quinta-feira, 29 de março de 2012

Mandato: ter ou não ter


Não tenho mandato para eliminar o feriado do 1º de Dezembro. Não sei se alguém tem. Eu não tenho.

Se alguém, na campanha, tivesse apresentado a proposta de o abolir, ter-me-ia oposto. Teria feito campanha dura contra tal ideia. Com muitos outros, certamente. Estou em crer que essa seria a voz do CDS. E do PSD também.

O 1º de Dezembro não é um feriado qualquer. É o mais antigo dos feriados civis, o mais alto dos feriados patrióticos. É o feriado nacional que simboliza o valor mais elevado da vida colectiva: a nossa própria independência. É o verdadeiro dia de Portugal, na substância das coisas: sem ele, não seríamos.

Podia ser outra data? Podia. Numa História rica e longa, Portugal tem diversos acontecimentos em que teoricamente poderia centrar a evocação da independência nacional, duramente conquistada, várias vezes atacada e desafiada, algumas vezes perdida e recuperada. Mas, desde há mais de um século que a sua comemoração se estabilizou no 1º de Dezembro, referida ao último momento em que nos restaurámos livres e independentes. Este feriado atravessou estavelmente todos os regimes. Até hoje. Não pode ser apagado. 

É uma bizarria que um facto de tanta importância política e enorme carga simbólica seja tratado – e corra o risco de ser decidido – por uma quase incógnita alteração ao Código de Trabalho. No labirinto emaranhado de dezenas de alterações normativas, o 1º de Dezembro leva sumiço. E o ataque legislativo, embora mortal, é tão discreto que um distraído não daria por ele: o facto nem é explicitamente referido; só comparando a nova versão com a anterior se vê que o feriado da independência é liquidado. Será vergonha? Será respeito? Um caso ou outro entendem-se bem.

O Código do Trabalho pode regular, sem estranheza, as incidências laborais de diferentes factos, como os feriados e seus efeitos. Mas pode reduzir-se a um instrumento destes a própria continuação ou o apagamento de datas históricas do mais alto significado nacional? Como podem tratar-se ao jeito de sobras da tecnocracia datas de longa tradição, instituídas por acto legislativo solene? A tanto está reduzido o 1º de Dezembro – e o mesmo poderia dizer-se do 5 de Outubro.

Foi aberta concertação religiosa e diplomática quanto aos feriados de matriz religiosa – foi bem e está certo. Foi feita também concertação social – está certo, embora lamente (e discordo) do regime quanto às “pontes”, que é fraco, insuficiente e ao lado do problema. Mas o que foi feito da concertação política? Não houve – e não é porque não fosse pedida.

Estando em causa feriados civis, celebrando factos históricos ou sociais da maior relevância, quem foi ouvido? Ouviram-se militares, sociedades históricas, academias, universidades, historiadores, diplomatas, professores, agremiações republicanas e monárquicas, ligas e associações de combatentes, centros de cultura? Que respeito pela sociedade civil? Houve ao menos consultas cuidadas entre partidos e vasta e aberta auscultação dentro dos partidos, para avaliar sensibilidades e colher alternativas? Nada. Não houve.

Ora, a concertação política era imprescindível. Por duas razões principais: pela sensibilidade das datas; e para tratamento sério do mandato democrático.

Deputado eleito, o que diz o Manifesto Eleitoral do CDS? 

Prometi isto: «Feriados: garantir períodos de descanso sem afectar a produtividade – Em 2003, foi um Ministro da área do CDS que, pela primeira vez, abriu a possibilidade de se alterar as datas dos feriados, de forma a diminuir as pontes demasiado longas e aumentar a produtividade. É a solução que muitos dos nossos parceiros europeus têm e que permite períodos de descanso mais extensos sem reduzir a nossa produtividade e competitividade. É altura de, de forma consensual, respeitando os parceiros sociais e as várias sensibilidades espirituais e sociais envolvidas, retomar esta discussão, garantindo a alteração de alguns feriados – não todos – para a 2ª feira subsequente, juntando‐os ao dia de descanso obrigatório que é o Domingo.» Ou seja: nada de eliminação de feriados, antes rigorosa disciplina das pontes.

E o que é que apoiei no Programa do actual XIX Governo Constitucional? 

Isto: «Regulamentação do Código do Trabalho para garantir a possibilidade de alteração das datas de alguns feriados, de modo a diminuir as pontes demasiado longas e aumentar a produtividade.» Ou seja: nada de eliminação de feriados, mas rigorosa disciplina das pontes.

É. Na verdade, não tenho mandato para extinguir o feriado do 1º de Dezembro. Quanto ao dia, a minha consciência de português não quer. Quanto ao contexto da proposta, o que prometi não deixa. 

Não sei se alguém tem esse mandato. Eu não tenho.


José Ribeiro e Castro

[artigo publicado no jornal PÚBLICO, no dia 29 de Março de 2012]


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