sábado, 21 de abril de 2012

O vexame que está preparado




A proposta de lei de revisão do Código de Trabalho que, por estes dias se discute na Assembleia da República contém, a respeito da questão dos feriados, uma norma assaz curiosa:

Artigo 9.º
Feriados religiosos

A eliminação dos feriados de Corpo de Deus e de 15 de Agosto, resultante da alteração efectuada pela presente lei ao n.º 1 do artigo 234.º do Código do Trabalho, apenas produz efeitos depois de cumpridos os mecanismos previstos na Concordata celebrada, em 18 de maio de 2004, entre a República Portuguesa e a Santa Sé e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 80/2004, de 16 de novembro.

O que quer isto dizer? Quer dizer que foi proposto aos deputados decretarem já a eliminação de dois feriados religiosos (o Corpo de Deus e a Assunção de Nossa Senhora, o que é feito no artigo 2º da mesma proposta de lei, ao alterar o artigo 234º do Código), mas sem que a respectiva decisão seja efectiva. A proposta é a de ser, nesta parte, aprovada uma lei sob condição suspensiva: os senhores deputados decidem, mas fica tudo em suspenso até que se conclua a pertinente revisão (ou ajustamento) da Concordata.

Nunca vi tal coisa. E, logo a 8 de Março, tomei posição a este respeito, escrevendo a alertar a Comissão de Segurança Social e Trabalho para coisa tão bizarra e obnóxia. Esta norma procura contornar uma inconstitucionalidade: se os feriados religiosos estão directamente fixados num instrumento de direito internacional público, regularmente ratificado e que vigora na ordem interna portuguesa (o artigo 30º da Concordata), não pode uma lei vir dispor diversamente contra o ali directamente estatuído, enquanto a Concordata não estiver revista nesse ponto. A habilidade da "condição suspensiva" não passa disso mesmo: uma habilidade; e uma habilidade inválida e inconsequente.

Deixemos, porém, a discussão jurídica de lado. Mesmo não havendo inconstitucionalidade, esta norma representaria um vexame para a Assembleia da República e uma indignidade para os deputados.

Porque é que o Governo a propôs? Porque ainda não concluiu o diálogo com a Santa Sé e ainda não sabe o que a Santa Sé aceitará, ou não. Mas, se fosse o Governo a legislar por decreto-lei, faria uma coisa destas? É evidente que não: concluiria normalmente a negociação diplomática com a Santa Sé e, depois de esta encerrada, decidiria, então, em conformidade com o acordado.

Esta esperteza saloia, algo sonsa, da "condição suspensiva" inscrita na proposta de lei traduz, assim, uma flagrante desconsideração e falta de respeito pelos deputados e pela Assembleia da República, «assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses» e sede, por excelência, do Poder Legislativo. Os deputados são olhados e tratados como funcionários manga-de-alpaca, uns meros tabeliães de turno, devidamente adestrados para irem adiantando o serviço sem saberem bem o que estão a decidir.

Os últimos dias, aliás, têm adensado as dúvidas e perplexidades sobre tudo isto. Primeiro, há abundante especulação sobre se haverá acordo, ou não, com a Igreja. Segundo, já se sabe que um dos feriados religiosos a eliminar não será provavelmente Assunção de Nossa Senhora (15 de Agosto), mas Todos-os-Santos (1 de Novembro), embora a proposta de lei mantenha uma previsão já ultrapassada.

Isto faz algum sentido? Nenhum! Já faltam poucos dias para sabermos se o(a)s deputado(a)s aceitam ser tratado(a)s como gansos de foie gras: carregar pela boca.

Sem comentários: