terça-feira, 30 de julho de 2013

Personagens da crise (9): Engenheiro Felício Assobia, o electro-magnate


Foi um avô que sugeriu o nome que lhe deram: Felício, augúrio de que seria feliz. E, na verdade, a vida correu-lhe bem. Ascendeu por uma carreira política no Estado à chefia da eléctrica nacional e, pouco depois, era não só o gestor mais bem pago de todo o PSI-20, como ganhava já mais do que os presidentes da Apple e da Microsoft, dois gigantes mundiais. O avô tinha acertado: o petiz ia ser feliz.

Felício é, aliás, o único nome verdadeiro daqueles por que é conhecido. “Assobia” é um apelido que se lhe colou ao modo alentejano das alcunhas: ficou a dever-se à paixão pelas eólicas, aquelas ventoinhas que foram povoando de modo crescente os cumes e coroas dos nossos montes e montanhas. Como, a funcionar, fazem ruído ao modo de um assobio contínuo, o Felício ficou o “Assobia”. E “Engenheiro”, que efectivamente não é, foi tratamento que ganhou por, economista de formação, cedo se haver revelado, no dizer de colegas e subordinados, um talentoso “engenheiro de contas”: em qualquer situação que fosse, os outros podiam perder dinheiro, mas ele nunca. Tem uma forma de colocar as coisas em que sai sempre a ganhar. Uma arte!

É verdade que frequentou uma pós-graduação acelerada em Energia, ramo para onde a sua carreira às tantas derivou. E, uma vez mais aí, os seus talentos sobressaíram. Ao fim de poucos meses de estudos, agarrou nos princípios do electromagnetismo e estabeceu uma novíssima criação: o electro-magnate. Se, na célebre descoberta de William Sturgeon, os electro-magnetes ou electro-imãs criam um campo magnético a partir da corrente eléctrica, o electro-magnate de Assobia usa a electricidade para gerar um fortíssimo magnetismo de poder e dinheiro. 

Mas, como é bom de ver-se, esta descoberta é mais de economia – a sua formação de base – do que de engenharia em sentido próprio, ainda que possa considerar-se sem dúvida como a sua mais sofisticada criação na muito exigente área da “engenharia de contas”. Por outro lado, o achado dos princípios e regras do electro-magnate teve um destino bem diferente do invento de Sturgeon: enquanto os electros-magnetes se divulgaram, democratizaram e popularizaram por múltiplas aplicações desde o século XIX, o electro-magnate do Engenheiro Assobia reverteu para uso exclusivo e proveito próprio. 

Felício Assobia soube sempre movimentar-se, com uma noção muito clara do que sejam fins e menos aplicada do que sejam princípios. Fez carreira ascensional rápida, colada a gente influente, até ele próprio se tornar num dos mais poderosos do meio. Insinuou-se bem no espaço conhecido como Bloco Central, cultivando relações políticas e político-empresariais nos dois partidos dominantes. Ganhasse quem ganhasse, era certo e sabido: Assobia subia. E, no lado empresarial da sua carreira, Felício não perdeu tempo: empresas, só das maiores. “Mexe-se bem” – comentava-se. “Mexe-se muito bem.” 

Embora a sua carreira fosse de origem pública e bem ancorada nas amizades políticas, a verdade é que cedo se distinguiu por ter uma visão privada do interesse público, talento que o levou até à alta direcção de um dos bancos mais influentes do país e onde aplicou, aprofundou e desenvolveu os seus talentos de “engenharia de contas”. A partir daí, oscilou entre política e sector público (passando por todas as grandes empresas da área da energia: petróleos, gás e electricidade) e sector privado (nas mesmas empresas da energia, que se foram privatizando). Há quem o considere um ás como PPP, isto é, um político público-privado.

A crise financeira foi apanhá-lo na liderança da electricidade, onde se consolidou verdadeiramente como aquele electro-magnate que descortinara na sua pós-graduação acelerada. E a crise, na verdade, não o afectou. Resiste como ninguém aos tempos de adversidade. A polémica das chamadas “rendas excessivas” resvala por ele como sobre oleado bem lubrificado. Até a troika não consegue vencê-lo. E, quando tudo cai e as falências se multiplicam, a eléctrica nacional, sob a hábil condução do Engenheiro Assobia conseguiu aumentos record dos seus lucros. Houve logo quem dissesse que era o frutuoso resultado do novo IRR = Imposto Rendeiro sobre a Recessão, uma nova aplicação da sua brilhante “engenharia de contas”. Más línguas! Tudo invejas e más línguas.

Bom conceito têm dele os chineses, que adquiriram posição de domínio na empresa. Estimam-no como poucos: vêem-no como um grão-mestre de Guanxi (conhecimentos, contactos, influência), conceito-chave na cultura empresarial chinesa. O nosso Assobia é, na verdade, um campeão de Guanxi, seja em Portugal, seja na Europa ou noutros lugares. E, após a privatização total da empresa, não deixou de o assinalar na rápida recomposição do Conselho Superior da eléctrica, tornado em mostrador e alavanca de Guanxi, protector contra aborrecimentos e contra-tempos, potenciador de novas oportunidades. O Engenheiro Felício Assobia sabe-a toda.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Mais um défice para pagarmos...

Na electricidade, o défice tarifário voltou a dar à costa. Não podia deixar de ser. Ao contrário de quem procura desvalorizar o problema, a questão volta a atormentar. Agora, uma derrapagem de mais 200 milhões, a somar aos 500 milhões que eram admitidos. São mais 700 milhões que vamos varrendo para debaixo do tapete…

Como é bem sabido de todos os que não se deixam enganar, o défice tarifário vai derrapar todos os anos, pela própria forma como ele é gerado. 

Tem imensa piada aquela em que alguém se pôs a “explicar” de que houve uma poupança de 140 milhões de euros porque o preço da pool ibérica foi mais baixo do que se esperava, como se o valor a que se paga à PRE (Produção em Regime Especial) tenha a ver alguma coisa com a pool ! Ele é fixo e determinado pela tarifa, que hoje ronda os 110 €/MWh, tendo a eólica o valor de 96,6€/MWh, muito longe dos 60€/MWh apregoados. E querem instalar mais 500 ou 1000 MW eólicos!... Tudo isto, conhecendo bem (como sabem) os altos sobrecustos estruturais inerentes, devido a que a potência instalada intermitente de despacho prioritário já ultrapassa a potência de pico do consumo nocturno. Por outras palavras: estaremos a exportar necessariamente a preços muito descontados ou mesmo nulos para Espanha, ajudando os nossos vizinhos a resolver o seu défice tarifário com os subsídios pagos pelos nossos pequenos consumidores, isto é, domésticos e as PMEs que vão fechando umas atrás das outras. 

É de loucos. Estamos a “sifonar” défice de Espanha para cá.


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O problema é que, se há muita energia renovável, o sobrecusto é muito importante, e multiplica-se por um valor muito elevado. Por outro lado, também aumenta a compensação pela perda das receitas da Produção em Regime Ordinário (Custos de Manutenção dos Equilíbrios Contratuais - os "CMEC" - e Contratos de Aquisição de Energia - os "CAE"). Se a produção renovável é baixa (essencialmente quando temos anos secos, porque a eólica é anualmente bastante regular), temos mais produção térmica em condições subóptimas e por isso mais cara, e ao mesmo tempo a compensação das receitas perdidas da hídrica para as barragens mais que amortizadas (um escândalo!). Por isso… presos por ter cão e presos por não ter cão.

Tive a informação de Bruxelas de que o caso dos CMEC vai ser apreciado na Comissão na primeira ou segunda reunião de Setembro. E a decisão deverá ser a abertura de um procedimento de investigação aprofundado.

O que é particularmente chocante é que, ao mesmo tempo que é anunciado o aumento “imprevisto” do défice tarifário, é anunciado um aumento dos lucros da EDP para um valor record! E ninguém faz perguntas? 

Como pode a empresa incumbente aumentar os lucros e, ao mesmo tempo, aumentar a dívida dos consumidores numa matéria regulada?! Desperdiçámos a enorme vantagem de uma energia muito barata resultante do plano Ferreira Dias (em 1971 a nossa electricidade era 70 % de origem hídrica) com o disparate da política seguida no tempo do Sócrates. E que, aparentemente, é para continuar.

Somos um país de cordeirinhos e de anjinhos.

Pedro Sampaio Nunes

domingo, 28 de julho de 2013

Personagens da crise (8): Florinda e Florindo, os sábios da TV


O facto era já conhecido há algumas décadas. Mas foi a televisão que, nos nossos dias, o consagrou e popularizou.

Quase um século de aturada investigação nas melhores escolas de pensamento das áreas de Ciência Política e Economia Política, com particular incidência no domínio das Finanças Públicas, estabeleceram-no com grande segurança: os ministros ficam particularmente sábios depois de deixarem de o ser. E este facto é particularmente notório e relevante no domínio das Finanças – ou da Fazenda, como antigamente se dizia.

As escolas de Viena, de Londres e de Chicago haviam já consagrado o chamado “PEP - Postulado de Exercício Pretérito”, tendo-o consolidado a partir da observação empírica de casos sucessivos: “independentemente do sucesso ou insucesso da respectiva acção governativa, todo(a) o(a) ministro(a) se torna sábio(a) e absolutamente certeiro(a) depois de cessar funções.” 

A evidência, que as melhores escolas conseguiram recolher e analisar na área das Finanças Públicas, firmou-se como absolutamente sólida e inequívoca. Alguns investigadores chegaram mesmo a propor que o grau de sabedoria póstuma dos ministros varia exactamente na razão inversa do sucesso da respectiva acção ministerial: "quanto maior fosse o fracasso, maior seria a sabedoria resultante; e quanto maior o sucesso, menor o incremento de sabedoria posterior."  Este outro axioma, contudo, também conhecido como o “PSI - Paradoxo da Sabedoria Inversa”, ainda não conheceu o mesmo grau de reconhecimento académico. Mantém-se sob estudo.

Mas foi a moderna cultura mediática que retirou o PEP da mera intimidade universitária, elevando-o à categoria de evidência televisiva. A comentocracia reinante, voraz como ninguém, consome ex-ministros como quem devora pistachos. Não há canal de sinal aberto ou codificado, por cabo ou satélite, que não disponha de uma mão cheia de ex-ministros. E, tratando-se de matérias que têm tanto de obscuras como de atraentes, como os assuntos de dinheiro e finanças, os ex-ministros das Finanças tornaram-se cobiçada presença obrigatória nos écrans.

Florinda e Florindo apareceram assim nas nossas casas. E, com o aprofundar da crise, rapidamente se tornaram celebridades da TV. 

E que bom tem sido! Nunca se vira, nem ouvira, tanta sabedoria junta: o défice resolve-se num instante, os impostos podem ser todos aliviados, a dívida já não atormenta, a despesa deixou de pesar, o crescimento volta quando se quer, a evasão fiscal nunca mais assombra, o investimento público não constitui problema, a Comissão Europeia e o BCE tudo entendem, o FMI é um compincha, a troika não passa de um tigre de papel.

Ouvi-los é uma constante fonte de água fresca. Como outra face da moeda do mesmo PEP - Postulado de Exercício Pretérito, os ministros das Finanças em exercício têm sempre as orelhas a arder e certificado garantido de burros, ignorantes e incompetentes. Mas não se queixem muito: mal saem ou vierem a sair, viram sábios de repente, tanto ou mais que Florinda e Florindo.

Alguns lamentam, todavia, que Florinda e Florindo não tenham aplicado tanta ciência quando exerceram responsabilidades governativas. Poderiam talvez, é certo, ter-nos poupado ao ingresso na crise. Mas que importância tem isso? Se assim tivesse sido, ter-nos-iam furtado o privilégio único de, hoje, podermos usufruir de tamanha sabedoria em directo e ao vivo pela TV.

Personagens da crise (7): Aninhas passionária, a revolucionária do “quartier”


Aninhas foi filha única. Talvez por isso, nunca gostou de ser contrariada. Não teve com quem dividir quarto, nem roupas, nem brinquedos. Não gostava de ser contrariada, mas tinha espírito de contradição: era do contra. E gostava de protestar. Sempre gostou muito de protestar. As suas birras eram épicas. Muitas vezes, levava a sua avante. 

Criada só com a mãe, não tinha figuras masculinas em casa. O avô paterno morrera novo e, além da mãe, a pessoa com que convivia mais era com a avó desse lado, a avó Gertrudes. Foi essa avó que começou a chamá-la de “Passionária”, impressionada com a forma como Aninhas crescia cada vez mais assertiva e pelos discursos inflamados que, ainda muito criança, fazia às bonecas. Não havia filme histórico na televisão que não acabasse em discurso heróico: sentava as bonecas à sua frente no quarto e desatava em oratória inspirada.

Curiosa, Aninhas, quis saber quem era a “Passionária”. Foi assim que chegou a Dolores Ibárruri, a lendária líder comunista espanhola. E, fosse por isso ou outra razão qualquer, confessou-se comunista e revolucionária. A avó, viúva de um legionário salazarista, ia morrendo.

A nossa Aninhas, comunista e revolucionária, não esteve em Estalinegrado – viu nos filmes. Nem esteve na Guerra Civil espanhola – leu na enciclopédia. Também não esteve no Vietnam, nem na Argélia, nem na Sierra Maestra, nem no Chile de Allende – foi lendo em livros, revistas e jornais. Por cá, não andou em lutas operárias, mas nalgumas crises estudantis. E do Maio de 68, o que sabe contou-lhe a mãe que, ela sim, andou pelo Quartier Latin.

Uma vida de alguns excessos fizeram-na envelhecer mais depressa. Fumou umas ganzas, mas drogas mais pesadas não era com ela. Salvou-se por isso. Dois amigos dessas andanças morreram novos: um de overdose, outro com uma hepatite fulminante. Nos tempos de estudante, passou pelo PC, mas rapidamente mergulhou na extrema-esquerda. Ela diz que não gostou da rigidez do partido; os ex-camaradas comunistas contam que era mimada e se deu mal por, ali, não ser o centro do mundo.

Achava-se graça e gostava de se ouvir. Era certamente lembrança daqueles dias precoces em que as bonecas sempre ouviam disciplinadamente os seus inflamados discursos de criança. Tornou-se arrogante e durona. A sua palavra era feroz, manejando adjectivos como flechas. Como sempre, não gostava de ser contrariada na resposta. Umas vezes, amuava. Outras, reagia com violência.

Para Aninhas passionária, a crise tem sempre uma explicação: a ruptura do modo de produção capitalista. Não sabia explicar bem o que isso era, mas era o que sempre dizia. Desemprego? Ruptura do modo de produção capitalista. Crise do euro? Ruptura do modo de produção capitalista. Endividamento? Ruptura do modo de produção capitalista. Violência no mundo árabe? Ruptura do modo de produção capitalista. Demasiadas reprovações nos exames? Ruptura do modo de produção capitalista. Febre aftosa? Ruptura do modo de produção capitalista. Chuvas torrenciais e cheias? Ruptura do modo de produção capitalista.

E, se essa é a causa constante da crise, a solução é uma só: a REVOLUÇÃO, a revolução universal. Entre discursos e interpelações, arremetidas verbais, desfiles e outros repentes, é o que a todos e para tudo promete e recomenda: Revolução! Para onde? Para o Estado revolucionário. Porquê? Porque sim. 

E se a a própria Revolução - perguntam-lhe - entrar em crise? A culpa será da ruptura do modo de produção capitalista. E o remédio? Mais Revolução, pois claro! E ainda mais universal.

Em longos serões e animadas noitadas, entre "jolas" e "mojitos", champanhe e sangria de frutos vermelhos, é o que prega por todo o “quartier”  a nossa Aninhas passionária, com aquela mesma paixão que impressionara já a avó Gertrudes, antes de quase a matar de desgosto. Um caso!

Personagens da crise (6): Lenine Praxedes, o herói de Estalinegrado

Há quem assegure tê-lo visto já no cerco de Madrid, em 1936, enfrentando as tropas franquistas, logo no início da Guerra Civil de Espanha. Mas não só ele nunca o disse, como não é provável que tenha sido assim – não teria idade para isso. Essa é apenas uma das muitas lendas que dele se contam, em surdina, em tascas, leitarias e cafés ou por travessas, becos e vielas de bairros operários e doutros recantos de mil revoluções reais e imaginadas.

Certo, certo é que esteve em Estalinegrado, em combate de vida ou de morte na URSS do camarada José Estaline, resistindo ao avanço das divisões nazis e virando nessa heróica batalha de 1943 não só a sorte da frente Leste, mas o destino de toda a II Grande Guerra, segundo a narrativa vermelha. Jovem comunista e revolucionário, filho de operários comunistas, Lenine Praxedes continuou com os camaradas soviéticos depois do triunfo de Estalinegrado, acompanhando os avanços pela Ucrânia, pela Polónia e pela Checoslováquia, até irromperem pela Alemanha. Esteve na conquista de Berlim em 1945. Viu cair Hitler. Cuspiu de raiva e de alívio no bunker  do seu suicídio.

Depois dessas campanhas, Praxedes regressou a Portugal. Entrou e saiu da clandestinidade. Teve problemas com a PIDE, que herdou a sua ficha da anterior PVDE. Conheceu as suas cadeias, no Aljube, em Caxias e em Peniche. Não houve revolta operária em que não participasse: no Barreiro, em Aljustrel, na Marinha Grande, na Covilhã, em Lisboa. Mineiros, vidreiros, operários têxteis, metalúrgicos, ferroviários, rurais alentejanos, todos conhecem os feitos de Lenine Praxedes e alimentaram a sua lenda. O 25 de Abril encontrou-o em Caxias, desfilou no primeiro 1º de Maio, marco fundador de todas as memórias, socialistas, comunistas e, para os maledicentes, sociais-fascistas.

A fórmula fundamental do nosso Lenine Praxedes ficou desses tempos heróicos de árduas lutas e de combates totais: “Fascismo, nunca mais!”   Passaram os anos, viraram as décadas, mudou o próprio século e a fórmula foi e é sempre a mesma: “Fascismo, nunca mais!”   Bem vistas as coisas, até o milénio mudou, mas não a fórmula-chave de Lenine Praxedes: “Fascismo, nunca mais!”

Hoje, diante da troika, revê-se em Estalinegrado, debaixo dos propriamente ditos bombardeamentos nazis, e responde: “Fascismo, nunca mais!” Se lhe perguntam pela bancarrota, não hesita um segundo: “Fascismo, nunca mais!” Se o questionam por falências e desemprego, dispara: “Fascismo, nunca mais!” Se lhe perguntam pela dívida: “Fascismo, nunca mais!” Se a questão é a despesa pública ou o défice do Estado: “Fascismo, nunca mais!” Se não há quem nos financie os custos e os hábitos, o punho esquerdo ergue-se fechado com o mesmo vigor de sempre: “Fascismo, nunca mais!” Se a economia está em cacos e as finanças em ruínas, que venha a greve geral: “Fascismo, nunca mais!”

Um dia, logo em 2003, consta que o levaram a ver o filme “Adeus, Lenine”. Lenine Praxedes não gostou e fez que não entendeu. E continua fiel ao discurso, às crenças e aos estribilhos e palavras de ordem de sempre. Atravessa as crises com o que a vida lhe ensinou, com o que sabe porque alimentou a sua vida: “Fascismo, nunca mais!” 

Em matéria de caminhos, de saídas e de alternativas diante das curvas, ardis, labirintos e precipícios da crise do euro, da Europa e do país, não servirá para muito. Mas infunde respeito. E mantém as hostes dos seus. 

De punho esquerdo fechado e erguido, lá vem Lenine Praxedes, velho, orgulhoso e lendário, com o estribilho de sempre: “Fascismo, nunca mais!” Em Estalinegrado, venceu tudo. 

Personagens da crise (5): Toino Flausino, o totomutualista europeu, também conhecido pelo Toninho Jeitoso

Os tempos de crise favorecem figuras assim. A verdade é que existem sempre e estão-se tornando cada vez mais frequentes e abundantes. Há até quem acuse que uma crise tão profunda só pode ter resultado da abundância, um pouco por todo o lado, de personagens com este estilo e perfil. A Crisologia ensina, porém, que prosperam ainda mais com a própria crise: a crise, quando nasce, não é para todos.

Toino Flausino é um desses. Nunca se rende, nunca se verga… à realidade. Por mais que ameace chuva, anuncia sempre sol radioso. Por mais que a tempestade sopre, imagina-se no El Dorado. Por mais que tudo escasseie, faz como se tivesse à mão recursos abundantes. 

A crise, quanto mais profunda, mais chama oradores assim aos palcos. Cresce a disponibilidade para voltar a ouvir sons de antanho, música de outros tempos, palavras de eterna prosperidade – e continuar a alimentar a negação, a recusa da dureza dos dias. É como quem pensa: “se a gente nega, não dói.” Não passa, mas parece que alivia.

Há quem censure a Toino Flausino aparecer a liderar aqueles cujo líder anterior a todos mergulhou na crise e na bancarrota. Ele não se atrapalha: é o agente branqueador e aprecia esse papel. Ajuda a esquecer. Mesmo que seja só fingir esquecer, os tempos estão por tudo. Ao repetir o mesmo discurso de promessas e ilusões, de fantasias e quimeras, que multiplicou despesa, défice e dívida, os ecos fazem de conta que é coisa nova e, agora sim, verdadeiramente salvífica. 

Entusiasma-se a acusar aqueles que “não cumprem a palavra”, embora omita esse pequeno pormenor de ficar a ideia de a sua “palavra” também não ser para levar muito a sério e que não estaria em condições de a cumprir, se se visse em posição de ter de o fazer. Excita-se a recomendar aos seus adeptos que “nunca prometam o que não estejam em condições de cumprir”, mas, ele mesmo, consome os dias a desdobrar-se em tômbolas maravilhosas de infinitos prodígios.

Filho do longo rosário socialista – “a gente gasta, os outros pagam” – enriqueceu o pensamento europeu moderno com uma nova criação que tudo cura, tudo salva, tudo melhora: é o totomutualismo europeu. É uma espécie de Euromilhões, mas sem necessidade de comprar bilhete.

A fórmula é verdadeiramente milagrosa:  a despesa pública é "mutualizada" (a gente gasta, mas quem paga são os impostos dos outros europeus); o défice é "mutualizado" (a gente gasta a mais, mas quem paga são os outros países da União Europeia); a dívida pública é "mutualizada" (a gente endividou-se, mas são eles que pagam); até o desemprego é "mutualizado" (a gente não cria trabalho, mas eles pagam os nossos subsídios). 

Brilhante! Genial! Toino é mesmo um rato! Como é que a gente não se lembrou disto mais cedo? [Há, porém, uns desmancha-prazeres que acham que sim: que já nos tínhamos lembrado disto e que foi por isso mesmo que teríamos chegado ao buraco onde estamos. Gente de má-fé.]

A magia da coisa soa tão brilhante, que já pôs estudiosos a ampliar a incidência do totomutualismo europeu. É na educação: eles estudam e nós temos as notas e os graus, avançando sem esforço e aos magotes não só para doutores, mas para doutorados, não só para mestres, mas para catedráticos – é a "mutualização" do conhecimento. É na saúde: a gente tosse, eles têm as dores e as febres; até os espirros são deles – é a "mutualização" das enfermidades. É na segurança social: com contas certas ou totalmente arruinadas, as pensões de reforma são sempre generosas e garantidas; pagam, pois claro!, os amigos europeus - é a "mutualização" da previdência. E é na segurança e defesa: que venham bandidos e leis permissivas, que os custos humanos e materiais de manter a ordem e a liberdade serão todos dos nossos parceiros europeus – é a "mutualização" da liberdade, segurança e justiça. 

A coisa parece boa, muito boa mesma. Pelo menos, para nós. Já para os outros, a vantagem não é tão certa. Mas, quando lhe levantam essa dúvida, Toino Flausino tem resposta pronta: “Então, aderimos à Europa para quê!?” Ele tem jeito para isto. Razão por que o chamam também de Toninho Jeitoso.

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Avivar a memória

 
Com estas novidades todas do segundo fôlego à coligação, da recomposição e remodelação do Governo, do novo ciclo e da moção de confiança, convém não nos esquecermos do essencial. Não nos distrairmos, nem perdermos tempo.

Retomando o fio à meada, a 7.ª avaliação trimestral da troika foi  particularmente problemática e demorada. E, com isto tudo da crise política, que nos levou um mês inteiro, a 8.ª avaliação foi adiada e encavalitou-se com a 9.ª avaliação, a pedido do Governo, indo ambas decorrer em Setembro. 

Aí, em Setembro, mais ou menos em cima das eleições autárquicas, o essencial que ainda falta decidir ficará definido para o Orçamento de 2014, nomeadamente no que toca à redução da despesa pública. E a coligação PSD/CDS garantiu, antecipadamente, ao Presidente da República a coesão indispensável a este Orçamento 2014, tal como consta da comunicação de 21de Julho que deu luz verde ao "novo ciclo": 
«É essencial que os dois partidos que integram a coligação estejam sintonizados, de forma duradoura e inequívoca, para concluir, com êxito, o Programa de Assistência Financeira e o País regressar aos mercados, por forma a assegurar o normal financiamento do Estado e da economia. Isto implica, desde logo, a aprovação e entrada em vigor do Orçamento do Estado em janeiro de 2014
Hoje, uma notícia da Grécia vem avivar-nos a memória quanto aos facts of life: "Grécia aprova reformas de urgência para receber dinheiro da Troika".

Importa não perdermos tempo. Já se perdeu demasiado. 

Desde o princípio do ano que se fala nisto, na esteira do célebre relatório do FMI. E ainda não sabemos nada a sério, nem discutimos nada com cabeça, tronco e membros.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Piruetas no arame

Nunca vi, no meio da mais plácida e aparente tranquilidade, uma crise tão perigosa quanto a que acabamos de viver. Perigosíssima! 

Muito perigosa mesmo. As reacções dos mercados, ora para baixo, ora para cima, falam por si.

Piruetas no arame à beira do abismo. Assim ficará registada nos anais esta deplorável "crise de Julho". 

Deu para ver o pior da "política". Começou no segundo dia do mês, 2 de Julho. Acabará no penúltimo, a 30 de Julho, com a moção de confiança.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Adopção e dualidade pai/mãe

Também no âmbito do debate aberto pelo projecto de lei n.º 278/XII, da autoria de deputados do PS, querendo consagrar a chamada "co-adopção homossexual", escrevi este artigo para o jornal DIÁRIO DE NOTÍCIAS e a cujo recorte pode aceder também aqui.


Adopção e dualidade pai/mãe 
- por José Ribeiro e Castro
Adoptar não é cuidar de. Adoptar é estabelecer maternidade e/ou paternidade, fixar juridicamente filiação, por cima da filiação natural e à semelhança desta, que é apagada e substituída por aquela.  
Muitas crianças são cuidadas e criadas por pessoas que não são os seus pais – algumas pelo maior infortúnio, outras nem por isso. Umas são-no transitoriamente, durante certo período da vida; outras de forma duradoura, que pode cobrir todo o resto da menoridade. Nem falo de instituições, a que convém, aliás, fazer mais justiça do que levianamente se ouve e lê por estes dias. Mas falo de crianças criadas por avós, ou por tios, ou por padrinhos ou por irmãos – ou até por amigos da família, que se afeiçoaram e a que são particularmente chegadas.  
Nesses lares, podem ser só dois a cuidar, ou só um, ou quatro, ou cinco, ou mais. E podem ser lares com figuras adultas masculinas e femininas, sendo uma só, ou duas, ou em maior número: três tias; dois avós e um tio; duas irmãs mais velhas; três irmãos mais velhos; etc. Não são pais, nem mães. São cuidadores e provedores. Está bem. Está até muito bem, servindo o interesse superior da criança. Não adoptaram, nem adoptarão. Sempre assim foi, sempre assim será.

O drama representado no projecto da “co-adopção”do PS é pura tentativa de manipulação. Há algumas crianças que vivem em lares de uniões homossexuais – e isso pode ser discutido, conhecido e avaliado, como situações concretas. Mas não é disso que se trata na adopção: na adopção, trata-se de fixar filiação.  
Nenhuma criança que viva numa determinada casa (incluindo com uma união homossexual), em ambiente familiarmente enquadrado e socialmente estável, é violentamente subtraída a essa casa porque o seu pai ou a sua mãe, que ali vive, faleceu. Esta situação é ficção que não existe. E, se acontecesse, contra o melhor interesse da criança, seria denunciada, reprimida e corrigida. 
Se, porém, sobrevém um conflito familiar pela curadoria ou tutela da criança é porque a situação não seria tão estável quanto se quer figurar – e o superior interesse da criança merecerá sempre que o caso seja ponderado. E, em qualquer caso, como já tem sido dito e escrito, existem na lei suficientes instrumentos jurídicos para prevenir qualquer abuso ou usurpação afectiva contrária aos desejos do pai ou da mãe da criança ou aos sentimentos do menor, assegurando a estabilidade da sua criação e protegendo sempre o seu melhor interesse. Sabe-o qualquer estudante de Direito; muito mais o sabem pessoas com as superiores qualificações dos doutores Isabel Moreira, Delgado Alves e Elza Pais.

Não deixa de ser sintomático que o projecto da “co-adopção” homossexual fosse discutido e votado na Assembleia da República no Dia Internacional contra a Homofobia. Mostrou ao que vem: não ao interesse da criança, mas a uma guerra de adultos. A discussão foi bem emblemática do dedo em riste, do início de uma perseguição contra a dita “homofobia” – isto é, contra aqueles que sabem que todos somos filhos de pai e mãe e que pensam (como eu) que está bem assim. 
Nunca fui homofóbico, nem tenciono vir a ser. Não me impressionam, todavia, os extremismos da agenda gay. Afirmar a evidência da dualidade parental de pai e mãe e protegê-la no superior interesse da criança e da identidade pessoal de cada um não tem nada de homofóbico, unicamente de verdade humana. 
Por mais que se grite o contrário, é assim – é mesmo assim. Azul é sempre azul, mesmo quando se grita que é verde. Todos, em inteira igualdade, temos direito a pai e mãe. Não pode ser apagado, nem proibido. «Isto não faz sentido. Salta aos olhos.»

in DIÁRIO DE NOTÍCIAS, de 24-jul-2013

[NOTA: com votação final global marcada para 24 de Julho, a 1ª Comissão Parlamentar votou, no dia 23 de Julho, o adiamento da matéria para o início da 3ª sessão legislativa em Setembro.]

Pai e mãe, homem e mulher

Ainda dentro do debate sobre a "co-adopção homossexual", aberto pelo projecto de lei n.º 278/XII, da autoria de deputados do PS, escrevi mais este pequeno artigo que foi hoje publicado no CORREIO DA MANHÃ e a cujo recorte pode aceder aqui.

Pai e mãe, homem e mulher
     - por José Ribeiro e Castro

Juro que não fui eu. Não sei como seríamos se nos reproduzíssemos sem feminino e masculino em auto-clonagem, ou tivéssemos três ou cinco sexos diferentes alimentando variados cruzamentos. Não sei se, assim, seria, ou não, melhor do que é. Sei que não é. Todos nascemos de homem e mulher, todos temos pai e mãe. Se isto for, para os extremistas, homofobia, não me culpem a mim, que não fui eu. 
De sexo masculino, somos aptos a ser pais. De sexo feminino, aptas a ser mães. Podemos escolher ser pais ou ser mães. Salvo doença de infertilidade, todos o podemos ser, embora nem todos escolhamos sê-lo. Mas não escolhemos ter nascido de pai e de mãe, como não escolhemos ter nascido. Não tem escolha. Nascemos de pai e mãe, ponto. Tudo o mais é especulação fantástica, metafísica de pechisbeque, divagação delirante.  
Mesmo que, em desafio radical às leis, um louco produzisse em laboratório, fora de qualquer projecto parental, embrião que implantasse em útero de ocasião, criando um bebé absolutamente anónimo, essa criança gerada em chanfrada engenharia genética teria igualmente pai e mãe biológicos. Seria fruto de masculino e de feminino. Teria, como todos, aspiração e direito a conhecer pai e mãe. Deveria poder ou descobrir a família natural, ou enquadrar-se em família adoptiva à imagem daquela. Somos filhos de homem e mulher. 
Para não agir violentamente contra a identidade pessoal, a adopção e a co-adopção não podem apagar a dualidade essencial de pai e mãe.


[NOTA: com votação final global marcada para 24 de Julho, a 1ª Comissão Parlamentar votou, no dia 23 de Julho, o adiamento da matéria para o início da 3ª sessão legislativa em Setembro.]

O novo ciclo


Fala-se dele há algum tempo. Para a nossa índole, podia chamar-se o Ciclo Sebastião.

Esse outro ciclo já tinha sido anunciado por Vítor Gaspar e Álvaro Santos Pereira, os dois ministros que entretanto saíram: Gaspar no início da crise política, Álvaro agora no fim. Em 23 de Maio, Gaspar, com Álvaro ao lado, anunciara: «Chegou o momento do investimento.» E não fosse não ser entendido, sublinhou: «Repito, depois do ajustamento chegou o momento do investimento.» Também os indicadores mais positivos e animadores da evolução da economia que o primeiro-ministro (como outros) referiu no último debate do estado da Nação dever-se-ão já a essa mudança, abrindo nova conjuntura de oportunidade.

Há muito igualmente que comentadores e analistas requeriam esse sinal, mais virado para a economia. Algumas declarações europeias acenavam com a abertura de janelas para essa alameda. E quer o CDS, quer dentro do PSD, a viragem para um novo ciclo era reclamada crescentemente, de forma mais ou menos aberta.

Agora, aí está. Chegou.

No seu discurso de 21 de Julho, o Presidente da República apontou claramente para aí: 
«Afigura-se igualmente fundamental que todo o Governo assuma como prioridade o reforço da aplicação de medidas de relançamento da economia e de combate ao desemprego. Num quadro de exigência e rigor, o Governo deverá aprofundar as medidas de estímulo ao investimento e de captação do investimento externo, onde se incluem a estabilidade e a previsibilidade do sistema fiscal.»
Como orquestra afinada, as imediatas reacções do PSD (Pedro Pinto) e CDS (Nuno Melo) responderam em perfeita sintonia ao discurso presidencial, com a mesma palavra-passe: "novo ciclo". O anúncio PSD/CDS é de «diálogo» e «novo ciclo, mais virado para a economia, sustentabilidade e criação de emprego».

Esse novo ciclo começa hoje, simbolizando-se na posse da remodelação governamental que o assinala. E o começo será sem dúvida acentuado e glosado, dentro de dias, com a moção de confiança parlamentar, que, de modo inédito, aliás, foi o próprio Presidente da República a anunciar: «o Governo irá solicitar à Assembleia da Republica a aprovação de uma moção de confiança e aí explicitará as principais linhas de política económica e social até ao final da legislatura.»

Curiosamente, coincidência ou não, são todos os ministros do CDS que tomam posse: o líder do partido, Paulo Portas, que passa a vice-primeiro-ministro; António Pires de Lima, que entra para a Economia; Assunção Cristas, que se recentra na Agricultura e no Mar; e Pedro Mota Soares, que junta o Emprego à Segurança Social. Os comentadores assinalam que a economia fica por conta do CDS. E, vistas as coisas, também a concertação social. Do PSD, apenas as entradas de Rui Machete e Jorge Moreira da Silva para o lugar deixado por Paulo Portas e a vaga aberta pelo desdobramento dos anteriores ministérios de Álvaro Santos Pereira (energia) e Assunção Cristas (ambiente).

Ou seja, o novo ciclo parece CDS. Só pode desejar-se boa sorte.

A chave, porém, além do bom desempenho dos ministros, estará nos 5 mandamentos deste segundo fôlego que Cavaco Silva decidiu dar, como já especifiquei noutro post. E estará sobretudo no essencial de que se fazem as coligações e que, no primeiro ciclo, foi faltando cada vez mais: «garantias reforçadas de coesão e solidez da coligação partidária até ao final da legislatura.»

terça-feira, 23 de julho de 2013

Pai e mãe e a “co-adopção” homossexual

Ainda no âmbito do debate aberto pelo projecto de lei n.º 278/XII, da autoria de deputados do PS, querendo consagrar a chamada "co-adopção homossexual", escrevi este artigo para o jornal PÚBLICO e a cujo recorte pode aceder também aqui.



Pai e mãe e a “co-adopção” homossexual
                   - por José Ribeiro e Castro

Houve quem falasse inapropriadamente de “totalitarismo” a respeito das críticas à “co-adopção” homossexual. Mas já que se falou nisso, convém ter presente que a convicção de que todo o poder está na ponta da caneta do legislador é, essa sim, em si mesma, uma convicção de matriz totalitária. 
A ideia de que o Estado pode criar a realidade através do poder da lei é um delírio perigoso, que nos coloca no cimo da rampa de todas as derivas totalitárias. O Direito é fonte de justiça quando limitado pela Humanidade ou subordinado ao Direito Natural, mas fonte de abusos e violências quando se arvora ilimitada omnipotência. As maiores violências começaram sempre, aliás, na própria lei e seu abuso: a pena de morte, a prisão perpétua, a escravatura, tortura, perseguição, expulsões arbitrárias. 
As leis de Direito Privado são leis matricialmente narrativas: não conformam a natureza, conformam-se a ela. Não foi sequer um legislador qualquer que inventou os contratos, quanto mais o resto. Os contratos existem, são como são; a lei regula-os. Num Estado de Direito, as leis privadas não criam a realidade, aderem a ela. Regulam, ordenam, mas não criam, nem inventam, muito menos contra a realidade. Se o fizessem, atropelariam a realidade; e seriam de deriva totalitária. 

Se todos nascemos de pai e de mãe, é violência extrema privar alguém do direito a ter pai ou do direito a ter mãe. A dupla referência masculina e feminina que é parte da nossa natureza integra a nossa própria identidade pessoal. É o que somos, é o nosso ser. 
Por isso mesmo, a generalidade das declarações de direitos humanos e das Constituições modernas (como a portuguesa) inclui o direito à identidade pessoal no elenco dos direitos fundamentais da pessoa humana – sem isso, não somos. E esse direito à identidade é componente principal da dignidade da pessoa humana. 
É desse direito fundamental à identidade pessoal que decorre, por exemplo, o dever de o Estado apoiar e promover a investigação da paternidade ou maternidade nos filhos do incógnito. E é desse direito à identidade pessoal que decorre também a noção de adopção do nosso Código Civil (art.º 1598º) como «o vínculo que [se estabelece legalmente entre duas pessoas] à semelhança da filiação natural, mas independentemente dos laços do sangue.»

O projecto da co-adopção homossexual é uma fraude intelectual e uma manipulação jurídica. É uma esperteza: não-saloia, mas sofisticada. Nem tanto sequer pelo que já foi dito – ser a gazua que abre a porta à adopção homossexual em geral – mas pelo resto. 
A adopção tem um lado generoso, que é atribuir pai e/ou mãe; mas outro violento, que é tirar pai e/ou mãe. É isso que faz da adopção um instituto tão difícil e tão delicado; e da sua decisão um processo sério, melindroso e complexo. 
Quando atribuímos juridicamente uma criança a um pai e/ou uma mãe, estamos a retirá-la definitivamente, de forma irrevogável, a outro pai e/ou outra mãe naturais – a estes e, simultaneamente, a retirá-los também da sua família respectiva, de pertença natural: irmãos, primos, tios, avós que fossem. A geração natural é apagada e substituída, para todos os efeitos, pela filiação jurídica. A genealogia dessa criança é reescrita por inteiro. Para sempre. 
Só é possível diminuir levianamente a seriedade e delicadeza real ou potencial dos problemas a considerar, se imaginarmos as crianças de que se trate como res nullius, coisa de nada e de ninguém. Mas nenhuma criança, mesmo a mais só e abandonada, é assim tão nullius: tem uma história e uma realidade. Que lhe pertence e a que pertence.

