segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

Rui Pena


Há notícias que doem mesmo. Doem igualmente, mesmo quando estamos preparados para elas.

O Rui Pena foi um dos meus grandes amigos. Eu grande amigo dele e ele, creio, ainda mais amigo meu.

Há anos que lutava contra um cancro, a terrível doença deste tempo. Vencera algumas vezes - ou arredara-o, que a doença volta sempre a atacar. O Rui fê-lo sempre com coragem, com simplicidade, sem dramas. Sempre mantendo aquela serenidade rara e a enorme capacidade de trabalho que eram a sua marca.

Desta última vez, nos últimos meses do ano que passou, o contra-ataque bateu muito forte. Ainda ia ao escritório trabalhar sempre que podia. Estava muito debilitado da última vez que nos vimos, à saída da missa do Campo Grande. Já não foi aos meus anos. E falámos pela última vez, quando me ligou a responder à chamada que lhe fizera pelos seus anos - o seu dia era 25 de Dezembro. Ia começar por essa altura nova bateria de tratamentos. Foram os últimos. Deus chamou-o para descansar.

Foi construtor e um grande dirigente do CDS, uma grande figura, um homem muito respeitado, um centrista democrata-cristão a sério. Não era meramente encartado, era da sua natureza e da sua genuína formação. Respirava a Declaração de Princípios do partido.

A alto nível dirigente, foi o nosso preso político, por cuja sorte muito tememos em 1975. Hoje, o CDS possivelmente não sabe disso, uma vez que perdeu o estudo, o conhecimento e o cultivo da história do partido e prefere entreter-se ora a pôr retratos, ora a tirá-los outra vez, ora a assinalar os 40 anos, ora a apagá-los, ora a ter no portal electrónico algumas coisas da história do Partido do Centro Democrático Social e do Partido Popular, ora a eliminá-las por inteiro. Mas Rui Pena, que foi um dos nossos grandes parlamentares, um dos nossos primeiros ministros (em 1978, com a pasta da Reforma Administrativa), um brilhante líder parlamentar (fui seu vice-presidente durante seis meses), um dos mais prometedores juristas do seu curso, um reputadíssimo advogado, um nome que granjeava respeito só de o ouvir pronunciar, foi preso arbitrariamente pelas autoridades revolucionárias pouco depois do 11 de Março de 1975. No núcleo duro da direcção do partido, que ele também integrava, nunca soubemos porquê. Ele também não. Nem foi só “preso sem culpa formada”; foi preso por nada, preso porque sim.

Passou ameaças e aflições. Cá fora, a família, os amigos e os companheiros, passámos muitas inquietações, ansiedade e incerteza. Hoje, sabemos que não se passou nada. Nessa altura, não sabíamos. A revolução corria a galope, não se sabia para onde, nem para quando.

Seria libertado alguns meses depois, ainda com o PREC a rolar. Dois jovens da Juventude Centrista do Porto, presos na mesma altura, mas noutro contexto, ainda amargaram mais uns meses na cadeia e só seriam soltos a seguir ao 25 de Novembro.

Só por isso - e há muito mais - merecem a homenagem eterna do partido. São os nossos heróis da liberdade, por muito que o não queiram. O Rui, sei que nunca o quis. Foi um homem íntegro e modesto, nada espalhafatoso. Mas é-o, na verdade: um herói.

Desgostoso com a evolução do seu partido, viria a afastar-se e saiu. Foi dos que não resistiu ao choque do PP com o CDS. Ele manteve-se Partido do Centro Democrático Social e apeou-se. Não me recordo, porém, de o ver atacar o CDS-PP. Sentia-se fora; e fora se manteve.

O Rui Pena voltaria brevemente à política, apoiando com um grupo de independentes António Guterres, que muito apreciava e conhecia bem. Viria a ser ministro da Defesa e foi um bom ministro.

Mas o que ele era verdadeiramente, além de cidadão exemplar e de um dedicado homem de família, radiante nos seus filhos, era um grande e brilhante advogado. Este o terreno e a ferramenta de que verdadeiramente gostava: o Direito. Fez a transição do seu velho e reputado escritório tradicional, em sociedade com alguns colegas muito próximos, para uma outra etapa das grandes sociedades contemporâneas. Foi uma grande viagem, à altura do seu gabarito e craveira, como um dos grandes vultos da sua geração da Faculdade de Direito de Lisboa.

Quanto se pode dever a alguém pela amizade? Creio que ou nada, ou tudo. Nada, porque a amizade é gratuita. Tudo, porque a amizade não tem preço que a pague. Sinto que devo isso ao Rui: nada e tudo. E, hoje, quando a notícia da sua partida bate forte, sei que devo mais tudo do que nada.

A minha mulher confortou-me com uma ideia simples: “Que grande festa eles devem estar a fazer lá em cima a receber o Rui Pena! O Adelino [Amaro da Costa], o Emídio [Pinheiro], o Sá Machado, o João Porto, tantos que já lá estão.”

Sorri com a ideia desse reencontro. As linhas que coseram estas amizades são linhas que nada desgasta, nada quebra, nada apaga.

Descansa em paz, querido Rui.

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