domingo, 28 de julho de 2013

Personagens da crise (7): Aninhas passionária, a revolucionária do “quartier”


Aninhas foi filha única. Talvez por isso, nunca gostou de ser contrariada. Não teve com quem dividir quarto, nem roupas, nem brinquedos. Não gostava de ser contrariada, mas tinha espírito de contradição: era do contra. E gostava de protestar. Sempre gostou muito de protestar. As suas birras eram épicas. Muitas vezes, levava a sua avante. 

Criada só com a mãe, não tinha figuras masculinas em casa. O avô paterno morrera novo e, além da mãe, a pessoa com que convivia mais era com a avó desse lado, a avó Gertrudes. Foi essa avó que começou a chamá-la de “Passionária”, impressionada com a forma como Aninhas crescia cada vez mais assertiva e pelos discursos inflamados que, ainda muito criança, fazia às bonecas. Não havia filme histórico na televisão que não acabasse em discurso heróico: sentava as bonecas à sua frente no quarto e desatava em oratória inspirada.

Curiosa, Aninhas, quis saber quem era a “Passionária”. Foi assim que chegou a Dolores Ibárruri, a lendária líder comunista espanhola. E, fosse por isso ou outra razão qualquer, confessou-se comunista e revolucionária. A avó, viúva de um legionário salazarista, ia morrendo.

A nossa Aninhas, comunista e revolucionária, não esteve em Estalinegrado – viu nos filmes. Nem esteve na Guerra Civil espanhola – leu na enciclopédia. Também não esteve no Vietnam, nem na Argélia, nem na Sierra Maestra, nem no Chile de Allende – foi lendo em livros, revistas e jornais. Por cá, não andou em lutas operárias, mas nalgumas crises estudantis. E do Maio de 68, o que sabe contou-lhe a mãe que, ela sim, andou pelo Quartier Latin.

Uma vida de alguns excessos fizeram-na envelhecer mais depressa. Fumou umas ganzas, mas drogas mais pesadas não era com ela. Salvou-se por isso. Dois amigos dessas andanças morreram novos: um de overdose, outro com uma hepatite fulminante. Nos tempos de estudante, passou pelo PC, mas rapidamente mergulhou na extrema-esquerda. Ela diz que não gostou da rigidez do partido; os ex-camaradas comunistas contam que era mimada e se deu mal por, ali, não ser o centro do mundo.

Achava-se graça e gostava de se ouvir. Era certamente lembrança daqueles dias precoces em que as bonecas sempre ouviam disciplinadamente os seus inflamados discursos de criança. Tornou-se arrogante e durona. A sua palavra era feroz, manejando adjectivos como flechas. Como sempre, não gostava de ser contrariada na resposta. Umas vezes, amuava. Outras, reagia com violência.

Para Aninhas passionária, a crise tem sempre uma explicação: a ruptura do modo de produção capitalista. Não sabia explicar bem o que isso era, mas era o que sempre dizia. Desemprego? Ruptura do modo de produção capitalista. Crise do euro? Ruptura do modo de produção capitalista. Endividamento? Ruptura do modo de produção capitalista. Violência no mundo árabe? Ruptura do modo de produção capitalista. Demasiadas reprovações nos exames? Ruptura do modo de produção capitalista. Febre aftosa? Ruptura do modo de produção capitalista. Chuvas torrenciais e cheias? Ruptura do modo de produção capitalista.

E, se essa é a causa constante da crise, a solução é uma só: a REVOLUÇÃO, a revolução universal. Entre discursos e interpelações, arremetidas verbais, desfiles e outros repentes, é o que a todos e para tudo promete e recomenda: Revolução! Para onde? Para o Estado revolucionário. Porquê? Porque sim. 

E se a a própria Revolução - perguntam-lhe - entrar em crise? A culpa será da ruptura do modo de produção capitalista. E o remédio? Mais Revolução, pois claro! E ainda mais universal.

Em longos serões e animadas noitadas, entre "jolas" e "mojitos", champanhe e sangria de frutos vermelhos, é o que prega por todo o “quartier”  a nossa Aninhas passionária, com aquela mesma paixão que impressionara já a avó Gertrudes, antes de quase a matar de desgosto. Um caso!

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