quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Os cúmulos da hipocrisia e da desfaçatez


O nosso Donald, sim que também temos um, o Tusk, a propósito da iniciativa do Governo Britânico no sentido de reabrir as negociações com a UE e encontrar uma solução para o célebre backstop para a fronteira da Irlanda do Norte com a República da Irlanda, declarou que que a UE não tinha “nenhuma nova oferta” a fazer e que o acordo não estava aberto a “novas negociações”.

Disse também que ainda acredita numa “solução comum” se for possível encontrar uma solução que garanta a paz na Irlanda no Norte. Oi?!

Donald Tusk é um polaco. Foi primeiro-ministro da Polónia. Como se sentiria essa qualidade se a UE tivesse imposto à Polónia uma solução fronteiriça, por exemplo com a Ucrânia, como condição para a admitir na União Europeia? Teria achado que isso era uma intromissão inaceitável na sua soberania?

Já todos percebemos que o fulcro da questão entre a União Europeia e Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, não é a questão económica do mercado comum, não é a livre circulação de pessoas entre ambos os espaços, não é a permanência dos cidadãos da UE no Reino Unido nem a dos cidadãos deste na União Europeia, é uma pura questão política e amor-próprio dos Ingleses: eles não podem tolerar que a União lhes imponha uma solução que diz respeito à sua unidade territorial e às suas fronteiras.

A Irlanda é uma ilha dividida em duas partes: a sul, a República da Irlanda que no século passado entendeu separar-se do Reino Unido. Os católicos, maioritários no sul, não queriam continuar a ser governados por um reino anglicano. Era o direito deles e exerceram-no.

A norte, o Ulster, uma parte da Irlanda em que os anglicanos são maioritários e não queriam ser governados por uma maioria católica e republicana. Era o direito deles e o Reino protegeu-o e tem-no protegido ao longo das muitas décadas que a República da Irlanda já leva de independência.

O resultado foi o de que entre as duas partes da Ilha surgiu uma fronteira. Enquanto a RI seguiu a liderança britânica e se acolheu na esfera económica do Reino, não verdadeiramente problemas entre os dois países. Problemas houve no Ulster onde a minoria católica iniciou uma virulenta campanha com recurso ao terrorismo e à luta armada (o IRA, para quem não saiba, Irish Republican Army) com o objectivo de se separar do Reino e juntar-se à República, contra a vontade da maioria anglicana.

O célebre acordo de sexta-feira santa, celebrado com a bênção dos EUA e do seu Presidente Clinton, iniciou um processo de desarmamento do IRA e uma época de paz na Irlanda do Norte com a muito activa colaboração da República, entretanto integrada com o Reino no seio da UE.

Uma parte essencial do acordo assumia o pressuposto de que os irlandeses de ambos os lados da fronteira podiam beneficiar de uma completamente livre circulação entre ambas as partes da ilha.

Mas, na verdade, todos os países europeus têm fronteiras com outros países europeus, salvo Chipre que é uma Ilha e só tem fronteira terrestre com a entidade cipriota turca. Fronteira aliás bem mais complicada que a da Irlanda, mas que parece não preocupar em nada os mandarins de Bruxelas…

Vários países europeus membros da UE têm fronteira entre si e vigiam-na. Por exemplo, ninguém pode, ou deve, atravessar a linha de fronteira fora dos postos fronteiriços autorizados;

Vários países europeus têm fronteira com outros países europeus que não são membros da UE e têm fronteiras vigiadas e, nalguns casos, até «muradas» como é o caso da Hungria…

Vários países europeus da UE têm fronteiras com países não europeus: a Espanha com Marrocos, a Grécia com a Turquia, por exemplo.

Todas estas fronteiras são «hard borders», mais ou menos rígidas, algumas militarizadas, algumas palco de manobras militares para intimidar a vizinhança (os países bálticos com a Rússia, por exemplo), mas todas vigiadas.

O que faz então a especificidade da fronteira Irlandesa? Bom, muito simplesmente o facto de a República da Irlanda ser membro da UE e o Reino Unido querer sair, o que implica reinstalar uma fronteira mais ou menos vigiada onde antes só havia uma linha imaginária.

Que os Irlandeses do sul, habituados a considerar sua toda a ilha, não gostem, entende-se; mas, alguém pode de boa-fé impor ao Reino Unido que desista de ter fronteiras, lá porque sai da UE?

Ambas as partes entendem que ter uma fronteira o mais ligeira possível é bom para ambas, mas que há uma fronteira, há, pelo simples facto de que há muitas décadas a Irlanda do Sul decidiu tornar-se independente e criar um novo país. Um novo país significa novas fronteiras…, ou não?

O que se entende mal é que a União Europeia faça desta abusiva imposição ao Reino Unido a pedra de toque da questão do Brexit. O que a União está a dizer é que não aceita que o Reino Unido tenha as suas fronteiras. Fronteira, só as dela… Ora isto é de facto inaceitável.

Mas, que o Sr. Tusk invoque a paz na Irlanda do Norte, parte constituinte do Reino Unido, como causa dessa intransigência, é de uma hipocrisia assustadora. A paz na Irlanda do Norte, tal como no País Basco em relação à Espanha ou na Córsega em relação à França, é uma questão interna dos Britânicos, não dos polacos. Os polacos que se preocupem com os seus próprios problemas, que parece que são muitos…

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