Adoptar a co-adopção é consagrar que, pela potente força imperial da lei, uma criança pode passar a ser “filha” de pai e pai, sem mãe; ou “filha” de mãe e mãe, sem pai – e, ipso facto, negar-lhe em definitivo o direito a ter uma mãe ou o direito a ter um pai, proibindo-o para todo o sempre. 
Não se trata de saber quem cuida de quem, mas de alterar radicalmente a genealogia de uma pessoa, truncando para sempre a sua identidade pessoal. Escusa de buscar, mais tarde, mãe ou família materna, se a não conhecia; ou de procurar pai ou família paterna, que não soubera – essas relações ter-lhe-iam sido apagadas e proibidas para todo o sempre pelo “Direito”. Essa criança teria passado a ter, sem apelo, nem agravo, duas mães e duas famílias maternas e nenhuma paterna, ou dois pais e duas famílias paternas e nenhuma materna. 
Mesmo o projecto de co-adopção do PS reconhece – e bem – que aquilo que designa de “parentalidade” é dual, isto é, que somos filhos de dois. Está certo. 
Mas quem é que disse que são dois? Quem foi esse ominoso criador que determinou que sejam dois, e não quatro, ou cinco, ou ? Garanto que não fui eu. E, não tendo sido eu, essa dualidade parental também não resultou da autoridade da caneta da Dr.ª Isabel Moreira, ou da pena entusiástica do Dr. Pedro Delgado Alves ou do arrobo igualitário da escrita da Dr.ª Elza Pais. Isso resulta de modo inteiramente prosaico da natureza, da biologia, vá lá… do Criador. 
A realidade é, de facto, a da dualidade parental; não uma parentalidade qualquer ou indiferente, mas uma dualidade de maternidade e paternidade. Somos filhos de dois, mas não de quaisquer dois – somos filhos de dois, porque somos filhos de mãe e de pai. Será isto homofobia? Não. É a biologia, a natureza. A natureza, não das coisas, mas a natureza das pessoas.
in PÚBLICO, de 23-jul-2013


[NOTA: com votação final global marcada para 24 de Julho, a 1ª Comissão Parlamentar votou, no dia 23 de Julho, o adiamento da matéria para o início da 3ª sessão legislativa em Setembro.]

Paternidade, maternidade e discriminação

No quadro do debate sobre a "co-adopção homossexual", aberto pelo projecto de lei n.º 278/XII, da autoria de deputados do PS, escrevi este pequeno artigo que foi hoje publicado no CORREIO DA MANHÃ e a cujo recorte pode aceder aqui.



Paternidade, maternidade e discriminação
       - por José Ribeiro e Castro

Em Portugal, não há discriminação quanto à maternidade ou à paternidade em razão da sexualidade. Nenhum filho é retirado ao pai ou à mãe por estes serem homossexuais; e muito menos pode, por isso, a filiação ser banida e apagada da ordem jurídica. Tais violências não existem. Não conheço e não recordo, aliás, que alguma vez ocorressem.
O facto de a lei proteger que às crianças não possa ser negado o direito a ter pai e mãe não é discriminação. É facto da vida; integra o direito humano fundamental à identidade pessoal.
A lei da “co-adopção” homossexual introduziria, ela sim, discriminações.
De um lado, discriminações quanto aos pais. Uma mulher poderia co-adoptar com outra se fosse companheira lésbica da mãe, ficando a criança com duas mães e nenhum pai. Mas duas irmãs cuidando em comum do filho de uma, não poderiam co-adoptar. O mesmo quanto a tios ou casos similares. A heterossexualidade do outro cuidador bloquearia qualquer co-adopção. Dir-se-á: isso seria uma estupidez. É bem verdade. No caso homossexual, não é diferente.
Do outro, discriminações quanto aos filhos. Se a “co-adopção” homossexual fosse consagrada passaríamos a ter filhos de pai e mãe – como todos somos – e filhos que, por serem de “duas mães” ou de “dois pais”, ficariam proibidos de terem pai ou mãe, respectivamente. Os de “duas mães” seriam banidos de pai; os de “dois pais”, banidos de mãe. Uma quebra radical do direito à identidade pessoal, severa violação do princípio da igualdade.

[NOTA: com votação final global marcada para 24 de Julho, a 1ª Comissão Parlamentar votou, no dia 23 de Julho, o adiamento da matéria para o início da 3ª sessão legislativa em Setembro.]

Personagens da crise (4): D. Flávio Republicano, o trovão do Aquém e do Além


Outrora simpático e bonacheirão, D. Flávio azedou. Acontece, com o tempo, aos melhores.

Os cartapácios mais antigos, livros grandes que podemos vasculhar nos alfarrábios de maior renome, culto e sabedoria, descrevem bem esse tipo de personagem, figura típica da Crisologia. As crises produzem recaídas assim, no incêndio radical da inexperiência juvenil: o ponderado torna-se extremista, o prudente ensandece, o equilibrado faz-se de tolo, o calmo enfurece-se, o assisado exibe o maior descoco. 

D. Flávio consta ainda na cultura mediática contemporânea como “o ex-Presidente de todos os portugueses”, recordando os mais antigos os tempos em que – dizem – terá capitaneado as hostes de todos os democratas contra a deriva totalitária que quase submergiu a democracia nascente. E, asseguram os mesmos, terá sido esse mesmo capital político que, aliado a uma lenda de proverbial bom feitio e à imagem de bonus pater familias, dele fizeram referência respeitada e veneradamente ouvida por todos quase sem excepção. 

O tempo ou as circunstâncias alteraram tudo. Há quem refira que terá sido por uma falhada tentativa de reeleição presidencial, em que terá perdido estrondosamente não só para “a direita” que vergasta, mas também para a “esquerda” de ex-partidários que o vergastaram a ele. Fosse por isso ou por outra coisa, D. Flávio mudou. Muito. Parece outro, bem diferente da memória afável e grata que alguns ainda guardam e cultivam. 

É verdade que há quem lembre também outros anos duros e difíceis em que – dizem –, num governo chefiado por D. Flávio, a austeridade e o rigor terão levado “bandeiras negras a desfilar contra a fome” e múltiplos impropérios serem gritados contra a nossa outrora simpática figura. D. Flávio, porém, não se lembra nada disso.

Mais republicano do que sempre, dir-se-ia a visitar os tempos dos tiroteios na Rotunda, nos alvores de 1900. Vocifera, pragueja, ameaça. É cada vez mais compagnon de route e, por vezes, mesmo a guarda-avançada daqueles que, segundo os antigos, teria combatido décadas atrás, por condenar o seu extremismo, totalitarismo e anti-democracia. 

Tornou-se pregador de cisões e chega a evocar o Regicídio como possibilidade. Às vezes dá ideia de que embaraça até os seus. Compará-lo ao “velho do Restelo” seria pouco: D. Flávio Republicano não se limita a duvidar do futuro e do desconhecido, antes exautora e nega o próprio presente e o bem conhecido. 

É o trovão do Aquém e do Além. E troveja tanto, tanto, que se diria ter abandonado os ideais democráticos: as eleições só estão bem quando ganham os seus. Mesmo assim, desde que os eleitos cumpram sempre o preceito fundamental: “a Ordem Minha de Cada Dia”.

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Os 5 mandamentos do segundo fôlego dado por Cavaco Silva


Na sua comunicação de 21 de Julho, o Presidente da República deu um segundo fôlego ao governo PSD/CDS, nos termos já aqui analisados: «não tendo sido possível alcançar um Compromisso de Salvação Nacional, considero que a melhor solução alternativa é a continuação em funções do actual Governo, com garantias reforçadas de coesão e solidez da coligação partidária até ao final da legislatura.»

Mas esse segundo fôlego não é gratuito. É acompanhado de cinco mandatos que o Presidente da República expressamente indicou:
  1. «O Governo (...) deve fazer um esforço acrescido para preservar as vias de diálogo que agora se abriram. É essencial salvaguardar o espírito de abertura ao compromisso manifestado ao longo de uma semana de negociações interpartidárias.»
  2. «Deve ser aprofundado o diálogo com os parceiros sociais e com os agentes económicos (...). O seu contributo deve ser valorizado e as suas propostas examinadas com a melhor atenção.»
  3. «É essencial que os dois partidos que integram a coligação estejam sintonizados, de forma duradoura e inequívoca, para concluir, com êxito, o Programa de Assistência Financeira e o País regressar aos mercados, por forma a assegurar o normal financiamento do Estado e da economia. Isto implica, desde logo, a aprovação e entrada em vigor do Orçamento do Estado em janeiro de 2014.»
  4. «...fundamental que todo o Governo assuma como prioridade o reforço da aplicação de medidas de relançamento da economia e de combate ao desemprego. Num quadro de exigência e rigor, o Governo deverá aprofundar as medidas de estímulo ao investimento e de captação do investimento externo, onde se incluem a estabilidade e a previsibilidade do sistema fiscal.»
  5. «...os parceiros da coligação governamental têm de se empenhar, concertadamente, na criação de condições para realizar, com firmeza e credibilidade, as negociações com as instituições internacionais que a situação portuguesa exige.»
[i] Diálogo político, [ii] diálogo social, [iii] coesão governativa, [iv] prioridade à economia e [v] firmeza e credibilidade no diálogo externo em defesa de Portugal - tais são os 5 mandamentos de Cavaco Silva para o novo ciclo do Governo Passos/Portas. Não é coisa pouca. Sobretudo olhando aos primeiros dois anos.

Para o que der e vier, o Presidente da República, a terminar a comunicação, não deixou também de «afirmar aos Portugueses que, se o actual Governo se mantém em plenitude de funções, o Presidente da República nunca abdicará de nenhum dos poderes que a Constituição lhe atribui

Ficou dada a mensagem.

Co-adopção homossexual? «Isto não faz sentido. Salta aos olhos.»

Em princípio, na próxima quarta-feira, dia 24 de Julho, o projecto de lei n.º 278/XII, da autoria de deputados do PS e consagrando a "co-adopção homossexual", voltará a ser votado na Assembleia da República, desta vez em votação global final. Na primeira votação, ocorrida em 17 de Maio, o projecto fez surpreendentemente vencimento, como aqui comentei, logo na altura. [NOTA: no dia 23 de Julho, a 1ª Comissão votou o adiamento da matéria para o início da 3ª sessão legislativa em Setembro.]

Não se sabe se a segunda votação (a final) confirmará, ou não, a primeira, o que justifica a reabertura de intenso espaço de debate.


Convidado pela Rádio Renascença a manifestar a minha posição em espaço próprio, escrevi e gravei este texto:

Co-adopção homossexual? «Isto não faz sentido. Salta aos olhos.»
 - por José Ribeiro e Castro

Adoptar não é cuidar de alguém. Há tanta gente que cuida de outrem, e bem, e com amor e com afecto, e não é pai, nem mãe. Ser adoptado não é só ser amado, e educado, e criado; é ficar filho de. Adoptar é tornar-se pai ou mãe. É genealogia. É ascendência e descendência. É todo o resto da família, materna e paterna. Para sempre. Como na realidade da vida.
Adoptar é suprir a falha da família natural, atribuindo família jurídica (adoptiva) à imagem e semelhança da família natural. Criança que não tem pai e mãe aspira a um e a outra. Pode não os ter porque nunca soube, ou porque foi abandonada, ou por ser tão maltratada que lhes é retirada.  Pode ter-se só pai – e não ter mãe. Como pode ter-se só mãe – e não ter pai. De alguma forma se aspira a preencher a falta ou se preenche a ausência com a memória ou a imagem. Não é um vazio. Não há vazio.
Todos somos filhos de pai e mãe. Somos filhos da dualidade feminino/masculino. Apagar essa dualidade é apagar e confundir o que somos. É a nossa identidade pessoal. Somos ambos e temos direito a ambos. É a nossa natureza humana.
Por isso é que a co-adopção homossexual não faz sentido. Ninguém é filho de mãe e mãe, nem deve ser proibido de ter pai. Ninguém é filho de pai e pai, nem deve ser proibido de ter mãe. «Isto não faz sentido. Salta aos olhos.»

A citação «Isto não faz sentido. Salta aos olhos.»  é retirada do preâmbulo do próprio projecto socialista, onde é usada a outro título.

Escrevi ainda outros textos sobre este tema, que irei divulgando aqui.

Repor a confiança. Relegitimar.


Na altura, comentei a comunicação de 10 de Julho de Cavaco Silva, com um post  intitulado "Maioria (?...), Governo (!?), Presidente". 

A pontuação do título traduzia onde tínhamos chegado: a maioria abrira brechas e fizera tristes figuras; o Governo não se sabia como estava e ficaria; o Presidente afirmou-se.

E sintetizei assim o sentido da intervenção do Presidente da República: 
(1º) este "passou a considerar que, (...) pela forma como as coisas se passaram, esgotou-se a legitimidade política parlamentar suficiente da maioria PSD/CDS"; e
(2º) o sucedâneo seria encontrado em "legitimidade e suporte parlamentares alargados («o acordo de médio prazo entre os [três] partidos que subscreveram o Memorando de Entendimento») e/ou num cruzamento da legitimidade parlamentar e da legitimidade  presidencial (a sugestão de «uma personalidade de reconhecido prestígio que promova e facilite o diálogo»)."
Nestes dez dias, o quadro mudou, assim como o resultado político. Gorado que foi o Compromisso de Salvação Nacional, a três, ficou também pelo caminho a hipótese de eleições antecipadas no 2º semestre de 2014. E voltou-se unicamente ao quadro da maioria parlamentar e da sua legitimidade até ao final da legislatura em Outubro de 2015.

Durante a visita às Ilhas Selvagens, Cavaco Silva já  tinha afastado por inteiro a hipótese de um "governo de iniciativa presidencial", sobre que se chegara a especular. E, agora, na comunicação de 21 de Julho, adiantou as razões por que, tendo-se o PS afastado de um acordo patriótico alargado e sendo muito nefasta a convocação de eleições, volta a endossar a maioria PSD/CDS e o actual Governo:

  • «o Executivo [dispõe] de uma maioria parlamentar inequívoca, como recentemente se verificou» (referência ao chumbo por 131 a 87 votos da moção de censura d' Os Verdes);
  • «os partidos da coligação apresentaram (...) garantias adicionais de um entendimento sólido»;
  • «o Governo irá solicitar à Assembleia da República a aprovação de uma moção de confiança», em que «explicitará as principais linhas de política económica e social até ao final da legislatura».

A mudança de chave presidencial não foi uma leviandade ou um recuo. Mas assentou em cinco factos que importa ter presentes:
  1. O Partido Socialista frustrou, ao menos para já, o Compromisso de Salvação Nacional e, assim também, a possível abertura de um novo ciclo eleitoral no final de 2014.
  2. Convocar já eleições seria calamitoso para Portugal, como Cavaco Silva sempre assinalara.
  3. O Governo refrescara, entretanto, a sua legitimidade parlamentar com o chumbo esmagador da moção de censura, no dia 18 de Julho.
  4. PSD e CDS transmitiram ao Presidente «garantias reforçadas de coesão e solidez da coligação partidária até ao final da legislatura», as quais seria, aliás, interessante conhecer.
  5. O Presidente terá reclamado (ou obtido a garantia de) um refrescamento expresso da legitimidade parlamentar através de uma moção de confiança apontada a um "novo ciclo", tema de que falarei noutro local. Para Cavaco Silva, não bastou a confiança tácita pela reprovação da censura; requereu uma confiança expressa.

Os culpados

Na comunicação de ontem, o Presidente da República lamentou o insucesso das conversações interpartidárias a três: 
«Desde a primeira hora, dei o meu apoio inequívoco à realização desse Compromisso [de Salvação Nacional]. Lamento que, após seis dias de trabalho conjunto, os três partidos não tenham conseguido alcançar o entendimento desejado.» 
 E acrescentou: 
«Não quero recriminar nenhum partido.»
Cavaco Silva fez bem. As conversações romperam - é certo - pelo PS, como todos vimos. Mas - é altura de lhe fazer justiça - a culpa não foi de António José Seguro e da sua direcção. Nenhum partido, por isso, deve ser recriminado. 

Os culpados, os verdadeiros culpados foram estes:


Foram Soares e Sócrates que mobilizaram as suas hostes e que, pelo poder de condicionamento interno que mantêm sobre o Partido Socialista, sabotaram as conversações tripartidas para um acordo patriótico, o Compromisso de Salvação Nacional. Mário Soares foi ao extremo de ameaçar com uma cisão do PS. E José Sócrates, que tem contas antigas a ajustar com Cavaco, usou o palco privilegiado da RTP para emitir continuamente as suas "instruções".

