domingo, 4 de dezembro de 2016

Coerência de políticas, uma exigência de desenvolvimento

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de José António Girão, saído na quarta-feira passada no jornal i.

Continua a querer-se construir o futuro com base em remendos nas estruturas do passado e em quimeras, fantasias e centros de interesses particulares.


Coerência de políticas, uma exigência de desenvolvimento 

São bem conhecidos os inúmeros fatores que há muito determinam e caracterizam a profunda crise económica e social com que nos confrontamos. De tão longa, apesar dos sobressaltos que por vezes emergiram e pareciam constituir fonte de ânimo, o que verdadeiramente se regista é uma acentuada quebra nas expectativas dos cidadãos, facto comprovável, entre outros, pelo crescente alheamento destes da “causa pública” e pelo progressivo desinteresse pelo sistema eleitoral.

Com efeito, nem o estado de manifesta necessidade e carência de recursos financeiros com que já nesta década nos confrontámos, e nos conduziu ao memorando de entendimento sobre políticas económicas e financeiras com a troika, foi capaz de nos conduzir a uma situação de desbloqueamento das estruturas e políticas vigentes e ao profundo reajustamento institucional e político que o futuro nos exige.

Deste modo, importa fundamentalmente reconhecer que a resposta à crise portuguesa não pode assentar no recurso a medidas pontuais e dispersas (tipo navegação à vista), mas que se torna indispensável uma nova visão para o país, assente num desígnio nacional e numa postura que permita ultrapassar o imobilismo, os complexos e os bloqueios existentes, simultaneamente assumindo as ameaças e os desafios com que há muito nos confrontamos.

Para tal importa igualmente reconhecer a necessidade de uma estratégia largamente consensual e com prioridades claramente assumidas (não é possível alcançar tudo em simultâneo), bem como equacionar a natureza das medidas políticas a implementar, com vista à prossecução dos objetivos visados.

Corolário do que precede é o fator essencial que faz com que esse conjunto de políticas tenham de ser coerentes, o mesmo é dizer compatíveis e essencialmente não conflituantes entre si no que respeita às suas repercussões. Como sabemos, qualquer medida de política económica tem sempre múltiplos efeitos: o principal, dirigido ao objetivo pretendido; e os secundários, cujas repercussões no visado poderão ser positivas ou negativas. Há assim que garantir que o impacto destes não seja suscetível de pôr em causa o alcançar do objetivo principal – o mesmo é dizer que tenha custos mínimos.

A coerência entre as políticas prosseguidas é, assim, determinante para a credibilidade e confiança nessas políticas, a estratégia definida e o modelo de progresso e desenvolvimento adotado. Em síntese, os instrumentos e objetivos da política económica têm de ser considerados e definidos conjuntamente, sob pena de falência do modelo gizado.

Como sabemos, não é isto que tem acontecido e constitui a prática habitual entre nós; muito menos parece ser genericamente reconhecido. Continua a querer-se construir o futuro sem reconhecer as profundas interdependências entre aspetos tão essenciais como a forte dependência (de empresas e particulares) do Estado; os baixos níveis de formação e competência profissional de grande parte da mão-de-obra nacional; a reduzida produtividade e o baixo nível de competitividade; o elevado nível de burocracia e o deficiente funcionamento dos serviços públicos – particularmente da Justiça; o reduzido nível de empreendedorismo e de inovação; o nível de descapitalização e poupança do país; a situação da banca, etc.

No fundo, continua a querer-se construir o futuro com base em remendos nas estruturas do passado e em quimeras, fantasias e centros de interesses particulares, sem ter em conta as reais necessidades associadas à concretização das oportunidades que se nos oferecem e estão ao nosso alcance, e em detrimento das reformas que permitiriam progressivamente, e de forma sustentável, a melhoria das condições de vida dos portugueses.

Exemplo particularmente elucidativo desta visão e da ausência de rigor e realismo é aquele a que assistimos ainda recentemente, quando vimos governantes e subservientes “fazedores de opinião” perspetivarem os resultados económicos conseguidos no 3.º trimestre deste ano como indicadores do sucesso da política económica que vem sendo seguida.

Como é óbvio, todos devemos regozijar-nos com os valores dos indicadores registados no trimestre findo, até porque são francamente melhores que o previsto. Mas daí à euforia a que assistimos e a concluir que a abordagem seguida é suscetível de nos retirar da crise e corresponde a uma estratégia sustentável de crescimento, só para rir... como diz o povo.

Onde está o aumento de investimento, prenunciador do aumento da capacidade produtiva suscetível de potenciar o crescimento das exportações de bens e garantir a contínua melhoria das contas externas? Onde está a reconfiguração da banca, compatível com a credibilização e nível de confiança suscetíveis de atrair a poupança e proporcionar o financiamento eficaz da economia? Onde vemos o dinamismo empresarial, a melhoria da logística e das qualificações profissionais da mão-de-obra, e as alterações da fiscalidade compatíveis com aumentos de produtividade, melhor repartição da riqueza gerada, estímulos à poupança e capitalização das empresas?

O modelo em vigor já provou sobejamente que não consegue criar riqueza ao nível desejado, por forma a proporcionar a melhoria nas condições de vida dos portugueses na dimensão desejada. Até porque a qualidade das políticas a que conduz não é percecionada pelos cidadãos como correta e ajustada.

Exemplo flagrante disso é a incompreensão e insatisfação geral com que os lisboetas assistem, perplexos, às obras e alterações em curso nos principais eixos viários da cidade, sem aparente justificação. Com efeito, carece de justificação corresponderem a uma clara prioridade, face às óbvias carências noutros domínios, incluindo a expansão e melhoria da rede e dos serviços de transportes urbanos – particularmente Carris e Metro.

De tudo isto resultam os reduzidos níveis de satisfação e confiança na competência e probidade das elites políticas, financeiras e até intelectuais.

Urge mudar este estado de coisas, tanto mais que várias propostas têm sido apresentadas... mas nunca verdadeiramente discutidas e muito menos implementadas. Até porque os demagogos estão atentos, a demagogia espreita e as ameaças à democracia concretizam-se. Atuemos antes que elas constituam uma ameaça também entre nós. Não é pedir muito...

José António GIRÃO
Professor da FE/UNL
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade
NOTA: artigo publicado no jornal i.

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