quarta-feira, 24 de maio de 2017

Dias de sorte

Na série de divulgação do Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, republicamos este artigo de João Luís Mota Campos, saído hoje no jornal i
De repente, crescemos mais que o resto da Europa, o desemprego diminui mais depressa, ganhamos o festival da Eurovisão, ganhamos o Euro, o Papa visita-nos para fazer dois santos portugueses, é um rodopio.

Capa d'O INIMIGO PÚBLICO, edição de 12.mai.2017,
antes ainda do triunfo de Salvador Sobral

Dias de sorte
O que normalmente estraga a imagem dos governos é a frustração das expetativas. Desse ponto de vista, o atual governo de Portugal teve sorte: começou com tão poucas expetativas, quer quanto ao tempo que ia durar, quer quanto ao que poderia fazer, que tudo o que aconteceu depois foram boas notícias.

Parece até que, por uma espécie de vertigem celestial, só nos acontecem coisas boas numa sucessão em catadupa que entorpece os sentidos. De repente, crescemos mais que o resto da Europa, o desemprego diminui mais depressa, ganhamos o festival da Eurovisão, ganhamos o Euro, o Papa visita-nos para fazer dois santos portugueses, é um rodopio.

Como dizia alguém por piada, “se tudo corre bem, são péssimas as perspetivas: só pode piorar”. Essa, aliás, parece ser a perspetiva do principal partido da oposição: esperar que tudo piore. Depois de sairmos do célebre procedimento por défice excessivo, podem esperar sentados.

Gente sensata aproveitaria o momento para fazer o balanço da situação, ver aquilo que está bem e pode ser melhorado e aquilo que está mal e deve ser substituído ou reparado. Não me parece que venha a ser o caso. Não vai ser o PS a mexer na máquina do Estado, que lhe rende umas boas centenas de milhares de votos e onde está sediado o grosso da sua clientela partidária. Não vão ser o Bloco de Esquerda ou o PC a propor uma diminuição do peso do Estado. Nenhum destes, nem o PSD estão disponíveis para pensar a sério nos problemas das famílias e da natalidade.

Como as coisas correm bem, ninguém se está a preocupar particularmente com a queda a pique do nível de poupança dos portugueses, que é irrelevante, com a quebra violenta das estruturas familiares de base, que determinam já uma diminuição assustadora da natalidade – abaixo do nível de manutenção, que é de 2,2 filhos por casal.

Poder-se-ia dizer que é porque somos uma sociedade moderna e desenvolvida, que a estrutura familiar de base de que falo é uma coisa do passado, que o dinheiro poupado é dinheiro roubado ao consumo e, portanto, à saúde das empresas. É…

A verdade é que nem todas as sociedades modernas e desenvolvidas têm uma curva demográfica tão assustadora como a nossa, nem todas repousam no consumo como motor da economia e muitas têm perfeita consciência de que a taxa de poupança é a alavanca do crescimento económico. Crescer sem capital é prestidigitação.

Depois há “aquela” questão da educação dos jovens portugueses. Está a melhorar, dizem. Esperemos que sim, mas há dias em que desespero. Foi muito criticado o “Correio da Manhã” por ter publicado um vídeo de uma suposta violação ocorrida num autocarro do Porto. Vi o vídeo e penso que o “Correio da Manhã” nos prestou a todos um grande serviço de informação.

O que se vê no vídeo é o antebraço e a mão que se adivinha de um rapaz, por baixo das calças de alguém que vimos depois a saber que é uma rapariga completamente drogada ou completamente bêbada, mão que se agita e mexe na zona do sexo da rapariga. Vimos também mãos e braços de circundantes e ouvimos gritos entusiasmados de ânimo ao dono do braço e da mão oculta nas calças da rapariga. Ou seja, o que salta aos ouvidos é um ambiente de forte entusiasmo masculino e feminino à volta da suposta violação. Tudo grita, tudo encoraja, sobretudo elas. Isto é o que eu vi e ouvi.

As conclusões que tirei são tristes. “Isto” é que é a geração mais educada de sempre? Este bando de suburbanos embrutecidos, cheio de álcool e sedento de excitações baratas é que são os “nossos” jovens?

Esta completa falta de pudor, de educação no verdadeiro sentido da palavra, de retidão e honorabilidade vem de onde? De que suposto sistema educativo? De que famílias?

Quando se vê isto, entende-se melhor por que é que em Portugal as taxas de abstenção eleitoral são avassaladoras: é que, na verdade, não temos cidadãos formados em cidadania; não temos cidadãos responsáveis que assumam responsabilidade por si e pela comunidade em que vivem. O que temos são assistidos do Estado e gente que acha que, nada tendo, tudo lhes é devido sem dar nada em troca.

Tem havido na Europa quem sugira que o voto devia ser obrigatório. Subscrevo essa tese na íntegra e acrescento duas coisas: a primeira é que o direito de voto deveria pressupor ao menos a manifestação do conhecimento mínimo do sistema político; a segunda é que a violação do dever de votar deveria ter sanção, e pesada, ou em penalização fiscal ou em multa significativa.

A verdade nua e crua é que um sistema político e eleitoral só pode funcionar saudavelmente se os cidadãos que o formam se comportarem como cidadãos, e não como plebeus destituídos de direitos, responsabilidades e deveres.
João Luís MOTA CAMPOS
Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade

NOTA:
artigo publicado no jornal i.

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