sábado, 20 de julho de 2013

Personagens da crise (3): Segismundo Amnésia, o da má memória


Segismundo nunca se extingue. Regressa sempre como comentador: para comentar não tanto a si mesmo, mas aqueles que se lhe seguiram. 

É figura conhecida e frequente nas sociedades hipermediáticas e teledependentes do nosso tempo. A proliferação dos canais de televisão hertzianos, por cabo, por satélite ou meramente electrónicos multiplica os comentadores de serviço, indispensáveis para alimentar a comentocracia reinante.

Segismundo Amnésia é um tipo recorrente no género comentocrático. Não figura nos manuais da macroeconomia ou da ciência política, antes na literatura de cordel que se empilha nos alfarrabistas. O seu papel televisivo está bem descrito em qualquer parte do mundo. É típico e bem conhecido: comentando os que se lhe seguem, esquece-se sempre do que ele próprio fez. Esse é, aliás, o seu principal talento: o absoluto descaramento.

O nosso Segismundo doméstico consta como ter mandado fazer “auto-estradas onde não passam carros, aeroportos onde não aterram aviões, TGVs para sítio nenhum”. Alguém vaticinou que, senhor de grande visão, Segismundo de má memória esteve prestes a encomendar um porto de águas profundas para Portalegre, antecipando já a subida das águas do oceano por efeito das alterações climáticas e do degelo das calotes polares. Homem de visão empolgada, audaz como poucos, gastador como ninguém, capaz do útil e sobretudo do inteiramente inútil, Segismundo deixou arruinar as finanças.

Como comentador, mantém o verbo fácil e afiou o dedo em riste. Arrasa os efeitos da bancarrota, mas nunca as suas causas. É cáustico a castigar a ressaca, mas esquece a bebedeira – não é sempre assim? Alimenta amanhãs que cantariam, omitindo por inteiro o ontem que nos pôs a pão-e-água. Conserva aquela superior agilidade na invenção das facilidades que o fizeram famoso, ignorando todas as dificuldades em que ele próprio tropeçou e nos fez cair a todos. Nunca mostra vergonha ou a menor sombra de embaraço. Vai a cair, mas parece que voa.

Enche o écran e dá para passar o tempo. Para isso o contrataram aliás, dizendo que é “serviço público”. É como o tabaco, na sábia definição do meu avô: «Sabes, meu filho? O cigarro faz mal, mas faz companhia.»

Eis Segismundo Amnésia, o da má memória – um grande artista nacional, pois então.

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