º 509/vii do PSD, propondo outro quadro de sistema misto, contendo 85 círculos uninominais num total de referência de 184 deputados. E, a 14 de abril, numa linha conservadora, entrou o projeto de lei n.º 516/vii do PCP, propondo apenas ajustes no sistema vigente, que é ainda o atual.
O processo legislativo prometia mais do que deu. Prometia alguma coisa – deu em nada. Prometia concretizar a revisão constitucional – apunhalou-a e enterrou-a. No dia 23 de abril de 1998, naquela que é talvez a mais funesta sessão plenária parlamentar das últimas décadas, a Assembleia da República abortou a reforma política. Os deputados tiveram nos pés uma reforma estratégica fundamental para a democracia e para Portugal – chutaram-na para as bancadas. O CDS assobiou para o lado. O PCP fincou-se na sua. O PSD empunhou o florete da redução, à cabeça, do número de deputados de 230 para 184, esgrimindo uma linha que tem sido, sempre, o veneno tóxico de qualquer reforma eleitoral. O PSD e o PS travaram-se de razões a favor e contra o veneno. PCP e CDS também discordavam do PSD mas, interiormente, regozijavam-se pelo seu efeito sabotador. E, apesar de o governo haver apelado a que passassem na generalidade todos os textos, guardando a fase da especialidade para afinar pormenores e aplanar diferenças, a intoxicação crescente infetou de tal modo o debate que, no fim da sessão, os votos cruzados acabaram a chumbar todos os textos. Morreu. Até hoje…
Na legislatura de 2002/05 criou-se na Assembleia da República uma Comissão Eventual para a Reforma do Sistema Político. Não passou de bailarico. Pomposo, mas só bailarico. Houve contributos relevantes, audições valiosas e qualificadas, abusou-se da boa-fé das pessoas, apresentaram-se boas ideias e propostas. Mas concretizações? Nem uma só para amostra. Foi a forma de os diretórios nos entreterem e arrastarem o tema: faz que anda, mas não anda.
É por isto que a reforma política é urgente: ao fim de 20 anos, a revisão da Constituição continua por cumprir. Os problemas mantêm-se; e, a cada ciclo, agravam-se. O descrédito da política é enorme, gigantesca a descrença no sistema. O sistema sofre de osteoporose em grau avançado.
Basta um só deputado com voz livre para a diferença logo se sentir. E, se todos forem de voz livre, não presos e vergados a tribos, não dependentes do chefe, mas pertencentes aos eleitores, o caso muda por completo de figura. A democracia vive porque a cidadania se afirma. Se a reforma eleitoral de 1998 tivesse acontecido, a corrupção teria chegado onde chegou? Não. Os bancos ter-se-iam degradado como aconteceu? Não. As negociatas teriam o terreno livre de escândalo que vimos? Não. A má gestão teria campeado? Não. A crise do défice e da dívida teria rebentado como foi? Não. A troika teria sido necessária? Não. A desertificação do país teria progredido como está? Não. Após os incêndios de 2003 e 2005, o país teria crescido na extrema vulnerabilidade ao inferno de 2017? É claro que não.
Então estamos à espera de quê? Reforma política urgente, pois claro!