É triste, mas absolutamente sintomático da nossa decadência e da crise nacional profundíssima que atravessamos, que um ex-Presidente da República e um ex-Primeiro-Ministro se comportem desta maneira. 

Não acrescentam patriotismo, mas rancor sectário. Não agem como estadistas, nem sequer ex-líderes de partido, mas como chefes de facção. Não exercem uma função de elevação, ponderação e compromisso, mas o contrário: baixeza, mediocridade, fractura.

Desditosa Pátria, que tais ícones tem!

Quando sentirmos que é mais fraca a nossa capacidade negocial com as instituições internacionais, agradeçamos a Soares e Sócrates. Quando não conseguirmos atenuar mais os pesados sacrifícios exigidos aos Portugueses, agradeçamos a Soares e Sócrates. Quando lamentarmos não melhorar mais depressa as condições de crescimento da economia e de criação de emprego, agradeçamos a Soares e Sócrates. Quando ouvirmos tremer a conclusão com êxito do Programa de Assistência Económica e Financeira, agradeçamos a Soares e Sócrates. Quando nos disserem que pode perigar o regresso do País aos mercados em condições mais favoráveis, agradeçamos a Soares e Sócrates. Quando recearmos poder voltar a ser comprometido o normal financiamento do Estado e da economia, a médio e longo prazo, agradeçamos a Soares e Sócrates.

São estes os falhados, os perdedores, que fizeram fracassar o que era bom para Portugal.

A melhor parte do discurso do Presidente


Na comunicação do passado dia 10 de Julho, o Presidente da República havia defendido e proposto um Compromisso de Salvação Nacional.

Começou por recordá-lo, na comunicação de ontem: «No passado dia 10, expus ao País uma forma de ultrapassar a actual crise política. (...) Essa solução implicava a realização de um Compromisso de Salvação Nacional entre os três partidos que, em 2011, subscreveram o Memorando de Entendimento com as instituições internacionais.»



E, a seguir, veio aquela que considero a melhor parte do seu discurso de ontem à noite:
«Um acordo entre essas três forças partidárias, que representam 90% dos Deputados à Assembleia da República, reforçaria a nossa capacidade negocial com as instituições internacionais, atenuando os pesados sacrifícios exigidos aos Portugueses.

Além de promover a estabilidade política, um compromisso de médio prazo iria melhorar as condições de crescimento da economia e de criação de emprego.

A uma maioria parlamentar juntar-se-ia o apoio do maior partido da oposição às medidas que, após negociação conjunta com as instituições internacionais, se revelassem indispensáveis para completar com êxito o Programa de Assistência Económica e Financeira e, bem assim, para conseguir o regresso do País aos mercados em condições mais favoráveis e para assegurar o normal financiamento do Estado e da economia
Na comentocracia reinante, dominarão certamente aqueles que, em variados tons, se entreterão a comentar que "o Presidente falhou" e a regozijar-se com "o insucesso de Cavaco" ou com a afirmação de que "Cavaco teve de recuar".

É a tristeza medíocre em que vivemos! Dominam os que se alegram com que fiquemos pior. 

O Presidente tinha razão. E tem razão. Mas Cavaco não pode fazer o que só os partidos podem fazer. 

Não seria melhor que tivéssemos mais capacidade negocial junto dos credores? Não seria melhor podermos obter melhores condições? Não seria melhor termos de fazer menos sacrifícios? Não seria melhor conseguirmos crescer e criar emprego, já? Não seria melhor virmos a regressar aos mercados em condições mais seguras e favoráveis? Não seria melhor não termos de recear novas derrapagens ou rupturas no financiamento do Estado e da economia?

Então, qual é a dúvida? Qual foi a dúvida?

A seguir, apontarei os verdadeiros culpados deste fracasso. Não é a Cavaco Silva que devemos apontar o dedo.

domingo, 21 de julho de 2013

E o CDS.

Anteontem, perguntei aqui pelas propostas do CDS no quadro das conversações tripartidas para o compromisso de salvação nacional requerido - e bem - pelo Presidente da República.

Tinham sido divulgadas as propostas do PS e as propostas do PSD; faltava conhecer as do CDS.

Pois bem. Já são conhecidas e podemos encontrá-las quer no portal do CDS, quer, por exemplo, a partir da notícia no DN online.

Não são propostas estruturadas como as outras, mas "termos de referência" e um documento para bom andamento das negociações, que ilustram bem as posições defendidas pela equipa negocial do CDS.

Podem ler-se aqui os três documentos já divulgados:
 - termos de referência de 17 de Julho: fonte CDS e  fonte DN;
- documento de andamento negocial de 18 de Julho: fonte CDS e  fonte DN;
- comunicação final de 20 de Julho: fonte CDS e  fonte DN.
Conhecidas que já eram as propostas do PSD e ouvida agora a comunicação de Pedro Mota Soares, bem como lidas as posições avançadas negocialmente pelo CDS, as linhas em que o PS se fincou e a comunicação final de António José Seguro mostram uma só coisa: o PS não é um partido fiável para o futuro próximo de Portugal. 

O Partido Socialista está na oposição e quer ficar à margem. Podemos fazer coro com Mota Soares: «lamentamos a posição do Partido Socialista, até por não ter reconhecido os pontos de convergência significativos que tinham sido obtidos.»

Os socialistas continuam inteiramente reféns do rasto e legado do socratismo. Seguem cativos de ilusões, miragens e fantasias, que - como já aqui apontei - constituem uma impenitente fraude política. E excluem-se a si próprios da salvação nacional - salvação nacional que se impõe unicamente, em razão do buraco para onde eles mesmos nos lançaram. 

É triste. Mas é a verdade com que temos de lidar.

sábado, 20 de julho de 2013

Personagens da crise (3): Segismundo Amnésia, o da má memória


Segismundo nunca se extingue. Regressa sempre como comentador: para comentar não tanto a si mesmo, mas aqueles que se lhe seguiram. 

É figura conhecida e frequente nas sociedades hipermediáticas e teledependentes do nosso tempo. A proliferação dos canais de televisão hertzianos, por cabo, por satélite ou meramente electrónicos multiplica os comentadores de serviço, indispensáveis para alimentar a comentocracia reinante.

Segismundo Amnésia é um tipo recorrente no género comentocrático. Não figura nos manuais da macroeconomia ou da ciência política, antes na literatura de cordel que se empilha nos alfarrabistas. O seu papel televisivo está bem descrito em qualquer parte do mundo. É típico e bem conhecido: comentando os que se lhe seguem, esquece-se sempre do que ele próprio fez. Esse é, aliás, o seu principal talento: o absoluto descaramento.

O nosso Segismundo doméstico consta como ter mandado fazer “auto-estradas onde não passam carros, aeroportos onde não aterram aviões, TGVs para sítio nenhum”. Alguém vaticinou que, senhor de grande visão, Segismundo de má memória esteve prestes a encomendar um porto de águas profundas para Portalegre, antecipando já a subida das águas do oceano por efeito das alterações climáticas e do degelo das calotes polares. Homem de visão empolgada, audaz como poucos, gastador como ninguém, capaz do útil e sobretudo do inteiramente inútil, Segismundo deixou arruinar as finanças.

Como comentador, mantém o verbo fácil e afiou o dedo em riste. Arrasa os efeitos da bancarrota, mas nunca as suas causas. É cáustico a castigar a ressaca, mas esquece a bebedeira – não é sempre assim? Alimenta amanhãs que cantariam, omitindo por inteiro o ontem que nos pôs a pão-e-água. Conserva aquela superior agilidade na invenção das facilidades que o fizeram famoso, ignorando todas as dificuldades em que ele próprio tropeçou e nos fez cair a todos. Nunca mostra vergonha ou a menor sombra de embaraço. Vai a cair, mas parece que voa.

Enche o écran e dá para passar o tempo. Para isso o contrataram aliás, dizendo que é “serviço público”. É como o tabaco, na sábia definição do meu avô: «Sabes, meu filho? O cigarro faz mal, mas faz companhia.»

Eis Segismundo Amnésia, o da má memória – um grande artista nacional, pois então.