Segismundo nunca se extingue. Regressa sempre como
comentador: para comentar não tanto a si mesmo, mas aqueles que se lhe
seguiram.
É figura conhecida e frequente nas sociedades hipermediáticas e
teledependentes do nosso tempo. A proliferação dos canais de televisão hertzianos,
por cabo, por satélite ou meramente electrónicos multiplica os comentadores de
serviço, indispensáveis para alimentar a comentocracia reinante.
Segismundo Amnésia é um tipo recorrente no género
comentocrático. Não figura nos manuais da macroeconomia ou da ciência política,
antes na literatura de cordel que se empilha nos alfarrabistas. O seu papel televisivo
está bem descrito em qualquer parte do mundo. É típico e bem conhecido: comentando
os que se lhe seguem, esquece-se sempre do que ele próprio fez. Esse é, aliás,
o seu principal talento: o absoluto descaramento.
O nosso Segismundo doméstico consta como ter mandado fazer “auto-estradas
onde não passam carros, aeroportos onde não aterram aviões, TGVs para sítio
nenhum”. Alguém vaticinou que, senhor de grande visão, Segismundo de má memória
esteve prestes a encomendar um porto de águas profundas para Portalegre,
antecipando já a subida das águas do oceano por efeito das alterações
climáticas e do degelo das calotes polares. Homem de visão empolgada, audaz
como poucos, gastador como ninguém, capaz do útil e sobretudo do inteiramente
inútil, Segismundo deixou arruinar as finanças.
Como comentador, mantém o verbo fácil e afiou o dedo em
riste. Arrasa os efeitos da bancarrota, mas nunca as suas causas. É cáustico a
castigar a ressaca, mas esquece a bebedeira – não é sempre assim? Alimenta
amanhãs que cantariam, omitindo por inteiro o ontem que nos pôs a pão-e-água. Conserva
aquela superior agilidade na invenção das facilidades que o fizeram famoso,
ignorando todas as dificuldades em que ele próprio tropeçou e nos fez cair a
todos. Nunca mostra vergonha ou a menor sombra de embaraço. Vai a cair, mas parece que
voa.
Enche o écran e dá para passar o tempo. Para isso o
contrataram aliás, dizendo que é “serviço público”. É como o tabaco, na sábia definição do meu avô: «Sabes, meu filho? O cigarro faz mal, mas faz companhia.»
Eis Segismundo Amnésia, o da má memória – um grande artista
nacional, pois então.
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