segunda-feira, 21 de novembro de 2011

A primeira Tertúlia Diplomática, na Livraria Ferin

A embaixadora Katarzyna Skórzyńska é uma boa amiga: grande amiga de Portugal e boa amiga pessoal. Foi com ela, há coisa de ano e meio atrás, que promovi a constituição do Grupo de Amizade Portugal-Polónia, na Assembleia da República. Esperava-se a visita oficial do Presidente Lech Kaczyński, que já não chegou a vir: um brutal desastre de avião, entretanto ocorrido, matou tragicamente boa parte da elite polaca, incluindo o Presidente da República e sua mulher. Ficou aquele laço parlamentar, institucional, mais forte.

A Polónia e Portugal têm muitas coisas em comum. Não é só a letra P.

Conheci a Polónia e os polacos no final dos anos ’90, acompanhando uma peregrinação portuguesa a um Congresso Eucarístico, presidido por João Paulo II, o polaco Karol Wojtyła. Andei pelo sul: Wrocław, a belíssima Cracóvia, Nova Huta, Wadowice, Częstochowa e o seu Jasna Góra. Gostei muito. Achei os polacos parecidos connosco em muita coisa. E achei que não era só coincidência o facto de ambos os povos terem escolhido Nossa Senhora como protectora, sensivelmente na mesma altura: em meados do século XVII – nós, por Nossa Senhora da Conceição em Vila Viçosa, no período da Restauração, quando nos libertávamos do domínio espanhol; os polacos, acolhendo-se à imagem da Virgem Negra em Częstochowa, no período da Guerra do Dilúvio, quando sacudiram a ocupação sueca.
A nossa senhora de hoje é outra: é a embaixadora da Polónia. Estando nós no semestre de turno da presidência polaca do Conselho da União Europeia, não poderia haver melhor abertura para o nosso ciclo das Tertúlias Diplomáticas, promovido com a Livraria Ferin. Nesta iniciativa, que procura ser um pólo de convívio qualificado entre a comunidade diplomática e a comunidade política e cultural da nossa cidade, teremos – esperamos – deliciosas palestras e diálogos animados, ao modo das velhas tertúlias da melhor tradição da baixa lisboeta. Aqui, mensalmente, à volta da política internacional e, claro!, desse precioso objecto de culto: os livros!
A embaixadora Katarzyna Skórzyńska escolheu falar-nos de uma das maiores feridas da História da Europa do século XX: o Holocausto. «Jan Karski – Testemunha Polaca da Shoah» é o tema da sua palestra. E é de Jan Karski, falecido no ano 2000, o livro que apresentará no final.
Imagem célebre do levantamento do gueto de Varsóvia
Eu também estive lá – e recomendo a todos que vão. Quando andei pelo sul da Polónia, fui a Oświęcim – e, claro!, ali ao lado, ao campo do seu nome alemão, Auschwitz, e a outro terrível campo extensíssimo, Bierknau. Já lá voltei depois. Dói de ir lá. Não há nenhuma exploração espectacular do atroz, não há qualquer pornografia da violência. Os campos estão preservados em absoluta sobriedade e decência. Mas sente-se bem o que lá se passou. É possível  imaginar tudo, imaginar caras, imaginar sons, sentir os passos, preencher de gente destruída aquele vazio que é memória de imenso sofrimento e cruel brutalidade. E dói.
Quando lá fui da primeira vez, fiz um filme. Lembro-me que filmei enquanto entrava em Auschwitz pelo célebre portão “Arbeit macht frei”. Filmei mais percursos a andar entre as casamatas do campo. Quando vi o vídeo de regresso a casa, arrepiei-me (e vieram-me lágrimas aos olhos) com o som dos meus próprios passos na gravilha desses caminhos, como se eu fosse um soldado a marchar ou um condenado a arrastar-se. Cenário terrível! Memória necessária.

Por falar em coincidências, não resisto a falar do Jaime Wahnon, um colega meu de liceu e de Faculdade. É judeu. Éramos próximos. Estudávamos juntos muitas vezes. Dávamo-nos muito bem. Às tantas, pouco depois do 25 de Abril, desapareceu. Soubemos que tinha ido para Israel e, depois, perdemos-lhe o rasto e o contacto. A certa altura, muitos anos depois, alguém me disse que estaria pelo Canadá. E, há poucos anos, pela internet – tinha que ser! – é ele que me descobre no Parlamento Europeu, por causa de uma questão com Cabo Verde. Efectivamente, estava a viver no Canadá. Voltámos a contactar. E, agora, mandei-lhe, por graça, pela internet, um convite para esta primeira Tertúlia Diplomática.

