segunda-feira, 28 de outubro de 2013

O colapso do Estado de Direito - a propósito do caso «Maddie»


Num dia muito quente do inicio de verão de 2003, ia eu a meio da manhã, já passado Amarante a caminho de Mirandela para  celebrar com o Presidente da Câmara local um protocolo quanto à instalação do Tribunal Administrativo e Fiscal, entretido na leitura dos jornais, quando tocou o telemóvel: era o meu chefe de Gabinete.
Perguntava-me se tinha ouvido as noticias na rádio. Não tinha, estava a ler os jornais; então que ouvisse, o Paulo Pedroso tinha acabado de ser preso, no âmbito do processo da «Casa Pia».
Arredada ficava a possibilidade de ver nessa noite o Porto jogar contra o Celtic em Sevilha a final da taça UEFA.
Dizer que fiquei de boca aberta ou especado de espanto, é pouco. O Dr. Paulo Pedroso tinha sido Secretário de Estado e pouco mais de um ano antes era Ministro da Segurança Social. Nesse momento era Deputado e porta-voz do Partido Socialista. Dizia-se que era o nº 2 de Ferro Rodrigues. Preso? Nem era um caso de «sic transit gloria mundi». Era um caso de queda a pique, tão trágica e chocante que não havia palavras para explicar.
Nos dias seguintes a imprensa não falava de outra coisa. No Público, Augusto Santos Silva insinuava uma cabala, uma maquinação contra o PS, e se havia maquinação contra o PS que envolvesse a polícia judiciária e o sistema de investigação penal, o Ministério da Justiça estava na berlinda, claro.
Ninguém de entre os responsáveis do Ministério revelou saber mais do que as noticias saídas nos jornais e nas televisões: a prisão em directo, a invasão da Assembleia da República com as câmaras de televisão atrás, acusações vagas...
Senti um calafrio: que diabo, pode-se ser preso com base «nisso»? em directo? Na TV? Um deputado da República? Desde esse momento mantenho uma opinião: se a acusação contra Paulo Pedroso se viesse a revelar insubsistente, estávamos a assistir ao colapso do Estado de Direito.
Muitos meses depois Paulo Pedroso seria libertado após o Tribunal Constitucional ter declarado que o processo não se tinha revestido do mínimo de garantias de direitos e liberdades, e nem chegou a ser acusado porque a Relação de Lisboa revogou o despacho de acusação por entender que não continha o mínimo de indícios que permitissem formular uma acusação.
Para mim já não foi surpresa: sabia há meses que aquela acusação não podia dar em nada porque a prova era exclusivamente testemunhal e as testemunhas não pareciam ser fiáveis.
Surpresa foi não ter acontecido nada: nem aos investigadores do Ministério Público que com ligeireza deduziram uma acusação insubsistente, nem ao Mmº Juiz de Instrução, o célebre «justiceiro» da T-shirt, que depois de ter escaqueirado o crédito da Justiça Portuguesa foi à vida dele.
A Justiça interiorizou mais um fiasco, absorveu-o e esqueceu-o. Portugal ficou mais, mas muito mais pobre.
Em Maio de 2007 uma menina inglesa desapareceu no Algarve. Meses depois, os órgãos de investigação criminal chegavam à conclusão habitual: a culpa era de certeza dos Pais. Provas? Indícios? Motivos? Para quê, se há a imprensa? Os Pais foram constituídos arguidos.
Um ano depois o processo foi arquivado, por absoluta falta de provas, pistas ou indícios. Entretanto os Pais da menina ficaram amarrados ao pelourinho da opinião pública habituada e sedenta do sangue de crapulosos culpados que o «sistema» lhe serve, já confessados e até arrependidos do que possam ter feito, sobretudo depois de uma boa tareia pedagógica...
Mais uma vez, a Justiça interiorizou o fiasco e nada aconteceu.
São casos conhecidos que nos podem dar uma noção dos casos desconhecidos que todos os dias acontecem.
Num sistema onde o erro grosseiro, o abuso dos direitos liberdades e garantias, a ofensa da rectidão processual não têm consequências, não há qualquer estímulo para melhorar o que está visivelmente estragado, conduzindo a um sistema de investigação desleixado, permeável à influência política, corporativo, irresponsável, inamovível, incapaz de se regenerar e pior do que tudo, convencido da sua infalibilidade. Já nem os Papas...

É este o Estado de direito que queremos?
(este artigo foi escrito há anos e enviado ao jornal «Público» que recusou publicá-lo...)

Sem comentários: