quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Círculos uninominais, sim ou não?

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de José Ribeiro e Castro, saído hoje no jornal i.
A serem instituídos, os círculos uninominais têm que estar em complementaridade com os círculos plurinominais. Em caso nenhum pode a representação proporcional ser menosprezada.

Exemplo da parte superior de um boletim de voto nas eleições legislativas na Alemanha. À esquerda, cada eleitor escolhe um deputado no círculo uninominal. À direita, vota num partido na lista plurinominal, estadual.

Círculos uninominais, sim ou não?
Se me perguntassem, assim de chofre, se sou a favor de círculos uninominais – sim ou não? –, provavelmente responderia que não. E, todavia, trabalho para essa reforma, essencial para a qualidade da democracia. Confuso? Nada disso. Clarinho, clarinho. É que dos círculos uninominais podemos dizer o mesmo que a célebre tirada do Vasco, grande cábula de Medicina, na inesquecível comédia “A Canção de Lisboa”: “Chapéus há muitos, seu palerma!”

Círculos uninominais, na verdade, há muitos. Pode ser-se a favor de uns e contra outros, pois o que realmente conta é o sistema eleitoral em que se integram. O traço que têm em comum é o de, aí, se votar no nome de um candidato. Os círculos uninominais estão em oposição aos círculos plurinominais, onde (como fazemos hoje) votamos em listas com muitos candidatos. Mas o quadro de decisão eleitoral pode ser muito diferente e o funcionamento democrático do sistema também.

Há círculos uninominais à inglesa, sendo eleito deputado o mais votado. Dependendo do número de concorrentes e da distância entre estes, pode ser eleito deputado, representando a totalidade do círculo, quem alcance apenas 20 e picos por cento dos votos. É o sistema enraizado no Reino Unido, correspondendo à sua muito antiga tradição, sendo difícil transplantá-lo para sociedades sem directa influência cultural e política britânica. Deixou mau nome na nossa monarquia constitucional. É injusto na representação nacional: um partido com pouco mais de 30% pode alcançar maioria absoluta na Câmara dos Comuns, enquanto outros com mais de 20% podem ter representação residual ou nula. Para um partido relevante ser varrido dos Comuns, em absoluto ou numa parte relevante do território, basta nunca alcançar mais do que o segundo lugar nos vários círculos uninominais, e não obtém um só assento parlamentar.

Há círculos uninominais à francesa, sendo eleito deputado aquele que alcance maioria absoluta à primeira volta ou que vença na segunda volta entre os mais votados. Tal como no sistema britânico, também é um sistema maioritário, embora temperado pela exigência de mais forte maioria de representação, através da maioria absoluta à primeira volta ou da formação de “coligações eleitorais” da primeira para a segunda voltas nas diferentes circunscrições, para fazer triunfar o mais elegível à direita, à esquerda ou ao centro. Apadrinha a concentração partidária.

Os círculos uninominais que defendo são os previstos na nossa Constituição, desde 1997, e nada – absolutamente nada – têm a ver com os dos sistemas britânico ou francês, pois os nossos têm que operar no quadro da representação proporcional a que estamos habituados. Por isso é que, quando, nos últimos anos, oiço preconceitos e críticas superficiais à introdução de círculos uninominais como factor de refrescamento do sistema proporcional, apetece-me gritar como Vasco Santana: “Círculos uninominais há muitos, seu palerma!”

É preciso começar pelo sistema. Diz o artigo 149º, n.º 1 da Constituição: “Os Deputados são eleitos por círculos eleitorais geograficamente definidos na lei, a qual pode determinar a existência de círculos plurinominais e uninominais, bem como a respetiva natureza e complementaridade, por forma a assegurar o sistema de representação proporcional e o método da média mais alta de Hondt na conversão dos votos em número de mandatos.” Ou seja, o sistema é proporcional, segundo o método de Hondt; e os círculos uninominais, a serem instituídos, têm que estar em complementaridade com os círculos plurinominais, por forma a assegurar a representação proporcional. Sublinho: em caso nenhum pode a representação proporcional ser menosprezada e posta de lado.

A representação proporcional é, aliás, limite material de revisão constitucional: não é possível afastá-la. Mas nem cabe pensar nisso, pois estes específicos círculos uninominais é que são virtuosos. Cada eleitor dispõe de dois votos no seu boletim: num, escolhe o seu deputado, de entre os candidatos no círculo uninominal (local); no outro, escolhe a lista partidária que prefere, de entre as apresentadas no círculo plurinominal (distrital ou regional). O voto que determina a composição global do Parlamento é este voto partidário, que define a quota territorial de mandatos a que cada partido tem direito, somando os uninominais e de lista. A proporcionalidade das escolhas eleitorais é inteiramente respeitada e, mostra a experiência, em termos libertos do “voto útil”, que se manifesta no voto uninominal, não afectando a composição percentual da Assembleia.

A escolha dos deputados que vencem em cada círculo uninominal não é bem uma eleição directa: os vencedores ganham precedência a serem os primeiros providos nos lugares da quota do partido alcançada pela votação plurinominal, à frente de outros. Sublinhe-se: o sistema não é maioritário, mas de representação proporcional personalizada. O primeiro efeito do voto uninominal é eleger os vencedores como os primeiros representantes do seu partido na região ou distrito de que se trate – isto é, o poder democrático enraíza-se na cidadania.

Os candidatos uninominais podem ser, simultaneamente, candidatos nas listas plurinominais, sendo eleitos pela via que primeiro couber. Tudo depende dos próprios e de cada partido, mas é frequente a dupla candidatura, por boas razões: a probabilidade de ser eleito por um círculo uninominal é baixa, pois só um vence e os outros ficam de fora. Ora, pondo os partidos os melhores nas disputas uninominais, era mau que os melhores não-eleitos ficassem de fora; figurando também nas listas, podem ainda ser eleitos na quota proporcional do partido. Este é o segundo efeito do voto uninominal: não só os vencedores, mas também os outros, possivelmente eleitos pelas listas, todos são tocados pelo espírito e pelo poder da cidadania.

E há o terceiro efeito destes votos uninominais, o mais fundamental: os partidos têm de mudar de paradigma e de processo, passando a escolher, como uninominais ou nas listas, candidatos com o maior prestígio social e político. E estes, uma vez eleitos, serão senhores efectivos do seu mandato. Fazem parte do grupo, mas todos têm voz própria. Há uma profunda mudança cultural nos processos partidários. Os cidadãos voltarão a estar representados, porque o poder emanará de si: das suas escolhas e da forma como influenciam as escolhas dos partidos. Os partidos tornar-se-ão melhores: voltarão a poder estar à altura da sua missão cívica, da nobreza da política e de um genuíno sentido de Estado e de serviço.

Sim, estes círculos uninominais são bons. Melhoram a representação proporcional. Libertam as candidaturas dos vícios e dependências que as conduziram ao grave declínio do sistema. Protegem o futuro e a qualidade da democracia. Asseguram genuína legitimidade eleitoral. São a chave da reforma, prometida pela Constituição há 21 anos. Já chega de tanto esperar.
José RIBEIRO E CASTRO
Advogado
Subscritor do Manifesto "Por uma Democracia de Qualidade"

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