Tocaram-me as palavras que logo me escreveu de volta, num português já um pouco enferrujado. São palavras que apresentam melhor do que eu faria o tema de que falará a embaixadora Katarzyna Skórzyńska:

Aproveito o teu convite para dar-te um forte abraço amigo que há muito não te tinha passado. Espero que esteja tudo bem contigo. Calculo que deves andar bem ocupado com discussões e negociações politicas com fim de tentar controlar a crise económica. Não deve ser fácil.
Agradeço também ter sido incluído no teu convite que infelizmente não poderei assistir, mas não falta vontade.
Emociona-me saber que a primeira sessão terá como tema a Shoah que foi há mais de 65 anos atrás, ainda que terá actualidade hoje. A minha mãe e avós escaparam-se do Holocausto, mas a família toda desapareceu.  Portugal deixou-os entrar em 1923. O único pais que nessa altura não necessitava vistos. A minha mãe já nasceu em Portugal. Os meus avós viviam então em Berlim após terem sido levados, quase como escravos, durante a primeira guerra, da Polónia, onde estavam a morrer de fome, para trabalhar na indústria de guerra alemã. Aí ficaram, mas aos poucos começaram a sentir o início do movimento nazi. Tiveram pressentimento dos horrores que os judeus iriam passar. Todos os Consulados a que foram não os queriam. Finalmente o Cônsul português em Berlim com quem falaram, disse-lhes que não havia impedimentos mas advertiu-os que Portugal era um pais pobre com revoluções cada semana, mas que havia sol 11 meses ao ano e as melhores laranjas. A minha avó que até então só havia sonhado com laranjas acabou por ser “comprada” com uma laranja. Graças a isso estou aqui hoje a escrever-te.
Conto-te uma pequena história interessante:
Sabemos que um tio da minha mãe foi um dos dirigentes  e combatente da resistência no Gueto de Będzin (Polónia) e aí faleceu. O filho dele (o único familiar que escapou) de jovem brincava à porta da sua casa aos berlindes com um amigo vizinho chamado Aaron. Aaron, que nasceu em Paris, voltava sempre com os pais para Będzin, onde eles nasceram. Ambos os miúdos escaparam Auschwitz porque ambos os pais, antes de serem levados, conseguiram entregar os filhos a famílias católicas locais. O meu primo que nunca mais soube do destino dos pais nem da irmã acabou por chegar  sozinho a Israel em 1947 a bordo do barco Exodus. Foi preso pelos Ingleses e foi enviado a um campo de refugiados na Ilha de Chipre conseguindo voltar a Israel um dia após a independência.
Só muitos anos depois o meu primo, numa palestre dada por um sobrevivente do Gueto de Będzin, veio a saber que o seu pai tinha sido um dos heróis do levantamento e que morreu não em Auschwitz mas durante a luta.
Terás talvez lido o livro do Jan Karski mas senão junto um link de um artigo que saiu em 2000 após o seu falecimento. É um bom resumo da história dele:
Aliás não devemos esquecer o heroísmo do nosso Aristides de Sousa Mendes, que sozinho salvou perto de 30.000 refugiados e sofreu por seu heroísmo um fim trágico. É bom notar que, ainda que o Salazar castigou o Aristides pelo seu acto, houve mais de 100.000 judeus que passaram e se salvaram por Lisboa entre os quais gente famosa e ilustres que devem a Portugal o seu agradecimento. Figueira da Foz foi durante um tempo um grande acampamento de refugiados. Entre muitos o famoso Rabino Menachem Schneerson de Nova Iorque (The Lubavitcher Rebbe). Ele passou vários meses em Portugal e chegou a Nova Iorque no navio Serpa Pinto da CCN. Portugal é pouco reconhecido por aquilo que fez.
Sim, o aspecto da participação de Portugal é de realçar. Claro que nos 35 anos que já não vivo aí essa participação deve ter sido já abordada. Sousa Mendes é um exemplo mas não deixa de ser importante e honroso toda as vidas que foram salvas. Há anos atrás fui a uma palestre em honra de judeus eminentes de Montreal que se salvaram na viagem do Serpa Pinto que foi abordado por um submarino alemão a 800 km da costa americana. Graças ao heroísmo do capitão o barco seguiu ainda que os passageiros esperavam nos barcos de salvação no alto mar enquanto o capitão negociava. Um dos convidados em bom português começou a noite dizendo "obrigado Portugal".

Mas tudo isto são passagens menores de uma tragédia maior que o mundo infelizmente quer esquecer ou até negar que existiu. Ainda há gente que presenciaram mas dentro de pouco será mais uma nota na história.

Mas alegro-me saber que a vossa primeira sessão tem o Holocausto como tema.

Para bem da humanidade não se pode esquecer. Havendo as condições pode bem repetir-se.
Desculpa este longo mail, mas, como escrevemos pouco, aproveitei a deixa.

E é com esta deixa do Jaime Wahnon que abro o apetite para a palestra de logo à tarde da senhora embaixadora da Polónia, Katarzyna Skórzyńska, e para o livro da sua testemunha, Jan Karski, com que estreia a nossa Tertúlia Diplomática.

José Ribeiro e Castro

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