quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Sistema eleitoral: tudo na mesma como a lesma?

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de José Ribeiro e Castro, hoje saído no jornal i.

O imobilismo dos directórios partidários, nomeadamente no quadro da maioria, matou qualquer esperança.


Sistema eleitoral: tudo na mesma como a lesma? 

O Manifesto Por Uma Democracia de Qualidade e a associação com o mesmo nome que estamos a constituir focam-se na reforma do sistema eleitoral como reforma fundamental para o país. Partilhamos o sentimento de que o estado deplorável a que o país chegou resultou do declínio do sistema político e da decadência do sistema de partidos, que reduziram a democracia a uma caricatura, favorecendo a captura por interesses obscuros, promovendo o Estado-espectáculo e anulando a representatividade institucional com permanente e efectiva prestação de contas. Não nos limitamos a partilhar o sentimento; mobilizamo-nos para manifestar inconformismo, agir civicamente.

Vemos a reforma eleitoral como estratégica para devolver autenticidade ao sistema democrático e voz activa à cidadania – é determinante para restituir aos partidos a sua função socialmente útil e politicamente orgânica e genuína. Sem isso, só por acaso melhoraremos. E facilmente poderemos recair; e piorar.

Quando apresentámos o Manifesto, há exactamente um ano, chamámos a atenção para como, nesta questão, somos um país adiado desde há 18 anos. Nós próprios nos surpreendemos. Custa, na verdade, acreditar: 18 anos perdidos!

Em 3 de Setembro de 1997, foi aprovada uma significativa revisão constitucional que permitiu amplo espectro de revisão das nossas leis eleitorais, reforçando o poder do eleitor sem prejuízo para a representatividade proporcional e para a estabilidade governativa. O artigo 149º da Constituição passou a dispor o seguinte: «Os Deputados são eleitos por círculos eleitorais geograficamente definidos na lei, a qual pode determinar a existência de círculos plurinominais e uninominais, bem como a respectiva natureza e complementaridade, por forma a assegurar o sistema de representação proporcional e o método da média mais alta de Hondt na conversão dos votos em número de mandatos.» E, já antes, em 1989, outra revisão instituíra a possibilidade de um círculo nacional complementar, útil para, numa reforma, assegurar sempre a justa representatividade proporcional global. Ou seja, não há desculpa.

Não há desculpa para os legisladores. Podem escolher de variada gama de hipóteses: desde o mais perfeito sistema misto, à alemã, até diferentes modelos de voto preferencial, passando por pequenas melhorias e ajustamentos. Desde há 18 anos que várias opções são possíveis para garantir a melhor representação dos cidadãos, do território e das correntes políticas, indo ao encontro do sentimento da população e da exigência repetida pelo descontentamento dos eleitores – e nada é feito. Seis legislaturas são passadas – zero reformas, inovação zero, produtividade nula.

Há um ano, no anúncio do Manifesto, havia tempo para fazer esta reforma a tempo já das próximas eleições em 4 de Outubro. E, na situação a que o país chegou, como precisávamos disso! Como precisávamos de uma Assembleia da República eleita em moldes renovados e com uma legitimidade democrática realmente refrescada. Como precisávamos de deputados em que todos os cidadãos se sentissem retratados e verdadeiramente representados. Faltou a condição sine qua non: vontade política. O imobilismo dos directórios partidários, nomeadamente no quadro da maioria, matou qualquer esperança. E mais uma legislatura passa, com maioria política estabelecida, sem nada avançar ou ser sequer esboçado.

Tempo, então, de pensar o que a próxima Legislatura trará. Infelizmente, as notícias são más.

Pelo lado do programa do PS, as ideias são coerentes com a revisão constitucional de 1997: «Reformar o sistema eleitoral para a Assembleia da República, introduzindo círculos uninominais, sem prejuízo da adopção de mecanismos que garantam a proporcionalidade da representação partidária, promovendo o reforço da personalização dos mandatos e da responsabilização dos eleitos, sem qualquer prejuízo do pluralismo.» Já pelo lado da coligação PàF as ideias são bem mais tímidas: «Manter, em matéria de sistema eleitoral, o sistema proporcional afinado pelo método de Hondt, estando aberto à possibilidade da introdução do chamado voto preferencial, em que os eleitores, para além de fazerem uma opção partidária, podem indicar candidatos da sua preferência na lista partidária. Os partidos da coligação trabalharão em propostas que articulem os princípios da representatividade, da pluralidade e da acrescida intervenção dos eleitos nas escolhas.» Os socialistas retomam a linha de propostas legislativas que chegaram a estar em processo muito adiantado na parte final da legislatura que terminou em 1999. E PSD/CDS só referem o tema muito a medo, tocando-lhe o menos possível, condicionados talvez pelo conservadorismo extremo da direcção do CDS-PP.

O sistema para que evoluí é o modelo alemão, o subjacente à revisão constitucional de 1997 e que é susceptível de diferentes variantes. Penso ser aquele que melhor responderia aos nossos problemas e necessidades. Já o voto preferencial, também apontado no nosso Manifesto, necessita de cautelas, pois é facilmente manipulável para fingir que se mudou, mantendo tudo na mesma – depende. Mas o problema maior nem é este, antes a nova conversa de surdos em que poderemos cair. Um modo de nada fazer é fingir que se quer sem verdadeiramente querer – e, como a reforma carece de dois terços, basta o passo estar trocado para cairmos no mau costume: faz que anda, mas não anda. A PàF apontar ao voto preferencial, enquanto o PS prefere um sistema misto, prenuncia um teatrinho político-parlamentar no pior: mera conversa de xaxa.

Por isso, este Agosto de 2015 não termina, neste particular, diferente do Agosto de 2014. Ainda por cima, com excepção de Henrique Neto (de forma vigorosa) e (às vezes) Rui Rio, os candidatos presidenciais ou alegados presidenciáveis nada dizem sobre isto e pouco influenciam o debate público no sentido certo. Depois de seis legislaturas a marcar passo, é de desconfiar, com estes termos de partida, que as próximas eleições serão como as anteriores: por si, nada de novo.

Creio que isto é inédito: fazer-se por maioria de dois terços uma revisão constitucional em matéria chave e estratégica e, 20 anos depois, o legislador ordinário não a conseguir transformar em lei e reforma prática. Por isso, continuamos a depender principalmente do poder da cidadania e da mobilização de base a partir da sociedade. Nisso nos concentraremos pela novel Associação Por uma Democracia de Qualidade.
José RIBEIRO E CASTRO
Advogado, Deputado
NOTA: artigo publicado no jornal i.

Sem comentários: